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“É muito fácil perder a democracia”, alerta jornalista venezuelana

Jornalista advertiu que é necessário acreditar que um líder com discurso autoritário vai fazer o que disse depois de tudo o que aconteceu na Venezuela

Luz Mely Reyes: existem similaridades entre o discurso de Hugo Chávez quando foi eleito pela primeira vez, e sua personalidade, e o candidato Jair Bolsonaro (Reprodução/Agência Pública)

Luz Mely Reyes: existem similaridades entre o discurso de Hugo Chávez quando foi eleito pela primeira vez, e sua personalidade, e o candidato Jair Bolsonaro (Reprodução/Agência Pública)

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Da Redação

Publicado em 26 de outubro de 2018 às 19h43.

São Paulo - Efecto Cocuyo, o “Efeito Vaga-Lume”, é um site independente tocado por jornalistas mulheres venezuelanas. Seu slogan é “jornalismo que ilumina”. Lançado quando o processo de ataques a jornalistas já estava avançado na Venezuela durante o governo chavista, o premiado site é um dos que seguem fazendo bom jornalismo no país polarizado, onde a desinformação é tanta que muita gente já não sabe em que acreditar.

Em visita ao Brasil, a diretora e fundadora Luz Mely Reyes lembra similaridades entre o discurso de Hugo Chávez quando foi eleito pela primeira vez, e sua personalidade, e o candidato Jair Bolsonaro (PSL), que está à frente nas pesquisas para a eleição deste domingo. “Chávez, seus assessores e o grupo que os rodeava nunca entenderam o que é liberdade de expressão. Não entendiam porque tinham uma visão muito militar.”

Segundo a Associação Brasileira de Jornalistas Investigativos (Abraji), mais de 140 jornalistas foram agredidos ao cobrir as eleições recentes, inclusive por partidários do PT. Sobre os recentes ataques virulentos do candidato do PSL contra a Folha de S.Paulo Luz Reyes comenta: diferentemente de criticar a imprensa, “ataques diretos à imprensa, que a convertem em inimiga, é um sinal do autoritarismo”.

“E eu diria para acreditar no discurso autoritário, para acreditar no que diz a pessoa que emite esse discurso, porque, depois de tudo o que aconteceu na Venezuela, eu acredito que um líder autoritário vai fazer o que disse”, completa.

Leia a entrevista.

Durante a primeira eleição de Hugo Chávez, o que você pode dizer sobre como os jornalistas o viam? E como era seu discurso em relação ao jornalismo?

Uma vez o dono de um jornal que o apoiou, o El Nacional, perguntou se ele atacaria a liberdade de expressão. Ele disse que nunca, nunca. Durante a campanha, ele nunca disse que atacaria os jornais. Seus adversários eram os partidos tradicionais, os políticos tradicionais. Ele disse que ia fritar a cabeça deles no óleo… E ele chamou a atenção por isso, por um discurso indignado. No início, ninguém lhe dava muita atenção. Eu, no jornal El Nacional, cobria as pesquisas e comecei a ver sua ascensão e a falar sobre. E eu fui vendo como ele foi avançando com um discurso radical, mas com o apoio de muitos jornais e de muitos jornalistas.

Qual era seu discurso radical?

Tínhamos que acabar [com a política tradicional] porque o povo estava farto da corrupção, da crise econômica que nunca tínhamos visto igual. A democracia venezuelana estava, digamos… O sistema de partidos tradicionais já tinha passado por vários problemas e, sim, a maioria das pessoas seguia votando, queria continuar votando. E o Chávez dizia que mudaria todo o sistema com a Constituinte. Realmente, em sua primeira campanha, sua oferta era como a de um anjo vingador, que distribuiria a renda petrolífera, castigaria os que roubaram o dinheiro e [faria] justiça social.

Quando começaram as iniciativas do governo chavista para censurar a mídia?

Depois do primeiro ano, que foi como a lua de mel do governo com os meios de comunicação, os donos de alguns veículos começaram a questioná-lo muito, mas muito, muito. Até de maneira exagerada. E começaram a questioná-lo, participaram da conspiração de 2002 [que levou a um golpe de Estado fracassado]. Eu creio que ali já era o divórcio totalmente definitivo entre Chávez e os jornais. Antes, os veículos estavam entre os três primeiros lugares no quesito de credibilidade. E os assessores de Chávez começaram a atacá-los, dizendo [às pessoas] “não acreditem neles, tudo isso é mentira”. Aos jornalistas, quando faziam perguntas, [Chávez] dizia “diga a verdade”, sabe?

Foi muito parecido com o que o Trump fez. “Por que você está me perguntando isso? Quem o pagou por isso?” Há um caso bem curioso de um ilustrador muito conhecido na Venezuela, muito famoso, que fez uma caricatura de que Chávez não gostou, e aí ele perguntou quanto haviam pagado pelo desenho. [Ele respondeu:] “O que sempre me pagam: meu salário”. Ele começou a enfrentar inclusive jornalistas famosos, e aí se iniciaram os muitos ataques dos jornalistas a ele e dele aos jornalistas.

Você acha que Chávez, nessa época, tinha algum motivo para fazer isso?

Acho que não. Chávez, seus assessores e o grupo que os rodeava nunca entenderam o que é liberdade de expressão. Não entendiam porque tinham uma visão muito militar. Então não eram como qualquer outra pessoa que podia ser atacada pelos jornais e, bem, podiam dar réplica. Acho que a justificativa que Chávez tinha para atacar a mídia era política, para evitar que sua imagem fosse deteriorada. Para mim, seu raciocínio foi totalmente político, um raciocínio de “não acreditem neles, acreditem em mim”. Como o de Donald Trump.

E qual foi a reação das pessoas em geral?

Esse é um ponto importante que eu discutia com seus assessores. Eu não tenho problema em que não acreditem em tudo que dizemos nos jornais. A imprensa precisa ser criticada. O problema é que ele dizia para que não acreditassem na imprensa, mas acreditassem nele. Como acreditar em um político que quer poder? Ele pedia que acreditássemos em tudo o que ele dissesse. E aí certamente os jornais começaram a ser abertamente criticados. Para mim, naquele momento, era positivo que se criticasse, para que eles pudessem melhorar. Porém logo, ou paralelamente, eles [os apoiadores] começaram a fazer rodas de assédio aos jornalistas e, caso você fosse na rua, em um evento em que o governo estivesse, eles rodeavam você, diziam “diga a verdade, diga a verdade!” e batiam. Eles agrediram muitos jornalistas nessa época. Criaram grupos de ataques a jornalistas e iam às portas dos jornais fazer protesto quando não gostavam de alguma notícia. Fizeram grupos de agressões físicas, também, a jornalistas.

Isso aconteceu com você?

Comigo não porque eu trabalhava no impresso, mas quem trabalhava na televisão estava mais exposto. Eles eram agredidos, insultados. Porque, além disso, se, por exemplo, o âncora de uma emissora se posicionava ou dava uma opinião, quando viam um repórter dessa emissora na rua, o cercavam. Era horrível. E isso em qualquer rádio ou televisão de Caracas. Mas o que me marcou na política do governo foi em 2007, quando acabam com a concessão de uma emissora muito conhecida, muito importante, chamada Radio Caracas Televisión [RCTV]. Isso foi em maio de 2007, dia 27 de maio de 2007. E ele disse “no fim desse dia, eles estão fora do ar”. E depois a hostilizaram ainda mais. [A emissora] não podia funcionar nem a cabo. E logo depois disso acabaram com a concessão a várias emissoras de rádio com o argumento de democratização do espaço da rádio. Por isso existe essa relação muito tensa de Chávez com a imprensa, por isso ele começou a não dar declarações aos veículos venezuelanos. Ele falava com jornalistas estrangeiros, mas, se eles fizessem perguntas que o incomodassem, ele questionava: “De onde você é? Quem é o dono do seu jornal?”.

Hoje em dia, porém, há veículos críticos ou a maioria foi silenciada?

A maioria foi silenciada. Não há mais grandes veículos críticos [ao governo]. Há o El Nacional, mas não tem papel. Esse é outro problema. O governo controla a importação do papel, então não há papel. Quase não há imprensa crítica na Venezuela, o que eu acho muito doloroso porque não tem formação de opinião pública. Os meios que eram grandes estão fracionados, com as redações dos veículos tradicionais quase vazias, e a mídia audiovisual está muito controlada pelo governo.

Uma coisa que me impressionou muito quando eu fui à Venezuela em abril foi a quantidade de informações provenientes das redes sociais etc. Contraditórias, mentirosas. Era muito difícil, como alguém de fora, saber o que era verdade, o que era fato. Quando começou essa cacofonia?

O governo sempre negou muitos fatos. Alguns veículos cometeram erros, difundiram informação falsa. A credibilidade de jornais e de muitos jornalistas se perdeu em 100%. Por outro lado, as pessoas começaram a procurar os jornalistas em quem acreditavam. Então, se conheciam sua trajetória, acreditavam em você. Logo começaram a buscar, sobretudo em 2013, informações nas redes sociais. Por isso todos nós [jornalistas] estamos nas redes sociais, porque as pessoas começaram a buscar a informação que não estavam recebendo da maioria dos veículos. Informação, contrainformação… Houve, no entanto, um aprendizado. As pessoas, hoje, sabem, no Twitter, em quem podem acreditar e em quem não podem.

Houve uma explosão, também de grupos coordenados pelo governo, de informação e contrainformação?

Eu não sei se coordenados pelo governo.

Mas por apoiadores?

Tenho a impressão de que sim, embora eu não entenda a lógica digital aberta, porque eles a entendem como uma lógica autoritária, para controlar. Depois fizeram uma investigação que mostrou que utilizavam robôs para intervir nesse debate público.

Tem alguma censura a esses jornalistas/influenciadores do Twitter?

Bom, o que eles têm feito – e aconteceu comigo e com outros dois colegas – é levarem seu passaporte com a explicação de que houve uma falha. Outro [colega] foi convidado a dar depoimento na polícia política. E tem gente que tem sido presa por difundir informação no Twitter. Eu não tenho o número exato [de pessoas], mas sei que tem gente que tem passado por isso.

De 2013 para cá são cinco anos. Você acredita que já esteja estabelecido, que as pessoas já tenham mais clareza de quais são os veículos em que podem confiar?

Sim, mas é uma parcela, a parcela mais digitalizada. No entanto, hoje em dia, há outra coisa: ataques entre os segmentos da oposição por grupos de controle. Então eles se atacam, e há gente que, para mim, está intervindo na narrativa política da Venezuela de maneira tecnológica. Os políticos estão muito, muito por dentro de tudo o que acontece no Twitter, porque o Twitter tem muita força na Venezuela, diferentemente do Facebook. O Facebook é forte, mas não para questões políticas. Tem o estudo de uma venezuelana em relação a isso, a intervenção do governo com robôs e com personagens inventados. Quando você começa a verificar, a dinâmica da conta não é normal.

Como surgiu o Efecto Cocuyo e que estratégias vocês usam para não serem atacados, para não irem abaixo em meio a toda essa cacofonia?

Surgimos no Twitter em 2015, justamente quando vimos que estavam acabando com o espaço da imprensa livre. Durante minha vida toda, trabalhei em veículos conhecidos e fui a primeira mulher a dirigir um jornal na Venezuela, um jornal pequeno, mas nacional, e estando lá, todos os dias sentava com o dono, que era um grande empresário, e via toda a pressão que vinha do governo. Em 16 de janeiro de 2015, nascemos no Twitter. E o que decidimos foi: falar sobre as coisas como são, de maneira apartidária – não apoiamos nem o governo nem a oposição, apoiamos os direitos humanos e a liberdade – e contar sobre as pessoas. Porque, para nós, isso é muito importante. E começamos a contar as histórias das pessoas, histórias que o governo censurava, como, por exemplo, a crise dos medicamentos. Eles diziam que era mentira, e nós começamos a ver como as crianças, as mais vulneráveis, doentes, estavam sofrendo, e começamos a contar suas historias. E assim fomos indo. Nosso lema é “jornalismo que ilumina”. A nós, interessa informar, dar informação. Eu, que escrevia muita opinião, já quase não escrevo. Quando escrevo, escrevo fazendo análise, mas tento evitar escrever opinião por causa disso. Porque, em uma sociedade polarizada, desinformada, com todo esse ruído, temos que ter muito cuidado. Temos que ser extremamente cuidadosos. No nosso código de ética, evitamos palavras polarizadoras, evitamos palavras que possam gerar sensibilidade. Em uma sociedade polarizada, as palavras têm significados distintos para cada pessoa. São palavras diferentes para definir um mesmo fato, e essas palavras têm um peso. Isso aconteceu na Colômbia e na Venezuela. Então, como utilizar palavras que sejam neutras? É muito difícil, mas nós tentamos não utilizar as mais “picantes”, porque de picante já basta tudo na sociedade.

E como vocês se cuidam, se protegem? Que tipo de coisa fazem?

Uma de nossas sócias está em Miami. Com as manifestações do ano passado, nossa equipe precisou ir vestida praticamente com máscara antigás. Tínhamos uma equipe nas ruas e outra na redação, então era como uma operação comando. Trabalhamos para criar protocolos de segurança, porque é uma equipe muito jovem. Nossos jornalistas viram gente caindo morta ao seu lado, mortas com tiros no ano passado. Foi muito, muito violento, e muito doloroso. E começamos uma política interna de atendimento psicológico com pessoas que já haviam trabalhado com traumas porque, quando você está [numa situação] assim, está traumatizado, mesmo que pense que não. Fizemos uma estratégia interna para ouvir os jornalistas, para que saibam que têm um apoio ali e que não faz mal sentir medo, porque eu acredito que, em situações como essa, em que você viu que mataram, que perseguiram pessoas, é lógico que você vai sentir medo e, por isso, vamos falar do medo.

Qual seria seu conselho para que jornalistas que enfrentam um governo autoritário não se autocensurem?

Eu diria para manter o foco nos fatos. Não que não devam emitir opinião, mas focar nos fatos e ter uma opinião sobre eles. Saber que o governo autoritário, é claro, não gosta de livre pensamento. Nenhum governo autoritário, nem de esquerda nem de direita, quer que as pessoas pensem livremente.

Você sabe o que está acontecendo no Brasil, sabe algumas coisas que o candidato que provavelmente vai ganhar disse, como, por exemplo, que a Folha de S.Paulo não vai mais ganhar dinheiro público, que é fake news. A que sinais você acha que os jornalistas têm que atentar?

Eu diria que ataques diretos à imprensa, que a convertem em inimiga, são um sinal do autoritarismo. Uma coisa é criticar a imprensa – é claro, nós, jornalistas, cometemos erros –, mas, quando nos convertem em inimigos, é uma forma de gerar tanta confusão nas pessoas que elas não acreditam nem nos jornalistas nem nos veículos de comunicação. Mas acreditam em quem? Nos políticos, que têm mais interesse em estar no poder. Isso aconteceu na Venezuela e acho que aconteceu em outros lugares. E eu diria para acreditar no discurso autoritário, para acreditar no que diz a pessoa que emite esse discurso, porque, depois de tudo que aconteceu na Venezuela, eu acredito que um líder autoritário vai fazer o que disse que faria.

Não se deve descartar que isso vá acontecer no Brasil. Não se pode pensar que a liberdade está garantida. Não é porque hoje você é livre que amanhã será. Isso é algo que temos que aprender. A democracia também. Não é porque agora temos 10 anos, 15 anos de democracia que será assim para sempre. É muito fácil perdê-la.

*Este conteúdo foi publicado originalmente no site da Agência Pública.

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