Vacinação em San Diego, nos EUA: o país tem vacinado mais de 1,5 milhão de pessoas por dia (Ariana Drehsler/The New York Times)
Carolina Riveira
Publicado em 13 de fevereiro de 2021 às 08h01.
Bruxelas – Quando os membros do Parlamento Europeu se sentaram em janeiro para ler o primeiro contrato disponível publicamente para a compra de vacinas contra o coronavírus, notaram que havia algo faltando. Na verdade, faltava muita coisa.
O preço por dose? Não constava. O cronograma de liberação? Não constava. A quantidade de dinheiro sendo paga antecipadamente? Também não constava. E esse contrato, entre a farmacêutica alemã CureVac e a União Europeia, é considerado um dos mais transparentes do mundo.
Os governos gastaram bilhões de dólares para ajudar as empresas farmacêuticas a desenvolver vacinas e estão gastando bilhões a mais para comprar doses. Mas os detalhes desses acordos permanecem em grande parte secretos, com governos e organizações de saúde pública concordando com as exigências de sigilo das empresas farmacêuticas.
Apenas algumas semanas depois da campanha de vacinação, esse sigilo já está dificultando a responsabilização. As empresas farmacêuticas Pfizer e AstraZeneca anunciaram recentemente que não conseguiriam cumprir suas metas de entrega europeias, causando preocupação generalizada, agora que variantes perigosas do vírus se espalham. Porém os termos de seus contratos permanecem sendo segredos bem guardados, dificultando o questionamento de empresas ou autoridades do governo sobre culpa ou possibilidade de recursos.
Os documentos disponíveis, no entanto, sugerem que as empresas farmacêuticas exigiram e garantiram datas de entrega flexíveis, proteção de patentes e privilégio de não responsabilização se algo der errado. Em alguns casos, os países estão proibidos de doar ou revender doses, proibição que poderia dificultar os esforços para levar vacinas a países pobres.
Os governos estão fechando pelo menos três tipos de acordo de vacinas: alguns estão comprando diretamente de empresas farmacêuticas. Outros as adquirem mediante organismos regionais como a União Europeia ou a União Africana.
Muitos recorrerão à Covax, coalização sem fins lucrativos de mais de 190 países que está comprando dos fabricantes de medicamentos visando disponibilizar os imunizantes em todo o mundo, especialmente para os países pobres, gratuitamente ou a um custo reduzido. Alguns governos assinaram acordos com fabricantes e com a Covax.
Apesar do sigilo, documentos governamentais e regulatórios, declarações públicas, entrevistas e deslizes ocasionais revelaram alguns detalhes importantes das negociações. Eis o que descobrimos.
O desenvolvimento de vacinas é um empreendimento arriscado. As empresas raramente investem na fabricação até terem certeza de que os produtos são eficazes e podem ganhar a aprovação governamental. Isso é parte do motivo pelo qual normalmente leva tanto tempo para desenvolvê-las e lançá-las.
Para acelerar esse processo, os governos – principalmente os Estados Unidos e a Europa – e grupos sem fins lucrativos como a Coalizão para Inovações de Preparação Epidêmica, ou Cepi na sigla em inglês, assumiram parte desses riscos, ou todos.
Os Estados Unidos, por exemplo, investiram até US$ 1,6 bilhão para ajudar a empresa Novavax, com sede em Maryland, a desenvolver sua vacina contra o coronavírus, de acordo com os registros regulatórios. A Cepi contribuiu com cerca de US$ 400 milhões em subvenções e empréstimos sem juros.
Outras empresas receberam ainda mais ajuda. A Moderna, de Massachusetts, não só usou a tecnologia desenvolvida pelo governo como base de sua vacina; também recebeu cerca de US$ 1 bilhão em subsídios governamentais para desenvolver o imunizante. Em agosto, os EUA fizeram uma encomenda inicial de US$ 1,5 bilhão. A empresa afirmou que o projeto foi pago integralmente pelo Estado.
Esses tipos de arranjos foram projetados para ajudar as empresas a acelerar a fabricação e a cobrir custos como testes clínicos.
Apesar dos tremendos investimentos dos contribuintes, normalmente as companhias farmacêuticas são as detentoras exclusivas de patentes. Isso significa que podem decidir como e onde as vacinas são fabricadas e quanto custam. Como explica o contrato da CureVac, a empresa terá o direito exclusivo de explorar quaisquer direitos de propriedade.
Isso tem sido motivo de controvérsia há meses. Uma coalizão de países, liderada pela Índia e pela África do Sul, solicitou à Organização Mundial do Comércio que renuncie aos direitos de propriedade intelectual para que os fabricantes de medicamentos genéricos possam começar a produzir as vacinas. A Organização Mundial da Saúde endossou a ideia, mas houve oposição dos Estados Unidos e da Europa, cujos fabricantes de drogas alegam que as patentes – e os lucros vindos delas – são a força vital da inovação.
"Os governos estão criando escassez artificial. Quando o dinheiro público banca o conhecimento necessário para acabar com uma pandemia, ele não deve ser mantido em segredo", disse Zain Rizvi, do grupo de vigilância Public Citizen.
Um dos termos-chave dos contratos de vacinação – o preço por dose – é frequentemente ocultado nas versões públicas dos contratos governamentais. As empresas consideram isso um segredo comercial. Algumas farmacêuticas incluíram cláusulas em seus contratos de fornecimento que lhes permitem suspender as entregas se os países revelarem o valor pago.
Ao insistir que seus preços permanecem confidenciais, os fabricantes garantem a vantagem sobre os negociadores do governo, que não sabem quanto os outros países estão pagando.
Os governos aceitaram essa disposição, mas vazamentos e alguns relatórios oficiais mostram algumas das disparidades. A Comissão Europeia pagou US$ 2,19 por cada dose da vacina desenvolvida pela Universidade de Oxford e pela AstraZeneca, enquanto a África do Sul pagou mais que o dobro, US$ 5,25, de acordo com relatos da mídia.
As empresas farmacêuticas não responderam aos pedidos de divulgação de seus contratos nem de explicação da razão do sigilo. Um porta-voz da Moderna mencionou apenas um documento regulatório que dizia que o contrato "contém termos e condições que são habituais".
Foi por isso que houve muita agitação no mês passado, quando uma autoridade belga revelou erroneamente uma lista de preços que mostrava que os contribuintes dos Estados Unidos estavam pagando US$ 19,50 por dose da vacina da Pfizer, enquanto os europeus pagavam US$ 14,70.
Os defensores da saúde pública pediram aos países ricos – que se apropriaram do mercado das primeiras doses – que doassem ou vendessem vacinas aos países pobres. Porém os contratos podem restringir a capacidade dos compradores de exportar doses, algo que poderia afetar as vendas de empresas farmacêuticas.
O contrato da CureVac, por exemplo, proíbe os países europeus de revender, exportar ou doar doses – inclusive para a Covax – sem permissão da empresa. Alguns contratos nos Estados Unidos têm restrições semelhantes.
Os prazos de entrega são considerados informações proprietárias, portanto não há um padrão público para impor a uma empresa.
Em nenhum lugar isso é mais claro do que na luta da União Europeia com a AstraZeneca sobre o anúncio da empresa de que não entregaria o número esperado de doses no primeiro trimestre deste ano. As autoridades europeias dizem que receberam garantias contratuais específicas para tais entregas. A empresa alega que prometeu apenas fazer o máximo possível para atingir essas metas.
Autoridades europeias, que inicialmente concordaram em manter o contrato em segredo, agora pediram à empresa que o tornasse público. A menos que isso aconteça, não há como avaliar quem é o responsável.
Mas não há dúvida de que os fabricantes de medicamentos contam com um bom espaço de manobra em um lançamento tão ambicioso e complicado. O contrato da CureVac diz que as datas de entrega (todas sigilosas) devem ser consideradas estimativas. "Nenhum produto estará disponível nas datas previstas para a entrega, ou talvez apenas volumes reduzidos do produto", consta no contrato. Disposições semelhantes existem em outros contratos.
Quase todos os fabricantes de vacinas afirmaram aos investidores que podem não atingir suas metas. "Talvez não consigamos criar ou aumentar a capacidade de fabricação em tempo hábil", alertou a Pfizer em um aviso corporativo em agosto passado.
Essa incerteza frustrou as autoridades de saúde. Quando a Pfizer comunicou recentemente à Itália que estava cortando temporariamente as entregas em 29 por cento, o governo divulgou que estava considerando levar a empresa ao tribunal. Esse processo, caso se concretize, pode tornar públicos alguns detalhes do contrato da União Europeia com a Pfizer, que permanece totalmente secreto.
"A certa altura, eles prometeram mais vacinas ou vacinas mais rápidas. E, no fim, não conseguiram cumprir a promessa", resumiu Steven Van Gucht, o maior especialista em vírus do governo belga.
No início da pandemia, o Banco Europeu de Investimento, braço de empréstimos da União Europeia, forneceu um empréstimo de US$ 100 milhões à empresa alemã BioNTech, que fez parceria com a Pfizer na produção de uma vacina.
Além dos juros do empréstimo, o banco receberá até US$ 25 milhões em lucros das vacinas, de acordo com uma versão, com dados sigilosos, do contrato que a BioNTech apresentou aos reguladores de valores mobiliários.
O banco disse que os acordos de participação nos lucros refletem o risco envolvido no financiamento antecipado. Rizvi, do Public Citizen, argumentou que isso coloca os governos do mesmo lado dos fabricantes e reduz qualquer incentivo para tornar as drogas baratas e amplamente disponíveis.
Nos Estados Unidos, as empresas farmacêuticas são protegidas de quase todas as responsabilidades se suas vacinas não funcionarem ou causarem sérios efeitos colaterais. O governo protege as fabricantes de drogas contra a Covid-19 sob a Lei Prep, de 2005, destinada a acelerar o acesso a remédios durante emergências de saúde.
Isso significa que as pessoas não podem processar as empresas, mesmo em casos de negligência ou imprudência. As únicas exceções são casos de "má conduta intencional".
As farmacêuticas estão buscando renúncias de responsabilidade semelhantes nas negociações com outros países. Os negociadores europeus rejeitaram tais pedidos. A Covax também insiste que os países aceitem toda a responsabilidade como parte dos contratos.
O contrato CureVac-UE protege a empresa de responsabilidades significativas, mas com exceções. Essas exceções são sigilosas.
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