O Brasil entre a inovação e a colonização digital
A decisão da Meta levanta questões sobre a posição do Brasil na economia digital global, enquanto o país navega entre inovação, proteção de dados e soberania tecnológica
Chief Artificial Intelligence Officer da Exame
Publicado em 18 de julho de 2024 às 13h43.
Última atualização em 18 de julho de 2024 às 14h26.
A recente decisão da Meta de suspender recursos deinteligência artificial (IA)em seus produtos no Brasil, seguindo diretrizes da Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD), não é apenas uma questão de conformidade regulatória. Trata-se de um ponto de inflexão que me fez refletir sobre o papel do Brasil na economia digital global.
Com 148 milhões de usuários de WhatsApp, o Brasil é o segundo maior mercado da plataforma, atrás apenas da Índia e seus 390 milhões de usuários. Esses números impressionantes revelam não apenas o alcance da Meta, mas também o imenso volume de dados que essas populações geram diariamente. Dados que, vale ressaltar, são o novo petróleo da era digital. Isso sem considerar o volume do Instagram e do Facebook.
Tecno-feudalismo
Recentemente, li o livro "Tecno-feudalismo", escrito pelo ex-ministro das finanças da Grécia, Yanis Varoufakis, que aborda justamente essa dinâmica de poder na era digital. O autor argumenta que estamos testemunhando o surgimento de um novo sistema econômico onde gigantes tecnológicos acumulam riquezas e poder sem precedentes, extraindo valor dos dados de bilhões de usuários globalmente.
O livro levantou em mim uma questão incômoda: não estaríamos diante de uma nova forma de colonização, onde os lucros gerados com os dados das populações brasileira e indiana fluem diretamente para os cofres de empresas sediadas em outros países?
Regulamentação da IA ao redor do mundo
Esta dinâmica se torna ainda mais complexa quando consideramos as disparidades nas regulações de IA ao redor do mundo, revelando não apenas questões técnicas, mas profundas implicações geopolíticas:
- China e Rússia: Proíbem ou restringem severamente a operação da Meta e outras plataformas ocidentais. Esta não é apenas uma questão de proteção de dados, mas uma clara estratégia geopolítica. É impensável, do ponto de vista destes governos, permitir que um potencial adversário americano treine seus modelos de IA com dados de cidadãos chineses ou russos. Esta postura reflete uma compreensão aguda do valor estratégico dos dados na era da IA.
- União Europeia: O AI Act propõe uma abordagem baseada em risco, com regulações mais rígidas para IA considerada de "alto risco". A UE busca um equilíbrio entre inovação e proteção dos direitos dos cidadãos, mas sua abordagem também pode ser vista como uma forma de resistência à dominação tecnológica americana.
- Estados Unidos: Embora seja o berço de muitas das maiores empresas de tecnologia, o país ainda luta para estabelecer uma regulação federal abrangente para IA e uso de dados. Esta lacuna regulatória tem permitido que empresas como a Meta operem com relativa liberdade em seu mercado doméstico.
- Índia: Com sua enorme base de usuários, o país está desenvolvendo uma abordagem mais permissiva, focando no uso de IA para desenvolvimento econômico e social. Esta postura pode ser vista como uma aposta arriscada: trocar acesso a dados por desenvolvimento tecnológico acelerado.
Data | Usuários (milhões) |
---|---|
Índia | 390 |
Brasil | 148 |
Indonésia | 112 |
Estados Unidos | 98 |
Filipinas | 88 |
México | 77 |
Turquia | 56 |
Egito | 55 |
Alemanha | 44 |
Nigéria | 40 |
Itália | 35 |
Fonte: eMarketer
Museu de novidades
Mesmo antes dessa controvérsia, a IA já estava sendo amplamente utilizada para treinar algoritmos em plataformas como Instagram e Facebook. Estes algoritmos determinam o conteúdo que vemos, as pessoas com quem nos conectamos e até mesmo os produtos que compramos. A diferença agora é a escala e a sofisticação dos modelos de IA generativa, que podem criar conteúdo original e interagir de formas mais avançadas com os usuários.
Vendo o que aconteceu nos últimos anos com o fenômeno das redes sociais, me pergunto: estaríamos arriscando nossa competitividade global ao impor restrições que países como a Índia não adotam? Ou estamos, como China e Rússia, dando um passo necessário para proteger nossa soberania digital? E mais importante, como podemos garantir que o uso de nossos dados em IA beneficie primariamente nossa própria economia e sociedade?
As guerras da IA
A integração de IA avançada diretamente em plataformas como o WhatsApp representa uma nova fronteira nesta guerra tecnológica. Se a Meta conseguir dominar o mercado de IA generativa através de sua presença no Brasil, qual seria o impacto na nascente indústria de IA do país? Como garantir que startups e empresas brasileiras tenham espaço para inovar e competir?
Interessante observar as diferentes estratégias adotadas pelos gigantes do setor. Enquanto a Meta busca integrar IA diretamente em suas plataformas já estabelecidas, como WhatsApp e Instagram, a Microsoft optou por um caminho distinto. Ao investir pesadamente na OpenAI, criadora do ChatGPT, a Microsoft mantém uma distância estratégica, posicionando-se como parceira e não como desenvolvedora direta de IA generativa. Esta abordagem permite à Microsoft mitigar riscos regulatórios e de reputação, enquanto ainda se beneficia dos avanços em IA. A competição entre essas duas gigantes não é apenas por market share, mas também por modelos de negócios e estratégias de longo prazo no campo da IA. Para o Brasil, entender e navegar nessa dinâmica competitiva é crucial para determinar como podemos nos posicionar e beneficiar nesse novo ecossistema tecnológico.
O Brasil se encontra agora diante de um desafio complexo: como proteger os dados de seus cidadãos, fomentar a inovação local e, ao mesmo tempo, evitar cair na armadilha da colonização digital? A solução não está em simplesmente copiar modelos regulatórios de outras nações, mas em desenvolver uma abordagem que reconheça nossa posição única no cenário global de tecnologia.
Marco regulatório da IA no Brasil
Precisamos de um marco regulatório que seja flexível e adaptável, capaz de evoluir tão rapidamente quanto a tecnologia que busca regular. Ao mesmo tempo, é crucial investir pesadamente em educação e infraestrutura digital, criando um ecossistema que não apenas consuma tecnologia, mas que também a produza.
Mais do que isso, precisamos repensar os modelos econômicos por trás dessas tecnologias. Como podemos garantir que o valor gerado pelos dados dos brasileiros beneficie nossa própria economia e sociedade? Talvez seja hora de considerar modelos onde os usuários tenham participação nos lucros gerados por seus dados, ou onde empresas estrangeiras sejam obrigadas a reinvestir uma parcela significativa de seus lucros localmente.
A decisão da Meta não deve ser vista como o fim da conversa, mas como o início de um diálogo nacional crucial sobre nosso futuro digital. É uma oportunidade para repensar nossa estratégia de desenvolvimento tecnológico, nossa posição na economia global do conhecimento e nossa visão para um futuro onde a inovação, a proteção de dados e a soberania nacional coexistam harmoniosamente.
O Brasil é o melhor celeiro de dados do mundo
O Brasil tem o potencial de ser mais que um mero consumidor ou fornecedor de dados para gigantes tecnológicos globais.
Com a base de usuários que temos, a diversidade única desses dados, podemos e devemos ser protagonistas na definição do futuro da IA. A questão agora é se teremos a visão e a coragem para abraçar esse papel, navegando bem entre a proteção de dados, inovação tecnológica e justiça econômica.
O caminho à frente é desafiador, mas repleto de oportunidades. É hora de o Brasil assumir seu lugar na vanguarda da revolução digital, não apenas como um grande mercado, mas como um líder em inovação responsável, ética e equitativa. O futuro da IA no Brasil está em nossas mãos, e as decisões que tomarmos hoje moldarão não apenas nossa indústria tecnológica, mas o próprio tecido de nossa sociedade digital nas décadas por vir.
Chegou a hora de decidirmos: seremos colonizados digitalmente ou construiremos nossa própria soberania tecnológica?