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Do garrafão aos concursos internacionais

No dia quatro de dezembro do ano passado, cerca de 60 enólogos, representando 15 países, reuniram-se na cidade de Bordeaux, na França, para eleger a nova diretoria da União Internacional dos Enólogos (UIE), criada em 1963 em Paris. Escolhido o presidente, o italiano Giuseppe Martelli, abriram-se as inscrições para a primeira vice-presidência. Fez-se um silêncio […]

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Da Redação

Publicado em 9 de outubro de 2008 às 09h54.

No dia quatro de dezembro do ano passado, cerca de 60 enólogos, representando 15 países, reuniram-se na cidade de Bordeaux, na França, para eleger a nova diretoria da União Internacional dos Enólogos (UIE), criada em 1963 em Paris. Escolhido o presidente, o italiano Giuseppe Martelli, abriram-se as inscrições para a primeira vice-presidência. Fez-se um silêncio na sala. Vendo que ninguém se manifestava, Antônio Czarnobay, gaúcho de Seberi, Rio Grande do Sul, presidente da Associação Brasileira de Enologia, se candidatou. Italianos e franceses, em maioria, olharam-se surpresos. Nunca, em 40 anos, um profissional de fora da Europa havia participado da diretoria da União.

Mas Czarnobay foi eleito. Estamos colocando o Brasil no cenário internacional do vinho , diz o enólogo que há quase 30 anos trabalha na vinícola Aurora, a maior do país.

A mesma surpresa provocada por Czarnobay entre os tradicionais produtores da bebida que há 7 000 anos fascina a humanidade, tem sido causada por vinhos finos elaborados por profissionais como ele na serra gaúcha, região na qual são produzidos 90% dos vinhos brasileiros. Com a mesma ousadia do enólogo ao postular um cargo na UIE, produtores nacionais têm colocado sua bebida à prova. Na última década, o vinho nacional saiu do garrafão para os concursos internacionais e a conquista de importantes prêmios comprova que o produto brasileiro evoluiu.

Fatores que vão da modernização das cantinas à introdução de novas tecnologias e novas mudas, passando pela descoberta das ferramentas do marketing e de novas regiões para o plantio de videiras, ajudam a explicar o que está acontecendo na serra gaúcha. Afinal, o que faz um bom vinho é o que os franceses chamam de Teroir, uma mescla de bom clima, bom solo, manejo correto da videira, tecnologia e o trabalho do enólogo na vinícola. A ascensão de uma nova geração, especialmente nas pequenas cantinas familiares é outro item importante a impulsionar essa nova era do vinho brasileiro. São netos e bisnetos de imigrantes, com diploma de enologia na parede e idéias inovadoras na cabeça.

Entre as conquistas recentes dessa turma, está a indicação de procedência para o Vale dos Vinhedos, uma região exuberante entre Bento Gonçalves, Garibaldi e Monte Belo do Sul, que é a primeira no Brasil a receber a certificação do Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI). Nossa meta é que cada região tenha seu vinho, com a sua identidade , diz Jaime Milan, diretor executivo da Associação dos Produtores de Vinhos Finos do Vale dos Vinhedos, a Aprovale.

Rompemos um ciclo vicioso , diz Antônio Salton, diretor da Salton, de Bento Gonçalves. A ruptura começou com a abertura da economia brasileira no início dos anos 90, quando uma enxurrada de vinhos importados entrou no país e muitos produtores imaginaram que seria o fim. Se, nos anos 80, os importados não chegavam a 10% do mercado de vinhos finos no Brasil, hoje eles são donos de metade desse mercado, estimado em 60 milhões de litros. Nós perdemos espaço mas agregamos valor , diz Adriano Miolo, diretor da vinícola da família.

Jovens enólogos como ele, que começavam a retornar às cantinas depois de estudar em Mendoza, na Argentina - na época, o Brasil não possuía um curso superior de enologia -, preferiram arregaçar as mangas e ir à luta. Com a crise que se abateu sobre as grandes vinícolas, como a Aurora, as pequenas cantinas encontraram espaço para mostrar seu produto. Nos anos 90, despontaram marcas como Miolo, Valduga, Don Laurindo, Dal Pizzol, Marson, Pizzato. O movimento de resistência iniciado dentro das propriedades familiares acabou por motivar as vinícolas maiores. Não fosse a competição, o vinho brasileiro ainda estaria no mesmo patamar de 20 anos atrás , diz José Luiz Alvim Borges, presidente da Associação Brasileira de Sommeliers de São Paulo.

Um dos casos mais exemplares é o da vinícola Miolo. Tradicionais produtores de uva no Vale dos Vinhedos, os Miolo criaram sua própria vinícola em 1990, mas apenas entre 1994 e 1995 seus vinhos chegaram ao mercado. Em 1997, a vinícola faturou 1,1 milhão de reais. No ano passado, foram 41,9 milhões. Focamos em quatro pontos: os vinhedos, a cantina, o grupo técnico e a comercialização , diz Adriano Miolo, um jovem de 34 anos que, junto com quatro irmãos, toca o negócio da família. Além da bela sede no Vale dos Vinhedos, onde elaboram o vinho, recebem turistas e promovem cursos de degustação, os Miolo estão plantando uvas na Campanha (a mais promissora região gaúcha para os tintos) e no Vale do São Francisco, no norte da Bahia.

A promoção sistemática do vinho que produz é, talvez, um dos maiores exemplos dados pela família. A empresa investe 5% do faturamento bruto em promoção e marketing. Cada ação diferenciada é devidamente divulgada. Este ano, Adriano Miolo trará um consultor internacional para sua vinícola, o enólogo francês Michel Rolland, que assessora mais de 100 empresas em 12 países. Também está lançando o projeto Miolo em Taça , em parceria com a multinacional Nestlé, no qual 150 restaurantes selecionados vendem vinho Miolo em taça, acompanhado por água mineral da Nestlé. Miolo também faz questão de associar seu nome à cultura. Há três anos fornece o espumante do camarote de Daniela Mercury no carnaval de Salvador. No último São Paulo Fashion Week, foi parceiro do estilista Reinaldo Lourenço, que promete acompanhar também em eventos no exterior.

As coisas mudaram muito na serra gaúcha. À sombra de um parreiral perfumado pelas uvas maduras, um senhor alvo, olhos profundamente azuis, relembra o tempo em que o seu avô começou a plantar as primeiras mudas no Vale dos Vinhedos, no final do século 19. Luiz Valduga, 78 anos, conta orgulhoso que ele também foi um pioneiro ao plantar as primeiras mudas de viníferas no Vale, nos anos 30. Eram uvas Cabernet e Merlot que, durante muitos anos, os Valduga venderam para as grandes vinícolas da região. Só em 1979 seu Luiz fez a primeira pipa de vinho, para consumo familiar. Meu sonho era ter o meu vinho , diz. Não imaginava que isso pudesse ser um grande negócio.

João Valduga, 48 anos, filho de Luiz, trabalhou como pesquisador da Embrapa por 23 anos e estudou enologia antes de assumir os negócios da família, em 1996. Quando eu dizia para a mãe (dona Maria, hoje com 72 anos) que deveríamos construir uma pousada ou um restaurante, ela perguntava: para quem? Quem vai vir aqui? , conta Valduga. Hoje, a Valduga tem pousada, restaurante e, além do vinho de excelente qualidade - é uma das cantinas familiares com maior número de premiações -, elabora geléias, sucos, grapa (a cachaça feita de uva) e vinagre balsâmico. A vinícola produz entre 800 000 e 1 milhão de litros que João se recusa a vender em supermercados. Não quero ser mais um no mercado , diz Valduga. Cerca de 40% do seu vinho é vendido para os melhores restaurantes, hotéis e casas especializadas de São Paulo. Os outros 60%, no resto do país.

Valduga tem clientes cativos. Entre as pipas da cantina há algumas nas quais estão grafados nomes conhecidos, como Gerdau, Ford, Marcopolo, Banco do Brasil. Nessas pipas há um vinho analisado e escolhido pelo cliente. Todos os meses, a Valduga entrega-lhes uma quantidade de garrafas daquela pipa.

Apesar das histórias de sucesso, o consumo anual de vinho no Brasil ainda é baixíssimo: cerca de 1,8 litro per capita. O vinho está atrás da cerveja (50 litros por habitante) e da cachaça. Nosso trabalho é aumentar o consumo per capita , diz Milan, da Aprovale. Três litros per capita por ano seria um consumo monstro no Brasil. E ainda assim, seria muito pouco. Os italianos bebem, anualmente, 60 litros per capita e os franceses, 40 litros.

Entretanto, os brasileiros têm um exemplo a seguir: o do Napa Valley, na California. Há menos de três décadas, o consumo per capita americano era igual ao nosso , diz Milan. Hoje, é de 16 litros per capita por ano.

Os produtores brasileiros têm contado com um pouco de sorte nos últimos anos. A divulgação de estudos apontando os benefícios do vinho (especialmente o tinto) para a saúde está elevando o consumo da bebida. Além disso, o espumante tem aparecido cada vez com maior freqüência em happy hours, coquetéis e festas badaladas. O interesse despertado pelo vinho está provocando um aumento no número de cursos de degustação. A Sociedade Brasileira dos Amigos do Vinho, SBAV, criada em 1980, em São Paulo, por meia dúzia de aficionados pela bebida, tem hoje mais de 200 associados e já há quase uma dúzia de unidades espalhadas pelo país. Há poucos anos, fazíamos um curso anualmente , diz Daniel Pinto, vice-presidente. Hoje temos dois cursos básicos por semestre e dois avançados por ano. Só em São Paulo, a Associação Brasileira de Sommeliers, que existe há 20 anos no país, oferece oito cursos básicos por ano, cada um para mais de 60 alunos. Há poucos anos, eram dois cursos por ano e demorava para fechar uma turma de 20 , diz Borges, da ABS.

Os especialistas reconhecem que o maior trunfo nacional são os espumantes. Nosso espumante é excepcional , diz Pinto, da SBAV. O clima úmido e o solo argiloso e com muita acidez da serra gaúcha prejudicam os vinhos tintos, mas tem sido generosos com os brancos e espumantes. Os enólogos gaúchos dominam bem tanto a tecnologia champenoise, na qual a fermentação do espumante se dá na garrafa, quanto o método Charmat, no qual a fermentação se dá em tanques herméticos. Os espumantes brasileiros já ganham fama mundial em concursos internacionais desde 1995, ano em que o Brasil passou a integrar a OIV. Só no último concurso internacional de vinhos de Paris, o Vinalies 2003, ocorrido no final de fevereiro, seis espumantes gaúchos ganharam medalha de prata.

Os tintos começam a evoluir com a descoberta de novas fronteiras agrícolas, mais apropriadas ao cultivo das uvas usadas para sua elaboração. A região da Campanha, mais ao sul do estado, é o local preferido. Recentemente, uma dúzia de vinícolas começaram a plantar uvas no local. Ali chove pouco, o solo é arenoso e os terrenos são menos acidentados, permitindo a mecanização da lavoura e grandes extensões de vinhedos. São fatores que beneficiam os tintos, muito dependentes da qualidade da safra. A serra gaúcha tem produzido, no máximo, duas boas safras numa década. A terra do vinho brasileiro vai ser a Campanha , aposta Pinto, da SBAV. As novas fronteiras nos darão qualidade com escala e ficaremos mais competitivos frente aos importados , diz Adriano Miolo.

A zona da Campanha, próxima ao Uruguai, já havia sido descoberta pela então Seagram do Brasil, atual Pernod Ricard Brasil, dona das marcas Almadén e Forestier, há quase duas décadas. Há cinco anos, a Aurora está plantando uvas no Uruguai e já é o maior exportador de vinhos daquele país. A Aurora é uma das grandes do setor que deu a volta por cima e, de uma situação de quase falência, voltou para a linha de frente da vinicultura nacional. Precisamos avançar muito em qualidade , admite Carlos Zanotto, diretor operacional da Aurora. As novas fronteiras são fundamentais para conseguirmos isso.

A região da Campanha tem outro atrativo irresistível na comparação com a serra: o preço da terra. Na região de Bento Gonçalves, restam poucas opções e o Ibama está de olho no desmatamento. Resultado: enquanto pagam entre 1 000 e 2 000 reais o hectare na região da fronteira, os produtores precisam desembolsar até 18 mil reais por um hectare na serra gaúcha e muito mais que isso se o terreno for no Vale dos Vinhedos. Temos 76 hectares no Vale , diz Ângelo Salton, presidente da Salton. Já nos ofereceram 30 000 reais por um deles.

A Salton também tem terras na Campanha, onde está colhendo sua primeira safra este ano. Uma das maiores e mais antigas vinícolas da serra gaúcha, há apenas cinco anos, perto de completar 90, aventurou-se no ramo dos vinhos finos, com o lançamento da linha Salton Classic. Até o início dos anos 90, 80% do faturamento da empresa vinham do tradicional conhaque Presidente, produzido em São Paulo. Os outros 20%, dos vinhos comuns produzidos em Bento Gonçalves. A estagnação do mercado de destilados e a constatação de que o consumo de vinhos finos tende a aumentar, levou a Salton a investir o lucro do conhaque na produção de vinhos.

Em outubro de 1999, Ângelo Salton, 50 anos, visitou a Associação Brasileira de Sommeliers. Entrou na sala onde os experts degustavam seis vinhos, um deles da sua empresa. Pensei que íamos tirar o primeiro lugar , diz Salton. Ficamos em quinto e aquilo foi um balde de água gelada. Naquele dia, o empresário traçou uma meta: seu vinho ainda estaria nos 15 principais restaurantes de São Paulo.

Salton foi 10 vezes no Fasano até convencer o sommelier da casa, Manoel Beato, e acabou entrando na carta há dois anos. Hoje está no Gero, no La Tambouille, Leopoldo, Antiquarius, Figueira Rubaiyat. Salton transformou-se numa espécie de garoto-propaganda da vinícola. Ele que, há cinco anos nem era um grande apreciador de vinhos, com o lançamento do Classic passou a degustar e hoje bebe pelo menos dois cálices por dia. Depois de agregar o vinho fino ao seu portfólio, a Salton cresceu 61% nos últimos cinco anos, um crescimento médio de 15% ao ano. O faturamento de 1998 foi de 66,3 milhões de reais. O do ano passado, 107 milhões de reais.

Decidida a apostar também no enoturismo, a Salton está investindo 20 milhões de reais num projeto de no coração do Tuiuti, distrito de Bento Gonçalves. É quase um parque temático, com o que há de mais moderno em tecnologia para elaboração de vinhos e espumantes. A Salton chegou ao extremo de transportar antigas casas da colônia para o local, nas quais pretende mostrar como era a vida dos primeiros imigrantes italianos. A rota do vinho é um pólo turístico fantástico , diz Salton. De fato, demorou para os produtores perceberem que qualquer turista do mundo gostaria de comer, beber, colher uvas e dormir naquele cenário de sonho.

Ângelo Salton, como Adriano Miolo, também tem investido em marketing. Recentemente, lançou a linha Salton Volp, com rótulos que reproduzem as bandeirinhas do artista plástico Alfredo Volp. A mesma estratégia está sendo usada pela Aurora que, na metade do ano vai lançar, em Miami, uma linha cujos rótulos serão obras do artista plástico Romero Britto.

Apesar de concorrentes, as vinícolas estão unindo esforços para ganhar espaço no mercado externo. Há um ano, Salton, Miolo, Valduga, Aurora e Lovara uniram-se num consórcio, o Wine from Brasil, para participar de feiras e fazer exportações conjuntas. Até agora, apenas a Miolo e a Aurora estão vendendo alguma coisa lá fora e, nos próximos meses, a Valduga vai iniciar exportações para os Estados Unidos.

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