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Cem anos de solidão, o Dom Quixote latino-americano

Com 38 anos e quatro livros já publicados, García Márquez começou a escrever as primeiras palavras de sua obra cúpula

Gabriel García Márquez: escritor não deixou de escrever "nem um só dia" durante 18 meses até que terminou "Cem Anos de Solidão", contou (Edgard Garrido/Reuters)
DR

Da Redação

Publicado em 17 de abril de 2014 às 20h18.

Madri - Gabriel García Márquez dizia que não tinha feito outra coisa em sua vida que não fosse escrever histórias "para tornar mais feliz a vida de um leitor inexistente", e com esse desejo escreveu também "Cem anos de solidão", romance magistral do século XX que, em palavras de Carlos Fuentes, é "o Dom Quixote latino-americano".

Assim a definia Fuentes na carta que escreveu a Julio Cortázar após ler o manuscrito do romance que em breve se transformaria em obra cúpula do realismo fantástico e que para o escritor mexicano parecia "uma crônica exaltante e triste, um prosa sem desmaio, uma imaginação libertadora".

"Li o "Quixote" americano, um Quixote capturado entre as montanhas e a floresta, privado de planícies, um Quixote enclaustrado que, por isso, deve inventar o mundo a partir de quatro paredes derrubadas", contou Fuentes a Cortázar, em trecho lembrado no prólogo da edição comemorativa de "Cem anos de solidão" preparada pelas Academias da Língua Espanhola.

"Que maravilhosa recriação do universo inventado e reinventado! Que prodigiosa imagem cervantina da existência transformada em discurso literário, em passagem contínua e imperceptível do real ao divino e ao imaginário", disse o escritor mexicano, grande amigo de Gabo desde 1962.

Fuentes foi testemunha no México do nascimento da obra mestra do Prêmio Nobel colombiano quando o acompanhava em 1965 pela estrada que liga a Cidade do México a Acapulco e viu que García Márquez "se transformou", como tomado por uma revelação divina.

"Sem sabê-lo, eu tinha assistido ao nascimento de "Cem anos de solidão", esse instante de graça, de iluminação, de acesso espiritual, em que todas as coisas do mundo se ordenam espiritual e intelectualmente e nos ordenam: "Aqui estou. Assim sou. Agora escreva", diz nesse prólogo.

Com 38 anos e quatro livros já publicados já ("La hojarasca", "O coronel não tem quem lhe escreva", "Os funerais da Mamãe Grande" e "A má hora"), García Márquez começou a escrever as primeiras palavras de sua obra cúpula: "Muitos anos depois, diante do pelotão de fuzilamento, o Coronel Aureliano Buendía havia de recordar aquela tarde remota em que seu pai o levou para conhecer o gelo".


Não tinha "a menor ideia" do que significavam essas palavras nem de como seguiria depois. Mas não deixou de escrever "nem um só dia" durante 18 meses até que terminou o livro, contou o escritor em Cartagena de Indias (Colômbia) em 2007, no Congresso Internacional da Língua Espanhola.

O escritor não sabia como sobreviveram sua mulher, Mercedes Barcha, e ele durante o tempo que durou o processo de composição, mas "não faltou nem um dia comida na casa", lembrou García Márquez naquela ocasião.

"Jamais trabalhei em solidão comparável - dizia o escritor em carta dos anos 60 a Carlos Fuentes - (...), sofro como um condenado pondo a raia a retórica, buscando tanto as leis como os limites do arbitrário, surpreendendo a poesia quando a poesia se distrai, brigando com as palavras".

"Às vezes me ataca o pânico de não ter dito nada ao longo de quinhentas páginas; às vezes, queria seguir escrevendo o livro o resto da minha vida, em cem volumes, para não ter mais vida que esta", contou a Fuentes.

Mario Vargas Llosa analisou em profundidade "Cem anos de solidão" em seu ensaio "História de um deicídio", no qual afirma que essa obra é "um romance total, na linha dessas criações demencialmente ambiciosas que competem com a realidade do mesmo ao mesmo, com uma imagem de uma vitalidade, vastidão e complexidade qualitativamente equivalentes".

Para Vargas Llosa, "Cem anos de solidão" é um dos raros casos de "obra literária maior contemporânea" que todos podem entender e desfrutar.

Na origem do genial romance está também a viagem que o escritor colombiano fez em 1950 com sua mãe a Aracataca, para vender a casa onde tinha passado sua infância, como evoca García Márquez em suas memórias, "Viver para Contar".

Quando chegaram à cidade, o choque com a realidade foi terrível. Aracataca tinha se transformado em uma cidade poeirenta, quente e parecia uma cidade fantasma: não havia uma alma nas ruas.

A mãe do escritor entrou em uma pequena botica e se encontrou com uma antiga conhecida. Ambas "se abraçaram e choraram durante meia hora. Não se disseram uma só palavra". García Márquez as olhava "estremecido pela certeza de que aquele longo abraço de lágrimas caladas era algo irreparável que estava ocorrendo para sempre" em sua própria vida, conta em suas memórias.

Foi então que García Márquez viu claro que tinha que contar "todo o passado daquele episódio".

Anos depois, ele escreveria "Cem anos de solidão", esse livro que, segundo Álvaro Mutis, "cada geração receberá como uma chamada do destino e do tempo, e suas mudanças pouco poderão contra ela".

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Madri - Gabriel García Márquez dizia que não tinha feito outra coisa em sua vida que não fosse escrever histórias "para tornar mais feliz a vida de um leitor inexistente", e com esse desejo escreveu também "Cem anos de solidão", romance magistral do século XX que, em palavras de Carlos Fuentes, é "o Dom Quixote latino-americano".

Assim a definia Fuentes na carta que escreveu a Julio Cortázar após ler o manuscrito do romance que em breve se transformaria em obra cúpula do realismo fantástico e que para o escritor mexicano parecia "uma crônica exaltante e triste, um prosa sem desmaio, uma imaginação libertadora".

"Li o "Quixote" americano, um Quixote capturado entre as montanhas e a floresta, privado de planícies, um Quixote enclaustrado que, por isso, deve inventar o mundo a partir de quatro paredes derrubadas", contou Fuentes a Cortázar, em trecho lembrado no prólogo da edição comemorativa de "Cem anos de solidão" preparada pelas Academias da Língua Espanhola.

"Que maravilhosa recriação do universo inventado e reinventado! Que prodigiosa imagem cervantina da existência transformada em discurso literário, em passagem contínua e imperceptível do real ao divino e ao imaginário", disse o escritor mexicano, grande amigo de Gabo desde 1962.

Fuentes foi testemunha no México do nascimento da obra mestra do Prêmio Nobel colombiano quando o acompanhava em 1965 pela estrada que liga a Cidade do México a Acapulco e viu que García Márquez "se transformou", como tomado por uma revelação divina.

"Sem sabê-lo, eu tinha assistido ao nascimento de "Cem anos de solidão", esse instante de graça, de iluminação, de acesso espiritual, em que todas as coisas do mundo se ordenam espiritual e intelectualmente e nos ordenam: "Aqui estou. Assim sou. Agora escreva", diz nesse prólogo.

Com 38 anos e quatro livros já publicados já ("La hojarasca", "O coronel não tem quem lhe escreva", "Os funerais da Mamãe Grande" e "A má hora"), García Márquez começou a escrever as primeiras palavras de sua obra cúpula: "Muitos anos depois, diante do pelotão de fuzilamento, o Coronel Aureliano Buendía havia de recordar aquela tarde remota em que seu pai o levou para conhecer o gelo".


Não tinha "a menor ideia" do que significavam essas palavras nem de como seguiria depois. Mas não deixou de escrever "nem um só dia" durante 18 meses até que terminou o livro, contou o escritor em Cartagena de Indias (Colômbia) em 2007, no Congresso Internacional da Língua Espanhola.

O escritor não sabia como sobreviveram sua mulher, Mercedes Barcha, e ele durante o tempo que durou o processo de composição, mas "não faltou nem um dia comida na casa", lembrou García Márquez naquela ocasião.

"Jamais trabalhei em solidão comparável - dizia o escritor em carta dos anos 60 a Carlos Fuentes - (...), sofro como um condenado pondo a raia a retórica, buscando tanto as leis como os limites do arbitrário, surpreendendo a poesia quando a poesia se distrai, brigando com as palavras".

"Às vezes me ataca o pânico de não ter dito nada ao longo de quinhentas páginas; às vezes, queria seguir escrevendo o livro o resto da minha vida, em cem volumes, para não ter mais vida que esta", contou a Fuentes.

Mario Vargas Llosa analisou em profundidade "Cem anos de solidão" em seu ensaio "História de um deicídio", no qual afirma que essa obra é "um romance total, na linha dessas criações demencialmente ambiciosas que competem com a realidade do mesmo ao mesmo, com uma imagem de uma vitalidade, vastidão e complexidade qualitativamente equivalentes".

Para Vargas Llosa, "Cem anos de solidão" é um dos raros casos de "obra literária maior contemporânea" que todos podem entender e desfrutar.

Na origem do genial romance está também a viagem que o escritor colombiano fez em 1950 com sua mãe a Aracataca, para vender a casa onde tinha passado sua infância, como evoca García Márquez em suas memórias, "Viver para Contar".

Quando chegaram à cidade, o choque com a realidade foi terrível. Aracataca tinha se transformado em uma cidade poeirenta, quente e parecia uma cidade fantasma: não havia uma alma nas ruas.

A mãe do escritor entrou em uma pequena botica e se encontrou com uma antiga conhecida. Ambas "se abraçaram e choraram durante meia hora. Não se disseram uma só palavra". García Márquez as olhava "estremecido pela certeza de que aquele longo abraço de lágrimas caladas era algo irreparável que estava ocorrendo para sempre" em sua própria vida, conta em suas memórias.

Foi então que García Márquez viu claro que tinha que contar "todo o passado daquele episódio".

Anos depois, ele escreveria "Cem anos de solidão", esse livro que, segundo Álvaro Mutis, "cada geração receberá como uma chamada do destino e do tempo, e suas mudanças pouco poderão contra ela".

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