Jerusalém ultrapassa o plano local, diz professora da USP
Para professora de História Árabe, mudança da embaixada americana salienta o processo de judaização da cidade e da região no Oriente Médio
Da Redação
Publicado em 15 de maio de 2018 às 14h47.
Última atualização em 16 de maio de 2018 às 12h13.
Nesta segunda-feira, os Estados Unidos realizaram a mudança da embaixada em Israel para Jerusalém. A mudança faz parte do processo de reconhecimento da cidade como capital de Israel, realizada pelo presidente americano, Donald Trump, em dezembro do ano passado.
Alvo de polêmicas e de críticas internacionais, a mudança pode ser uma guinada na influência e na força política e internacional de Israel no Oriente Médio , uma vez que o país já ocupa a parte oriental da cidade, mas é acusado de promover a ocupação total da cidade sem o reconhecimento internacional.
Além das formalidades políticas e diplomáticas, a decisão trouxe consequências reais para a tensão entre Palestina e Israel. Com o anúncio da decisão, grupos muçulmanos e parte da população palestina voltaram às ruas para se manifestar de forma mais intensa. O resultado foram dezenas de mortes (a ONU contabiliza mais de 42), centenas de detenções e muitas cenas de guerra. Somente nesta segunda-feira, foram mais de 52 mortes e mais de 2.100 pessoas feridas e centenas de novas prisões. As vítimas fatais, até agora, são somente palestinos.
A divisão da cidade de Jerusalém – que é considerada sagrada para islâmicos, judeus e cristãos – sempre foi um ponto central nas negociações entre judeus e palestinos. Interrompidas desde 2014, as conversas sobre o processo de paz eram mediadas pelos Estados Unidos, que mantinham a representação do país na cidade de Tel Aviv, como manifestação de respeito à questão da ocupação israelense. Para o presidente da Palestina, Mahmoud Abbas, a mudança da embaixada significa o cancelamento do papel americano no processo de paz, uma vez que incita a instabilidade no Oriente Médio.
A mudança da embaixada, porém, é apenas uma das ações no posicionamento político dos Estados Unidos na região. Na semana passada, Trump também anunciou a saída do acordo nuclear que mantinha com países da Europa e com o Irã.
Para Arlene Clemesha, professora de história árabe na Universidade de São Paulo (DLO-FFLCH/USP) e atual diretora do Centro de Estudos Árabes da mesma universidade, o reconhecimento da cidade como capital de Israel acrescenta mais peso político a uma questão mal resolvida, suscitando mais violência e tensão na região.
A mudança pode ser considerada uma guinada na história de Israel?
Para entender o problema, deve se entender a situação da cidade de Jerusalém. Em 1949, com o final da guerra árabe-israelense, a cidade foi dividida, entre Jerusalém ocidental e oriental. A parte oriental ficou sob o governo da Jordânia, já que os palestinos haviam sido derrotados na guerra, e não tinham condições de criar um governo. Jerusalém ocidental foi anexada ao território de Israel. O plano original da ONU não era esse. Era que Jerusalém ficasse sob jurisdição da ONU, tornando-se uma espécie de cidade internacional, enquanto o território da Palestina histórica seria divido em duas partes mais ou menos iguais para a criação de um estado judeu e outro palestino. Como houve um armistício, mas não houve uma negociação ou um processo de paz, a divisão da cidade foi aceita como fato consumado. Em 1967, Israel invadiu e ocupou Jerusalém oriental, anexando-a a Jerusalém ocidental. O ato de anexação de Jerusalém oriental foi considerado ilegal pela ONU e pela lei internacional. Então quando o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, afirma que vai levar a embaixada americana em Israel para Jerusalém, trata-se de um ato de reconhecimento e legitimação a uma situação ilegal.
Considerando que Israel já tem uma influência enorme sobre a cidade, essa mudança vai efetivamente alterar alguma coisa para o país?
Em termos práticos, alguns aspectos são importantes. Por exemplo, coloca-se mais peso político no lado da argumentação israelense em qualquer possível negociação de paz com os palestinos. É como dar um aval para um lado que já é forte e preponderante. Trata-se de um apoio político ao ato de anexação de Jerusalém oriental, internacionalmente considerado ilegal. O apoio político à anexação israelense de Jerusalém oriental só reforça a política israelense em vigor, que conta com a expulsão de palestinos da cidade, por meio da proibição de reuniões familiares, ou de retorno a suas casas. Todos os aspectos serão fortalecidos em uma política de judaização da cidade.
Com o reconhecimento da cidade de Jerusalém como capital de Israel, o país pode aumentar sua influência política no Oriente Médio? Levando em conta que não tem muitos aliados na região…
O apoio americano à reivindicação israelense sobre Jerusalém oriental enfurece árabes e muçulmanos em geral, enquanto fortalece a aliança Israel-Estados Unidos. Ou seja, Israel não ganha nenhum novo aliado regional, apenas fortalece a posição já existente de apoio externo norte-americano. O caso de Jerusalém pode, eventualmente, inserir um elemento de contradição e tensão para que aliados norte-americanos, como Arábia Saudita, se alinhem a ele no caso de um conflito regional. Lembrando que a retirada americana do Acordo Nuclear com o Irã aponta para a construção de uma nova guerra na região. É uma guerra que, de fato, já opõe Israel ao Irã em território Sírio.
Desde o anúncio do presidente americano, centenas de palestinos foram às ruas se manifestar contra o país. Com as manifestações, dezenas de pessoas morreram, milhares ficaram feridas e centenas foram presas. Você acredita que as manifestações tendem a diminuir, ou elas vão continuar por um longo tempo
É muito difícil prever em que momento os palestinos vão deixar de ir às ruas. Com períodos de maior e menor intensidade, os palestinos vão às ruas desde 1920. Ou seja, ir às ruas é quase uma constante, e só oscila a intensidade. Jerusalém é um tema tenso. Em primeiro lugar, porque é uma cidade anexada militarmente, com dezenas de soldados israelenses nas ruas. A presença palestina na cidade está sendo diminuída, enquanto crescem assentamentos ou colônias judaicas. Há muito tempo a restrição do acesso de muçulmanos à Esplanada das Mesquitas é uma fonte de tensão, e vale lembrar que a Segunda Intifada (2000-2004) começou com um passeio do General Ariel Sharon pelos locais sagrados muçulmanos na mesma Esplanada, o Haram al-Sharif. Desta forma, a mudança da embaixada também é uma faísca. A tensão está presente e é muito difícil saber se ela vai diminuir ou não. É claro que é a única questão, mas torna uma visibilidade que é sentida como uma provocação. E não só por palestinos, mas por muçulmanos de outros países, que veem a cidade como sagrada. E atualmente existem 1,4 bilhão de muçulmanos. Ou seja, a mudança da embaixada não é tema para dar o risco de uma atitude que não se insere na legalidade internacional.
Podemos dizer que o reconhecimento de Jerusalém como capital de Israel vai ser sentido mais no campo político ou no campo religioso?
A mudança da embaixada é um ato político que afeta diretamente a questão Palestina. Mas também é sentido no plano religioso, por muçulmanos no mundo inteiro. Até porque nem sempre é possível separar as duas coisas. Os aspectos não se separaram facilmente, porque estamos falando de um ato que pode ter consequências políticas para pessoas que são religiosas. Nos seus sentimentos, elas se posicionam como muçulmanas. É claro que, no assunto político, falamos sobre uma questão palestina, de reivindicações que moram onde sempre moraram. Mas numa questão geral falamos de uma questão que ultrapassa o plano local.