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Acordo entre EUA e China: bipolaridade e trégua para o comércio global

Acordo pode trazer tempos de paz para o comércio entre os países, mas mundo sentirá os reflexos da tratativa, escreve Renata Amaral, da American University

Acordo comercial entre Estados Unidos e China é assinado: tratativa deve trazer alguma paz para o comércio global, escreve Renata Amaral (Kevin Lamarque/Reuters)

Acordo comercial entre Estados Unidos e China é assinado: tratativa deve trazer alguma paz para o comércio global, escreve Renata Amaral (Kevin Lamarque/Reuters)

Gabriela Ruic

Gabriela Ruic

Publicado em 15 de janeiro de 2020 às 15h49.

Última atualização em 15 de janeiro de 2020 às 15h51.

Aparentemente, 2020 começa com mais um gol do presidente dos Estados Unidos, Donald Trump. Pelo menos é nesse tom que ele tem feito muito barulho sobre o acordo de comércio entre Pequim (China) e Washington. Assinada nesta quarta-feira (15), na Casa Branca, a primeira fase do acordo comercial entre os dois gigantes tem causado tensão dos mercados e expectativas ao redor do globo.

Desde dezembro do ano passado, quando Trump anunciou a conclusão da primeira fase de um mega acordo entre Estados Unidos e China, o mercado aguarda ansiosamente pela liberação do texto que revelará o compromisso entre os países. Naquele momento, o documento que foi divulgado pelo USTR (sigla em inglês do Escritório da Autoridade Comércio dos EUA) indicava um “acordo histórico” com compromissos chineses que precediam reformas estruturais e mudanças em aspectos econômicos. Entre eles, temas sensíveis de propriedade intelectual (como a transferência de tecnologia), compras de produtos agrícolas e bens manufaturados americanos, energia, remoção de barreiras a serviços financeiros americanos e uma significativa expansão de comércio entre as duas economias.

Sem atacar problemas de fundo que os americanos têm com a administração da economia por parte do governo chinês, os números relativos a expansão de comércio que constava na publicação do USTR indica o compromisso dos asiáticos de importar vários bens e serviços dos Estados Unidos nos próximos dois anos em um valor total que excede o nível anual de importações da China para esses bens e serviços em 2017 (antes da guerra comercial). Serão nada menos que US$ 200 bilhões ao longo de dois anos, com vistas a reduzir um déficit comercial bilateral dos Estados Unidos que chegou a US$ 420 bilhões em 2018. Um dos principais objetivos desta primeira fase do acordo, portanto, é justamente amenizar o déficit comercial americano em relação à China.

Acordo entre Estados Unidos e China e a campanha eleitoral de 2020

Estados Unidos e China tem excelentes negociadores, e não são só os americanos que ganham com a assinatura desse acordo. Aliás, já na última segunda-feira (13) o Tesouro americano retirou a China da lista de países manipuladores de moeda, um primeiro sinal dos benefícios conferidos aos chineses. Como parte do acordo, Pequim se comprometeu a não manipular o valor da moeda em troca de uma suspensão parcial das taxas alfandegárias impostas por Washington sobre os bens importados da China.

O texto assinado hoje na Casa Branca confirma o que já havia sido antecipado pelo documento de 1 página e meia divulgado em dezembro do ano passado. Sua assinatura, aliás, foi um claro ato eleitoreiro por parte de Trump. Não à toa, o vice-presidente, Mike Pence, começou seu discurso dizendo que aquele seria bom dia para a América, para a China e para o mundo, e o presidente Trump fez questão de dedicar boa parte do discurso dizendo aos agricultores e produtores americanos que não precisariam mais se preocupar.

Para além da redução de tarifas, o acordo impulsiona compras chinesas e foca em alvos numéricos: a compra por parte dos chineses de US$ 200 bilhões em bens fabricados nos EUA nos próximos dois anos, compra de US$ 75 bilhões em manufaturados, compra de US$ 50 bilhões em energia e compra de até US$ 50 bilhões em produtos agrícolas.

A celebração de hoje, no entanto, não significa o fim da guerra comercial, tampouco anula a maior parte das tarifas impostas pelos EUA de aproximadamente US$ 360 bilhões sobre produtos originários da China. Também não inclui problemas estruturais do sistema econômico chinês – como subsídios às empresas domésticas e uma economia de mercado não capitalista -, parte central das reclamações do governo americano. Ou seja, os problemas de fundo não são resolvidos e o acordo apenas exige que o governo chinês reoriente suas compras para os EUA.

O acordo com a China era uma das promessas de campanha de Trump para 2020. Claramente, o que se viu hoje traz respostas e acalenta uma parte importante de sua base eleitoral, que é formada pelos agricultores. Com efeito, um dos resultados da guerra comercial travada com a China desde 2018 foi a perda de mercado de produtos agrícolas americanos para outros concorrentes internacionais importantes, como o Brasil. Muitos produtores sentiam-se traídos pelo presidente e estavam considerando, inclusive, votar em um democrata. Pelo menos por enquanto, os ânimos irão se acalmar.

Onde fica o Brasil nesse quebra-cabeça? O agro e a OCDE

O Brasil aproveitou de benefícios concretos da guerra comercial entre EUA e China nos últimos dois anos. Com efeito, 2018 e 2019 registram recordes para nossas exportações de carne, soja, algodão e outras commodities para a China. Vale observar que, nos produtos do agronegócio, fatores alheios à guerra comercial, como a peste suína na China, colaboraram expressivamente para o aumento das nossas exportações de carne de porco para o país no último ano. De qualquer maneira, os números registrados pelo Brasil indicam que o país foi beneficiado pela batalha entre os gigantes (o que não passou despercebido nem por Trump, nem pelos produtores norte-americanos) e esse acordo agora deve respingar em nossas exportações para a China.

Com todos esses sinais, é tarefa do Brasil procurar incrementar seu acesso a outros mercados importantes da Ásia (e Oriente Médio – já na mira do atual governo). O setor privado soube aproveitar as oportunidades temporárias advindas da guerra comercial, mas agora é bom momento de o Brasil ser criativo, aproveitar o otimismo dos mercados. É hora de usar as bases e redes criadas, o potencial exportador, a reputação e competitividade do nosso agronegócio para acessar novos mercados e consolidar pontes deixadas em segunda plano em razão do êxtase com as compras feitas da China dos últimos dois anos.

Ainda sobre o Brasil, importa destacar que também hoje, em reunião em Paris, os Estados Unidos decidiram apoiar irrestritamente a entrada do Brasil na Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), um possível ato de simpatia para com o país despois de tantas declarações de boa vontade por parte do Brasil em 2019 sem reciprocidade (lembremos, por exemplo, do aumento da quota de etanol para os Estados Unidos e a liberação de visto para os americanos).

Para o Brasil a notícia é boa. Acelerar a adesão do país à OCDE fará bem à imagem internacional do país, significa estímulo à melhoria do ambiente de negócios e ao alinhamento à melhores práticas regulatórias internacionais. Também contribui para o fortalecimento das instituições brasileiras e do compromisso do Brasil com mudanças internas e estruturais há muito tempo desejadas.

Problemas com compromissos de ambos os países na OMC

A falta de transparência, e o claro tratamento discriminatório entre os membros da Organização Mundial do Comércio (OMC) estão entre as aparentes violações do Acordo Comercial entre China e EUA perante as regras do comércio multilateral.

Um dos pilares das regras da OMC é justamente que seja concedido tratamento não-discriminatório entre todos os seus 164 membros. O comércio administrado entre Estados Unidos e China, com promessas de compras e vendas entre os dois países e concessão de benefícios bilaterais que não serão estendidos a outros membros da OMC ferem diretamente um dos pilares da organização sediada em Genebra. A ver como se comportarão países terceiros nessa nova formatação do comércio bilateral entre os dois gigantes, uma formatação que afetará o comércio do mundo inteiro.

Finalmente, é interessante observar que ao passo que hoje os EUA assinam acordo com a China sem dar importância para os seus compromissos perante a OMC, ontem, 14 de janeiro, Robert Lighthizer, Representante de Comércio dos Estados Unidos, Kajiyama Hiroshi, Ministro da Economia, Comércio e Indústria do Japão, e Phil Hogan, Comissário Europeu para o Comércio, reuniram-se em Washington e publicaram uma declaração conjunta sobre a necessidade de fortalecer as regras da OMC sobre subsídios industriais. Basicamente, essas autoridades afirmam que a lista atual de subsídios proibidos, prevista no Artigo 3.1 do Acordo sobre Subsídios e Medidas Compensatórias (ASCM) da OMC, é insuficiente para combater os subsídios que distorcem o mercado e o comércio, e que há necessidade de revisão e expansão da lista.

Mesmo com uma trégua temporária entre os dois maiores players do mundo e uma calmaria bem recebida pelas bolsas internacionais (já que cerca de 40% do PIB mundial está, teoricamente, em “paz”), 2020 promete ainda mais fortes emoções para quem acompanha o comércio internacional.

*Renata Amaral é doutora em Direito do Comércio Internacional, professora Adjunta na American University, em Washington DC e fundadora da rede Women Inside Trade

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