El Salvador: a maior taxa de homicídios de mulheres no mundo (Ciudad Mujer/Divulgação)
Gabriela Ruic
Publicado em 1 de dezembro de 2016 às 06h00.
Última atualização em 7 de março de 2017 às 16h28.
São Paulo – Os números não deixam dúvidas: com uma taxa de homicídios de 116 mortes para cada 100 mil habitantes, El Salvador é um dos locais mais violentos do planeta. É, também, o campeão em violência contra a mulher.
A taxa de homicídios de mulheres em El Salvador é de 8,9 para cada 100 mil. É a maior do mundo e até mais alta do que a observada em Honduras, o país nº 1 em mortes violentas, onde essa taxa é de apenas 0,3 morte de mulheres para cada 100 mil.
Nos últimos anos, entretanto, as salvadorenhas encontraram alguma esperança com a consolidação de medidas que visam protegê-las e garantir o acesso aos seus direitos.
Aplaudido pela ONU Mulheres e conduzido com o apoio financeiro do BID (Banco Interamericano de Desenvolvimento), o Ciudad Mujer é um centro integrado de atendimento às mulheres que se propõe a auxiliá-las em todos os aspectos de suas vidas.
O projeto surgiu em 2011 e ultrapassou a marca de 1,3 milhão de mulheres atendidas em 2016 e de 3,7 milhões de serviços prestados em cinco anos. Os resultados logo se transformaram em um índice de aprovação espantoso: 90% da população apoia a iniciativa.
“Foi a primeira vez na história deste país que a mulher foi colocada como prioridade nas políticas públicas. E isso fez com que se sentissem importantes”, contou a EXAME.com Vanda Pignato. Brasileira, ela é a atual secretária de Inclusão Social, idealizadora do projeto e ex-primeira dama de El Salvador.
Segundo Vanda, o Ciudad Mujer nasceu justamente da sua observação de como a mulher era vista na sociedade salvadorenha. Ou melhor, não era vista. E isso lembrando que o país conta com uma população de 6 milhões de pessoas e que elas representam 53% deste total.
Durante a campanha de seu ex-marido Maurício Funes para a presidência (ele ocupou o cargo entre os anos de 2009 e 2014), ela sentiu na pele como as mulheres eram invisíveis tanto nas cidades quanto no campo. “Perdi a minha identidade, era a esposa do candidato. Sequer me chamavam pelo nome”, lembrou.
Resolveu descer do palanque e conversar com essas mulheres. Percebeu, então, o grau de inacessibilidade a serviços públicos essenciais. “Eles existiam, mas estavam dispersos e eram ineficientes”, explicou.
Era necessário um modelo integrado, pensado e desenvolvido por e para mulheres.
O Ciudad Mujer está presente em seis dos 14 departamentos de El Salvador. Cada um oferece a estrutura de 18 instituições do Estado que se articulam de forma integrada em 5 módulos: atenção à violência, saúde sexual e reprodutiva, autonomia econômica, atenção infantil e gestão territorial. Há até espaço para creches onde as crianças que acompanham suas mães podem ficar enquanto elas são atendidas.
Não raro, conta Vanda, mulheres buscam o Ciudad Mujer minutos após um ataque sexual ou doméstico. Ao chegarem, as vítimas encontram espaços de relaxamento e psicólogas para que possam se acalmar para tomar a decisão de denunciar e seguir em frente com os exames médicos e o encontro com advogadas e policiais. Podem tomar banho e ganham roupas novas.
Nos centros, só trabalham mulheres capacitadas em oficinas de direitos humanos. O objetivo final é que o espaço do Ciudad Mujer seja livre de todo tipo de julgamento, um dos sentimentos que faz com que muitas desistam de denunciar situações sensíveis.
A independência econômica é outro aspecto da vida das salvadorenhas que o projeto se propõe a conquistar. Ao sentir confiança na sua capacidade de prover para si e sua família, o caminho percorrido pelas mulheres para a separação de parceiros abusivos torna-se menos dolorido.
Para tanto, são oferecidos cursos profissionalizantes e sobre violência de gênero. Há ainda o incentivo para que retornem às suas comunidades para repassar o conhecimento e assumir posições de liderança. “Temos 15 mil formadas como defensoras das mulheres e teremos mais 15 mil em breve”, orgulha-se Vanda. “Serão o nosso exército”, diz.
E é justamente o caráter integrado do Ciudad Mujer que está impressionando observadores internacionais, fazendo com que a ONU Mulheres o alçasse à posição de “modelo chave” em toda a América Latina.
Em um estudo recente, o BID avaliou o impacto do projeto na sociedade salvadorenha até o momento. Do ponto de vista dos serviços públicos, é bem-sucedido em aumentar a demanda por eles, além de reduzir seus custos e o tempo de uso. Do ponto de vista das mulheres, melhorou o nível de satisfação que as usuárias têm sobre suas vidas.
Como resultado, o modelo inaugurado em El Salvador hoje é estudado por dezenas países. E está em vias de ser implementado em locais como México, Colômbia e Paraguai.
Mas Vanda enxerga potencial para que a iniciativa vá além da América Latina e Caribe, chegando até países desenvolvidos, como Estados Unidos e Suécia. “É um projeto que atende mulheres de todos os backgrounds”, avalia a secretária que contou ainda estar recebendo visitas de autoridades de todas as partes do mundo, da Europa à Ásia.
Mesmo com a boa repercussão entre a população e a comunidade internacional, a expansão do projeto é alvo de entraves por parte da Assembleia Legislativa. O ARENA, partido conservador de oposição, é um dos que se recusa a dar o aval para um empréstimo de cerca de 10 milhões de reais, já aprovado pelo BID, para a construção de três novos centros.
Uma de suas deputadas, Maytee Iraheta, disse recentemente em entrevista ao jornal local La Prensa acreditar no Ciudad Mujer, mas que os votos pelo aval dependem da “transparência” do partido governista FMLN. “Acredito ainda mais em responsabilidade fiscal e o ARENA não irá dar mais votos para o endividamento”, disse.
Para Vanda, o lugar do projeto é fora das diferenças políticas. Em um discurso que foi divulgado pela rede de televisão local Gentevé, a secretária pontuou que “quando se vota pelas mulheres não se pode pensar em objetivos eleitorais” e lembrou que “se as mulheres de El Salvador não prosperam, o país não irá prosperar. ”
O Ciudad Mujer é um avanço inegável nas políticas de redução da violência contra a mulher, mas, ainda assim, El Salvador tem um longo caminho na luta pela igualdade entre os gêneros.
É o que avaliou Saadia Zahidi, diretora do Fórum Econômico Mundial e uma das responsáveis pelo Relatório de Desigualdade de Gênero, estudo produzido desde 2006 com o objetivo de monitorar a situação das mulheres em todo o mundo.
“Interessante notar que o programa é um excelente exemplo de iniciativa que pode ser colocada em prática em todos os lugares”, pontuou a especialista em entrevista a EXAME.com.
Ela observa que o desempenho obtido pelo país no relatório mostra uma história positiva, mas não é surpreendente. Pelo menos por enquanto.
Em 2016, o país está na 64ª colocação entre os mais igualitários, duas posições abaixo do registrado em 2015 e distante do topo do ranking. Seu desempenho em indicadores relacionados à saúde e educação se aproximam da igualdade total. Contudo, em participação econômica e política, ainda há muito a ser feito.
Um dos aspectos que podem acelerar a evolução de El Salvador em direção à igualdade de gênero, explica Saadia, é apostar em aumentar participação política das mulheres, algo que países como a Nicarágua já conseguiram atingir.
El Salvador está distante da igualdade, é verdade. Entretanto, esse pequeno país da América Latina mostra conhecer o caminho para salvar as suas mulheres da violência. Resta saber se irá se manter nesta direção.