CARACAS: deputados em confronto com a polícia na entrada da Suprema Corte de Justiça / Carlos Garcia Rawlins/ Reuters
Da Redação
Publicado em 30 de março de 2017 às 17h26.
Última atualização em 22 de junho de 2017 às 18h02.
Lourival Sant’Anna
As tensões políticas e a desorganização institucional da Venezuela se elevaram a um novo patamar nesta quinta-feira, depois que o Tribunal Supremo de Justiça (TSJ), controlado pelo governo, assumiu as funções da Assembleia Nacional, de maioria oposicionista. Foi a explicitação de uma situação que já existia de facto: o tribunal anulou no último ano todas as decisões do Parlamento que desagradavam o governo.
O presidente da Assembleia, o líder oposicionista Julio Borges, convocou a população a sair às ruas para protestar contra o que chamou de “ditadura”. E ainda entrou num território delicado, ao pedir que as Forças Armadas assumam posição. Relatório da empresa de inteligência Stratfor afirma que o governo teme um golpe liderado por oficiais que comandam unidades regionais.
Num país cuja economia depende quase integralmente da exploração do petróleo, o gatilho para a intervenção do TSJ não poderia ser outro que não uma disputa pelo controle sobre essa riqueza. Quatro advogadas haviam apresentado um recurso ao TSJ que garantisse que a formação de empresas mistas de exploração de petróleo, conduzida pelo governo, tivesse de ser aprovada pela Assembleia Nacional (AN), com base na Constituição e na Lei Orgânica de Combustíveis Fósseis.
O TSJ decidiu que “não há impedimento algum” para o Executivo criar as empresas. E acrescentou que a AN está “atuando de facto” e “em desacato” a sua ordem de impugnar a eleição de três deputados do Estado do Amazonas.
“Adverte-que, enquanto persistir a situação de desacato e invalidez das atuações da Assembleia Nacional, esta Sala Constitucional garantirá que as competências parlamentares sejam exercidas diretamente por esta Sala ou por órgão que ela dispuser, para velar pelo Estado de Direito”, conclui o despacho, que na prática enterra a independência dos Poderes e, com ela, o Estado de Direito que afirma defender.
“Esperamos que o povo nos acompanhe”, pediu Borges, em entrevista coletiva. “Sabemos que há medo e repressão, mas é o momento de ficarmos de pé. A Venezuela tem fome de alimentos, justiça e liberdade.” A convocação desperta temores de confrontos entre manifestantes e as forças de segurança e militantes chavistas, como os que aconteceram entre fevereiro e maio de 2014, que mataram 43 pessoas. O líder oposicionista Leopoldo López, acusado de incitar a violência, foi condenado a 13 anos e 9 meses de prisão.
Borges não quis dar detalhes da mobilização, para evitar que o governo “a reprima desde já”. Mas adiantou que, na semana que vem, a frente de oposição promoverá “uma grande ação de rua”.
A oposição obteve a maioria na AN nas eleições de dezembro de 2015. Em seguida, o governo substituiu parte dos juízes do TSJ para garantir sua fidelidade total. A partir de janeiro de 2016, quando a nova maioria assumiu, o Supremo passou a anular sistematicamente suas decisões — e, na prática, a legislar. Entre as decisões derrubadas, estava a anistia a presos políticos, a nomeação de novos membros para o Conselho Nacional Eleitoral (CNE, controlado pelos chavistas) e uma abertura de processo para destituir o presidente Nicolás Maduro. O Supremo apoiou decisões do CNE que impediram a realização de um referendo revogatório da presidência de Nicolás Maduro, como prevê a Constituição, até janeiro, antes de seu mandato chegar à metade, o que levaria a nova eleição. Até mesmo o orçamento para este ano foi decretado pelo TSJ.
Borges rasgou na frente dos jornalistas o documento com a decisão do Supremo, chamando-o de “lixo”, e declarou: “Esta sentença outorga a Nicolás Maduro um poder para fazer o que quiser. Isto é uma ditadura”. Ele acrescentou que o objetivo do governo é evitar que o Parlamento controle as sociedades formadas para explorar petróleo: “Todas essas explorações petrolíferas são nulas e as desconhecemos também”.
Finalmente, fez um chamado aos militares: “Não vamos aceitar nada do que não aparece na Constituição e as Forças Armadas devem formar parte das soluções para o país”. O ex-presidente Hugo Chávez, que governou entre 1999 e 2013, quando morreu de câncer, realizou expurgos nos comandos militares e politizou a corporação, rebatizando-a de Forças Armadas Bolivarianas.
Maduro, sucessor de Chávez, tem garantido a lealdade dos comandantes com duas outras providências: usando espiões militares cubanos para vigiá-los e distribuindo cargos aos oficiais nos negócios de importação. Com dois câmbios oficiais e um paralelo, essa é a atividade econômica mais lucrativa na Venezuela.
De acordo com fontes anônimas venezuelanas citadas no relatório da Stratfor, o Diretório de Contra-Inteligência Militar começou a monitorar mais de perto oficiais de patentes intermediárias que atuam nas Regiões de Defesa Estratégica e nas Zonas de Defesa Estratégica. “Aparentemente, Caracas está preocupada com a lealdade dessas figuras”, observa o relatório da consultoria de segurança americana. “A preocupação básica do governo é que os oficiais dessas unidades têm espaço para agir — e encorajar seus subordinados a segui-los — sem o conhecimento imediato de seus superiores.”
Em reunião na terça-feira, a Organização dos Estados Americanos (OEA) exortou o governo e a oposição da Venezuela a superar suas divergências por meio do diálogo. “Há um clamor continental que vai do Alasca à Terra do Fogo, dizendo ao regime para libertar os prisioneiros políticos, dizendo que quer democracia para o país”, disse o secretário-geral da OEA, Luis Almagro, antes da reunião.
O ex-chanceler uruguaio defende a suspensão da Venezuela da OEA, medida já tomada pelo Mercosul no fim do ano passado, sob a liderança do governo brasileiro. Mas essa visão está longe de ser unânime entre os 35 membros da OEA, que incluem países aliados do regime chavista, como Cuba, Equador, Bolívia e Nicarágua. E a OEA só toma decisões por consenso.
Na semana passada, 14 países, incluindo Brasil, EUA, Canadá e México, exigiram que o governo venezuelano liberte os prisioneiros políticos, realize as eleições estaduais marcadas para dezembro — e suspensas pelo regime — e respeite as decisões da AN. Há uma reunião de presidentes dos Parlamentos desses países marcada para o dia 23 de maio em Brasília para intensificar as pressões. Mas a decisão desta quinta-feira do TSJ e a reação da oposição devem precipitar reações mais imediatas na região. Pode não ser do Alasca à Terra do Fogo. Mas será eloquente.