Serra não quer falar de economia
Não agora. Em busca de votos - e da simpatia de parte do empresariado -, José Serra evita revelar seus planos para a área econômica . Mas uma análise do que ele já fez dá pistas do que pode vir pela frente num eventual governo tucano
Da Redação
Publicado em 10 de outubro de 2010 às 03h36.
Ao final de sua palestra na Associação Comercial do Rio de Janeiro, em meados de maio, José Serra foi ovacionado. De pé, em postura relaxada e aparentando bom humor, o pré-candidato do PSDB à Presidência da República falou por 1 hora e 28 minutos sem ser interrompido. Detalhou como seriam suas alianças políticas, criticou o loteamento de cargos na gestão petista, desancou a onda construtivista que impera nas escolas brasileiras e destacou a importância do ensino técnico. Contou piadas, rememorou passagens ao lado de políticos e empresários da plateia e mencionou uma visita com o neto ao zoológico para dizer que a questão ambiental não pode mais ser ignorada pelos governos. Quando falou de economia, Serra se autodenominou o "candidato da produção". Declarou-se preocupado com as desvantagens competitivas dos exportadores brasileiros, especialmente em relação aos chineses. Repetiu o bordão do Estado musculoso, mas não obeso, e afirmou que os atuais investimentos em infraestrutura estão aquém do necessário. Foi uma fala sob medida para a audiência, a ponto de haver quem se referisse ao tucano como o "candidato dos sonhos". Mas quem tinha dúvidas sobre as propostas de Serra para a economia saiu dali tão esclarecido quanto entrou. Engajadonumacampanhaqueprovavelmente será sua última chance de chegar à Presidência da República, o tucano segue à risca a estratégia de aumentar sua exposição às classes C, D e E, apresentando- se como um político experiente, afável e agregador. Nesta fase da campanha, em que é crucial subir nas pesquisas para conquistar alianças, a ordem é apostar nos chamados temas consensuais e evitar debates mais aprofundadossobre assuntosque atraiampoucos votos e muito risco. "Ele acha que, quando dá entrevistas sobre economia, tem sempre alguémesperandocom uma casca de banana, o que ninguém faz com a Dilma", resume um aliado. (Ao contrário de Dilma Rousseff e Marina Silva nas edições anteriores, José Serra não deu entrevista para EXAME.)
O cuidado dos tucanos não é reflexo apenas do suposto tratamento preferencial à candidata do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Há uma impressão disseminada, no núcleo da campanha de Serra, de que o setor financeiro é refratário à sua candidatura. Segundo essa versão, o mercado financeiro teme alterações no tripé formado por câmbio flutuante, metas de inflação e superávit fiscal - desconfiança que remonta às críticas que o então ministro do Planejamento fazia à atuação do Banco Central durante o governo Fernando Henrique Cardoso. Uma pesquisa concluída no fim de maio pela consultoria paulista MCM, com 164 profissionais de 64 instituições financeiras, reforça essa constatação. Embora mostre que 77% dos agentes do mercado votariam em José Serra, o levantamento indica que 58% deles consideram que a política fiscal do tucano seria a mais adequada ao país, mas apenas 24% dizem o mesmo de sua política cambial e 30% concordam com sua estratégia para controlar a inflação.
Seja qual for a razão, o fato é que as questões de política monetária estão entre as poucas capazes de fazer o ex-governador de São Paulo abandonar o roteiro "paz e amor" traçado por seus marqueteiros. Em entrevista à rádio CBN no início de maio, Serra reagiu com irritação à jornalista Miriam Leitão, que perguntou se ele respeitaria a autonomia do BC. "O Banco Central não é a Santa Sé! Você acha, sinceramente, que o BC nunca erra? Tenha paciência!" Depois, mais calmo, explicou-se: "Tem de dar tranquilidade para o BC operar, não ficar interferindo todo momento. Se houver erros calamitosos, eu acho que o presidente tem de fazer sentir a sua opinião, como o governo passado fez e o atual também faz". Apesar da má repercussão do episódio, os estrategistas da candidatura tucana não acusaram o golpe. Alguns aliados foram escalados para declarar que Serra seria incapaz de fazer loucuras, o próprio Serra enviou bombons à comentarista da CBN em sinal de amabilidade e, para consumo externo, o episódio foi dado como encerrado. Além de mostrar que o ex-governador paulista ainda não se tornou imune a supostas provocações, o episódio deixou claro por que Serra evita tanto detalhar suas ideias sobre economia. Suas declarações não acalmaram quem tinha dúvidas sobre sua política monetária, pelo contrário. No dia seguinte à entrevista, banqueiros e analistas se perguntavam a quem caberia decidir o que é erro calamitoso e como Serra iria interferir no BC se fosse o presidente.
Em público, Serra relativiza a importância do mercado financeiro. Já disse algumas vezes, como que a reforçar o aposto de "candidato da produção", que ouvir os mercados não significa ouvir apenas o setor financeiro. "É preciso ouvir todos os mercados, incluindo o agrícola, o industrial e o de serviços", diz. Em conversas informais, aliados dizem que a desconfiança deriva do fato de ele serumcandidato quedefende "interesses difusos", em contraposição a um governo que elege vencedores. "Alguns subgrupos de nossa elite, como os banqueiros, sabem que não serão privilegiados num governo Serra. É uma situação nova para eles", diz um amigo do tucano com trânsito no meio. O economista Luiz Gonzaga Belluzzo, um dos mais frequentes interlocutores de Serra sobre economia - e que também já foi cotado para comandar o BC no governo Lula -, ironiza: "Quando o mercado financeiro desconfia de alguém, é bom a gente confiar nele".
Nada disso impediu que, nos bastidores, o ex-governador de São Paulo e seus assessores procurassem pessoas capazes de influenciar o ânimo do mercado financeiro para sondar o ambiente e tentar dissipar as dúvidas. No ano passado, Serra e Pérsio Arida, ex-presidente do BC e sócio do banco de investimento BTG Pactual, tiveram uma longa conversa sobre economia em Campos do Jordão, no interior de São Paulo. No início de maio, o pré-candidato tucano foi ao Rio de Janeiro para um encontro com outro ex-presidente da instituição, Armínio Fraga (hoje sócio da gestora Gávea Investimentos), e o ex-ministro da Fazenda Pedro Malan. Os dois, expoentes do grupo de economistas ortodoxos formado na PUC carioca, foram alvo frequente das críticas de Serra no governo FHC. Aparentemente, as divergências foram esquecidas. Em conversas privadas, Fraga e Malan têm defendido o voto no tucano. O ex-banqueiro, Sergio Freitas, que foi vice-presidente do Itaú, tornou-se tesoureiro da campanha. Outros "formadores de opinião" - como os economistas-chefes de instituições financeiras, como Itaú, Bradesco, Credit Suisse e UBS - também foram procurados, mas por assessores do pré-candidato. "Eles queriam saber como estamos vendo a economia, que reformas achamos mais importantes. Pareceram genuinamente interessados em não jogar fora as conquistas dos últimos anos", diz Ilan Goldfajn, do Itaú, que foi diretor do BC nos governos de FHC e de Lula.
Reside aí o cerne da questão quanto à política econômica de um eventual governo Serra: ninguém com um mínimo de bom senso é contra a queda dos juros ou a favor do câmbio sobrevalorizado, que prejudica a competitividade de nossa economia. O problema é como resolver essa equação sem desmontar o aparato macroeconômico que vem sustentando o crescimento do país. Para Serra, a queda dos juros e o fim da sobrevalorização do real dependem da combinação de uma política agressiva de comércio exterior com ajuste fiscal rigoroso. Segundo ele, o Brasil passa por uma "desnacionalização" da indústria e do agronegócio com a entrada maciça de produtos estrangeiros. "O chinês não é mais competitivo que nós. Olhinho puxado não traz eficiência. O problema é o câmbio", diz Serra. A solução, propõe o tucano, seria retirar do Mercosul o status de união alfandegária e transformá-lo em zona de livre comércio para permitir ao Brasil fazer acordos bilaterais livremente. Isso ajudaria a equilibrar a balança comercial e a substituir importações. Na visão serrista, juntamente com o salto nos investimentos em infraestrutura possibilitado pelo corte de gastos da máquina estatal, a estratégia ajudaria a corrigir o câmbio e a derrubar os juros sem provocar inflação. Parece uma fórmula redonda, mas, para um bom número de analistas, ela tem um quê de voluntarismo. "O plano é dificílimo de colocar em pé", afirma José Márcio Camargo, economista da Opus Gestão de Recursos. Segundo Camargo, é verdade que uma reforma fiscal benfeita tem o poder de aumentar a poupança pública e abrir caminho para a queda dos juros. "Mas um ajuste passa necessariamente por cortes em gastos correntes, o que significa reformar a Previdência. Isso é - repito - dificílimo de fazer." As inúmeras variáveis no quebra-cabeça da economia fazem com que as implicações sobre o câmbio da proposta de Serra também sejam incertas. "Não dá para garantir como o câmbio se comportaria após um ajuste fiscal. A tendência, aliás, é que o país se torne mais atraente ao investidor estrangeiro, o que tenderia a valorizar o real ainda mais", afirma Camargo.
Mas, afinal, quando o pré-candidato da oposição vai começar a detalhar suas propostas para a economia? E o que se pode esperar de um eventual mandato presidencial serrista? Nas últimas semanas, EXAME ouviu assessores, ex-secretários, aliados e interlocutores no mundo político e empresarial, além de analisar as falas de Serra em diversas ocasiões. "Não há prazo para a divulgação do programa de governo", diz Xico Graziano, que vai se desligar da secretaria estadual do Meio Ambiente de São Paulo para coordenar a elaboração do plano. Segundo o tucano Márcio Fortes, amigo de longa data e candidato a vicegovernador do Rio de Janeiro na chapa de Fernando Gabeira, do PV, só a partir de julho Serra vai se dedicar a um debate mais profundo dos temas econômicos. Até lá, o tucano estará na TV toda semana. "Em julho, estaremos na frente da Dilma de novo", diz Fortes. Os últimos números do instituto de pesquisas Datafolha mostram empate entre os dois candidatos, com 37% das intenções de voto (e 12% para Marina Silva, do PV), uma inversão da tendência de crescimento de Serra. Agora, mais do que nunca, é vital para o tucano acertar em sua estratégia eleitoral.
Por isso, só com as alianças fechadas e a campanha oficial em marcha, Serra estaria à vontade para discutir economia com o nível de detalhe que se espera dele. Sua equipe ainda busca transformar ideias dispersas decolaboradoresnumprogramaconcreto, coletando propostas sobre temas como política energética, reforma da Previdência e legislação trabalhista. Ao ser questionado sobre esses assuntos, Serra dá respostas genéricas. Para perguntas sobre a Previdência, ele costuma dizer que "os aposentados estão numa situação de atraso com relação a remunerações", e nunca se estende muito além disso. No núcleo mais próximo do tucano, além de Graziano e do economista e atual presidente da Sabesp, Gesner Oliveira, que se dedicam ao plano de governo, estão economistas como José Roberto Afonso, especialista em contas públicas, Geraldo Biasoto Jr., que faz análises de conjuntura, e o secretário estadual de Cultura de São Paulo para as subprefeituras, Andrea Matarazzo, que faz a interlocução com o empresariado junto com o ex-banqueiro Freitas. Todos são amigos do ex-governador paulista há décadas e o acompanham na vida pública. É esse grupo, que Serra controla de perto e de quem exige lealdade absoluta, o responsável por áreas que ele considera fundamentais numa campanha: comunicação e finanças. Detalhista e exigente, Serra se comunica com os assessores por e-mails curtos, pedindo dados, estudos ou cobrando o cumprimento de alguma tarefa, em geral de madrugada - quando todos estão dormindo, menos ele. "Como sou hiperativo, preciso tomar a decisão de dormir. Senão, fico acordado a noite toda", disse, recentemente. É também na madrugada que Serra escreve no Twitter sobre música, cinema, futebol e política. Para os aliados, o uso que Serra faz da rede de microblogs, onde tem quase 240 000 seguidores, está ajudando a desfazer a fama de carrancudo e arrogante.
É em sua experiência como governador de São Paulo que está seu maior bônus eleitoral. Quando deixou o cargo, no final de março, seu índice de aprovação era de 55%, segundo o Datafolha. Nos três anos de governo, Serra promoveu um amplo corte de gastos, renegociações de contratos e uma ofensiva arrecadatória, comandada pelo secretário da Fazenda, Mauro Ricardo Costa - um dos poucos assessores tidos como presença certa numa eventual Presidência. Em três anos, os cofres paulistas obtiveram aumento de 28 bilhões de reais na receita líquida. A alta foi de quase 40% em relação à receita de 2006 - enquanto isso, as despesas subiram 36%. O dinheiro extra foi aplicado principalmente na construção de novas estações do metrô e em obras viárias. O total de investimentos diretos do governo em São Paulo passou de 0,6% para 1,6% do PIB. Só na expansão do metrô o estado vai aplicar 23 bilhões de reais até 2011. Outros 3,8 bilhões de reais serão gastos pelo governo paulista nas obras do rodoanel, via que contorna a região metropolitana de São Paulo, que também receberá 1,2 bilhão do governo federal. Nas concessões feitas no estado, as empresas pagam uma taxa para assumir a construção das estradas e sua gestão por períodos de até 30 anos. Por um único trecho do rodoanel, o oeste, foram pagos 2 bilhões de reais - que ajudaram a financiar a construção de outro trecho, o sul. No front dos impostos, a Fazenda paulista instituiu o regime de substituição tributária, que cobra na fábrica o ICMS antecipado de produtos como eletrodomésticos, remédios e até vinhos - e conseguiu, assim, mais 4,6 bilhões de reais. Nenhuma dessas medidas passou incólume a críticas. Apesar de ajudar a coibir a sonegação, a substituição tributária tornou-se fonte de insatisfação para uma parte dos empresários que discorda do cálculo do imposto e se queixa de ter de pagar tributos sobre produtos que nem foram vendidos. A oposição em São Paulo, por sua vez, criticou os valores dos pedágios.
De cada uma dessas iniciativas, Serra parece ter tirado alguma lição. Em falas recentes, tem dito que prefere fazer alterações específicas no sistema tributário, que garantam a eficiência e a competitividade, a negociar uma ampla reforma. "Ninguém fala contra reforma tributária, mas cada um tem uma ideia do que deve ser. O resultado é que vira uma sopa de pedra", diz o tucano. É uma postura oposta à de Dilma Rousseff, que defendeu aproveitar a popularidade dos primeiros meses de mandato para aprovar uma reforma tributária que estabeleça a simplificação de tributos e a desoneração da folha de salários e de bens de capital. Serra também discorda de Dilma quando o assunto é infraestrutura. Defende a concessão dos terminais de aeroportos à iniciativa privada o quanto antes, diz que o PAC não passa de uma lista de obras e acha que dar prioridade ao trem-bala - projeto do governo petista - pode não ser a melhor opção. "São mais de 40 bilhões que poderiam ser investidos na Transnordestina, na ferrovia Norte-Sul, no metrô do Rio, no metrô de São Paulo", diz.
Nesta segunda tentativa de Serra de chegar à Presidência, nenhuma declaração é dada e nenhuma viagem é feita sem que se tenha calculado exatamente o retorno que ela pode trazer à sua candidatura. Para quem acompanhou de perto a campanha anterior, Serra também é hoje um candidato diferente. "Ele está mais paciente e cada vez mais disposto a dialogar com o empresariado, negociar suas posições e equilibrar interesses", diz o amigo e ex-senador do PSDB carioca Ronaldo Cesar Coelho. Desde que assumiu sua intenção de se candidatar, em março, Serra tem se declarado amadurecido pelas derrotas. Um dos primeiros eleitorados a conferir uma mostra desse novo Serra foi o amazonense. Em 2002, ele teve no Amazonas um de seus piores desempenhos na primeira eleição presidencial que disputou, com apenas 30% dos votos. Nesta eleição, a meta do tucano é, se não reverter, pelo menos diminuir a vantagem petista no estado. Duas semanas depois de assumir a candidatura, foi a Manaus e disse a uma emissora de rádio que tornaria a Zona Franca permanente. Foi uma forma de tentar apagar a má fama que Serra ganhou no estado. Nos anos 80, como deputadofederal, teriaapoiadoumaemendaqueacabava com a Zona Franca. "Não vão encontrar nenhuma declaração minha contrária à Zona Franca. Isso é coisa do pessoal que gosta de inventar", diz Serra. Além do Amazonas, o tucano deu ênfase, em seu périplo pelo Brasil, ao Nordeste, onde seu desempenho nas pesquisas é pior do que o de Dilma, e a Minas Gerais, estado que, imagina-se, deva ser o fiel da balança nas eleições. Segundo explicou um aliado, subir nas pesquisas não será útil apenas para atrair partidos com mais tempo de TV para sua coligação. Pode ajudar também a convencer o ex-governador Aécio Neves de que as chances de vitória tucana valem o risco de ser o vice de Serra - o que, na avaliação dos tucanos, representaria um impulso fundamental, e, quem sabe, definitivo. Encerrada essa etapa, segundo seus aliados, Serra estaria livre para falar com mais detalhes sobre questões mais polêmicas da área econômica. Não é fácil enfrentar o presidente mais popular em décadas - e Serra não quer se distanciar um milímetro do único script que acredita capaz de alçá-lo ao posto maior da República.