(demaerre/Getty Images)
Professor da Faculdade Exame
Publicado em 30 de setembro de 2024 às 16h05.
Última atualização em 30 de setembro de 2024 às 16h06.
Ao longo da história, a humanidade sempre buscou expandir suas capacidades e influenciar o ambiente ao seu redor por meio da criação de ferramentas e novas tecnologias. Esse desejo por progresso gerou uma série de avanços que moldaram a civilização, desde as primeiras ferramentas de pedra até os modernos smartphones.
Contudo, a evolução tecnológica também apresenta um desafio recorrente: a dificuldade em conter a disseminação de novas tecnologias.
A velocidade dessa disseminação frequentemente supera a capacidade da sociedade de estabelecer controles adequados, e, à medida que as inovações se espalham de forma rápida e abrangente, surgem obstáculos para reguladores e governos em acompanhar e implementar diretrizes que garantam seu uso seguro e ético.
Por exemplo: as recentes regulações de IA propostas pela União Europeia podem sufocar a inovação no setor. A legislação visa garantir a segurança e a ética no desenvolvimento de IA, mas, muitas empresas e especialistas alertam que as exigências rigorosas podem atrasar avanços e aumentar os custos de desenvolvimento.
A preocupação é que startups e pequenas empresas sejam especialmente afetadas, levando a uma possível migração de inovação para mercados mais flexíveis, como os Estados Unidos.
O ponto é: quando novas tecnologias se proliferam de maneira desigual, criam-se ainda mais disparidades econômicas e sociais. Aqueles que primeiro conseguem explorar essas tecnologias avançadas se beneficiam desproporcionalmente, aumentando a disparidade entre aqueles que têm recursos para investir e aqueles que não têm.
Em seu livro “A Próxima Onda”, Mustafa Suleyman, fundador da Deepmind, argumenta que a história da tecnologia é marcada por "ondas" de inovação que transformam a sociedade.
Cada onda é impulsionada por uma ou mais "tecnologias de propósito geral", como a agricultura, a escrita e, mais recentemente, a internet. Essas tecnologias-chave permitem grandes avanços em diversas áreas, desencadeando uma cascata de novas invenções e aplicações.
A internet é, talvez, o exemplo mais marcante da rápida e abrangente proliferação tecnológica na história recente. O que começou como uma rede limitada a alguns poucos computadores tornou-se um fenômeno global em apenas algumas décadas, conectando bilhões de pessoas e transformando a maneira como vivemos, trabalhamos e nos comunicamos.
A crescente acessibilidade, o poder computacional cada vez maior e a proliferação de novas aplicações, desde e-mail a redes sociais, impulsionaram essa expansão sem precedentes.
A internet demonstra como a convergência de fatores tecnológicos, sociais e econômicos pode levar a uma proliferação quase instantânea, mesmo diante de preocupações como propriedade intelectual, privacidade e crimes cibernéticos.
Suleyman identifica vários fatores-chave que contribuem para a dificuldade em conter a disseminação tecnológica:
À medida que a IA avança com as chamadas LLMs (grandes modelos de linguagem, como o ChatGPT), a biologia sintética cria novas formas de vida e a robótica redefine a interação humano-máquina, questões fundamentais emergem: quem controla essas tecnologias? Como elas devem ser utilizadas? Qual o impacto na sociedade? E o mais importante: como gerenciamos uma proliferação tão vasta e complexa?
O risco de uma "proliferação incontrolável", como apontado por Suleyman, é particularmente alarmante. No passado, a difusão tecnológica era um processo relativamente linear — a prensa de Gutenberg, por exemplo, levou décadas para se espalhar pela Europa; enquanto o motor de combustão interna precisou de quase um século para mover o mundo moderno.
No entanto, a tríade entre IA, biologia sintética e robótica segue um caminho exponencial, potencializado pela internet e por colaborações internacionais que compartilham avanços em tempo real.
A rapidez com que essas novas "tecnologias de propósito geral" se entrelaçam e multiplicam seus impactos é inédita e, muitas vezes, impossível de acompanhar.
Sem medidas proativas, corremos o risco de transformar tecnologias com grande potencial de benefício em fontes de risco global, colocando em jogo a segurança, a estabilidade e a própria estrutura social. O desafio está em criar mecanismos que garantam que a proliferação seja acompanhada por um controle responsável e coordenado, capaz de mitigar os perigos enquanto se maximiza o valor para a humanidade, sem criar disparidades sociais e econômicas.
Até o meio da década passada, manipulações genéticas exigiam anos de pesquisa com as mentes mais brilhantes da área.
Em 2010, o cientista Craig Venter, pioneiro na classificação do genoma humano, por exemplo, conseguiu criar um novo organismo a partir de uma bactéria (Mycoplasma mycoides).
O próximo grande avanço veio só em 2016, seis anos depois, quando ele e sua equipe desenvolveram o menor ser já visto na natureza, com apenas 473 genes. Para efeitos de comparação, o ser humano tem entre 20 e 23 mil genes.
Três anos depois, a universidade ETH Zurich inovou com o Caulobacter ethensis-2.0, o primeiro genoma bacteriano totalmente criado em computador. Estamos falando de apenas três grandes avanços nessa linha de pesquisa em 10 anos.
Agora, com a democratização das ferramentas de biologia sintética, como a CRISPR, e a disponibilidade de sequências genéticas online, biohackers independentes podem projetar microrganismos para funções específicas, como decomposição de resíduos ou produção de biocombustíveis, trazendo um enorme benefício para a humanidade em muito menos tempo.
Por outro lado, a liberação acidental de um desses organismos no meio ambiente pode ter consequências ecológicas desastrosas.
Em 2023, o lançamento do GPT-4 elevou as IAs para outro patamar, tornando-as mais precisas e capazes de compreender nuances complexas. Em poucos meses, o ChatGPT conquistou milhões de usuários e começou a ser integrado em uma variedade de produtos, de assistentes virtuais a ferramentas de suporte empresarial.
Com isso, se estabeleceu como uma das inovações mais rapidamente adotadas na história da tecnologia, transformando o uso de inteligência artificial no cotidiano.
Com a proliferação de modelos avançados de IA para manipulação de imagens, vídeos e áudio — os chamados deepfakes —, tornou-se possível criar conteúdos digitais extremamente realistas que são indistinguíveis de gravações reais.
Inicialmente usados para entretenimento, os deepfakes rapidamente se disseminaram para outras aplicações, como fraudes, manipulação de opiniões públicas e campanhas de desinformação. Governos e instituições democráticas enfrentam dificuldades para controlar o uso dessa tecnologia e regular sua disseminação.
No Brasil, por exemplo, esses recursos são usados até em eleições.
A guerra na Ucrânia, em 2022, destacou o uso inovador de drones para enfrentar a superioridade militar russa, mostrando como tecnologias acessíveis podem redefinir a guerra moderna. Através de iniciativas como a Aerorozvidka — uma milícia de voluntários que combinou drones modificados com táticas de guerrilha — a Ucrânia conseguiu atrasar o avanço de uma coluna militar russa de 40 km e atacar suprimentos de maneira estratégica e eficiente.
A corrida para desenvolver armas robóticas autônomas está aumentando as tensões entre grandes potências. Se cada nação buscar desenvolver suas próprias versões de robôs militares, o risco de uma guerra descontrolada e movida por IA torna-se uma ameaça real.
A “próxima onda” de inovação é inevitável e trará tanto oportunidades, quanto riscos. Em vez de tentar conter seu avanço, que historicamente se mostrou ineficaz na grande maioria dos casos, a chave está em ser proativo e estratégico. Isso significa entender os limites e potencialidades de cada uma dessas tecnologias e integrar essa visão em um plano mais amplo.
O papel dos líderes será fundamental para definir como essas inovações moldarão o futuro — seja para melhorar a vida de bilhões ou, inadvertidamente, criar novos riscos para a sociedade.
O equilíbrio entre responsabilidade e progresso é mais do que um requisito ético; é um imperativo estratégico para quem deseja prosperar na era da convergência tecnológica.
Em última análise, a questão não é se seremos capazes de acompanhar essa transformação, mas se seremos capazes de guiá-la de maneira sábia e consciente.
Por exemplo, as armas nucleares, apesar de seu poder destrutivo e da proliferação inicial, são uma exceção à tendência histórica de disseminação tecnológica desenfreada. Fatores como complexidade, custo, terror mútuo e grandes esforços internacionais de não proliferação contribuíram para a contenção, ainda que parcial.
Para o Brasil, com o Plano Brasileiro de Inteligência Artificial (PBIA), lançado em meados de 2024, temos uma oportunidade de, nas palavras do comunicado, “desenvolver soluções em IA que melhorem significativamente a qualidade de vida da população, otimizando a entrega de serviços públicos e promovendo a inclusão social”.
Navegar a próxima onda requer, acima de tudo, liderança com propósito e uma compreensão profunda de que o futuro, por mais tecnológico que seja, ainda deve ser construído para servir à humanidade, e não a destruir.