Faculdade Exame

Humanos vs. Máquinas: a história da tecnologia revela um padrão incontrolável de proliferação

Com o surgimento da internet, a humanidade perdeu a capacidade de lidar com a proliferação sem freio da tecnologia. Isso pode nos colocar em risco enquanto sociedade

 (Yakobchuk Olena/Getty Images)

(Yakobchuk Olena/Getty Images)

Henrique Santana
Henrique Santana

Professor da Faculdade Exame

Publicado em 30 de setembro de 2024 às 16h05.

Última atualização em 30 de setembro de 2024 às 16h07.

Tudo sobreFaculdade EXAME
Saiba mais

Ao longo da história, a humanidade sempre buscou expandir suas capacidades e influenciar o ambiente ao seu redor por meio da criação de ferramentas e novas tecnologias. Esse desejo por progresso gerou uma série de avanços que moldaram a civilização, desde as primeiras ferramentas de pedra até os modernos smartphones.

Contudo, a evolução tecnológica também apresenta um desafio recorrente: a dificuldade em conter a disseminação de novas tecnologias.

A velocidade dessa disseminação frequentemente supera a capacidade da sociedade de estabelecer controles adequados, e, à medida que as inovações se espalham de forma rápida e abrangente, surgem obstáculos para reguladores e governos em acompanhar e implementar diretrizes que garantam seu uso seguro e ético.

Por exemplo: as recentes regulações de IA propostas pela União Europeia podem sufocar a inovação no setor. A legislação visa garantir a segurança e a ética no desenvolvimento de IA, mas, muitas empresas e especialistas alertam que as exigências rigorosas podem atrasar avanços e aumentar os custos de desenvolvimento.

A preocupação é que startups e pequenas empresas sejam especialmente afetadas, levando a uma possível migração de inovação para mercados mais flexíveis, como os Estados Unidos.

O ponto é: quando novas tecnologias se proliferam de maneira desigual, criam-se ainda mais disparidades econômicas e sociais. Aqueles que primeiro conseguem explorar essas tecnologias avançadas se beneficiam desproporcionalmente, aumentando a disparidade entre aqueles que têm recursos para investir e aqueles que não têm.

Inovação: uma força imparável?

Em seu livro “A Próxima Onda”, Mustafa Suleyman, fundador da Deepmind, argumenta que a história da tecnologia é marcada por "ondas" de inovação que transformam a sociedade.

Cada onda é impulsionada por uma ou mais "tecnologias de propósito geral", como a agricultura, a escrita e, mais recentemente, a internet. Essas tecnologias-chave permitem grandes avanços em diversas áreas, desencadeando uma cascata de novas invenções e aplicações.

A internet e a proliferação acelerada

A internet é, talvez, o exemplo mais marcante da rápida e abrangente proliferação tecnológica na história recente. O que começou como uma rede limitada a alguns poucos computadores tornou-se um fenômeno global em apenas algumas décadas, conectando bilhões de pessoas e transformando a maneira como vivemos, trabalhamos e nos comunicamos.

A crescente acessibilidade, o poder computacional cada vez maior e a proliferação de novas aplicações, desde e-mail a redes sociais, impulsionaram essa expansão sem precedentes.

A internet demonstra como a convergência de fatores tecnológicos, sociais e econômicos pode levar a uma proliferação quase instantânea, mesmo diante de preocupações como propriedade intelectual, privacidade e crimes cibernéticos.

Por que a contenção tecnológica é tão difícil?

Suleyman identifica vários fatores-chave que contribuem para a dificuldade em conter a disseminação tecnológica:

  1. Demanda insaciável: a natureza humana anseia por progresso e melhoria. As pessoas são naturalmente atraídas por tecnologias que prometem tornar suas vidas mais fáceis, eficientes, conectadas e divertidas;
  2. Queda dos custos: à medida que as tecnologias amadurecem, seus custos de produção, desenvolvimento e acesso geralmente diminuem, tornando-as disponíveis para um público mais amplo;
  3. Incentivos econômicos: a busca por lucro é um poderoso motor de inovação e disseminação tecnológica. Empresas e governos investem pesadamente em novas tecnologias, buscando obter vantagens competitivas em um mercado globalizado;
  4. Difusão de conhecimento: a rápida difusão de informações e conhecimento, especialmente na era da internet, torna mais difícil controlar o desenvolvimento e a disseminação de novas tecnologias;
  5. Fatores geopolíticos: a competição entre as grandes potências, como a atual corrida tecnológica entre Estados Unidos e China, acelera ainda mais o desenvolvimento e a proliferação de tecnologias avançadas, muitas vezes à custa da segurança e da ética.

O que está em jogo?

À medida que a IA avança com as chamadas LLMs (grandes modelos de linguagem, como o ChatGPT), a biologia sintética cria novas formas de vida e a robótica redefine a interação humano-máquina, questões fundamentais emergem: quem controla essas tecnologias? Como elas devem ser utilizadas? Qual o impacto na sociedade? E o mais importante: como gerenciamos uma proliferação tão vasta e complexa?

O risco de uma "proliferação incontrolável", como apontado por Suleyman, é particularmente alarmante. No passado, a difusão tecnológica era um processo relativamente linear — a prensa de Gutenberg, por exemplo, levou décadas para se espalhar pela Europa; enquanto o motor de combustão interna precisou de quase um século para mover o mundo moderno.

No entanto, a tríade entre IA, biologia sintética e robótica segue um caminho exponencial, potencializado pela internet e por colaborações internacionais que compartilham avanços em tempo real.

A rapidez com que essas novas "tecnologias de propósito geral" se entrelaçam e multiplicam seus impactos é inédita e, muitas vezes, impossível de acompanhar.

Sem medidas proativas, corremos o risco de transformar tecnologias com grande potencial de benefício em fontes de risco global, colocando em jogo a segurança, a estabilidade e a própria estrutura social. O desafio está em criar mecanismos que garantam que a proliferação seja acompanhada por um controle responsável e coordenado, capaz de mitigar os perigos enquanto se maximiza o valor para a humanidade, sem criar disparidades sociais e econômicas.

Veja exemplos de avanços tecnológicos que já estão acontecendo

Biologia sintética

Até o meio da década passada, manipulações genéticas exigiam anos de pesquisa com as mentes mais brilhantes da área.

Em 2010, o cientista Craig Venter, pioneiro na classificação do genoma humano, por exemplo, conseguiu criar um novo organismo a partir de uma bactéria (Mycoplasma mycoides).

O próximo grande avanço veio só em 2016, seis anos depois, quando ele e sua equipe desenvolveram o menor ser já visto na natureza, com apenas 473 genes. Para efeitos de comparação, o ser humano tem entre 20 e 23 mil genes.

Três anos depois, a universidade ETH Zurich inovou com o Caulobacter ethensis-2.0, o primeiro genoma bacteriano totalmente criado em computador. Estamos falando de apenas três grandes avanços nessa linha de pesquisa em 10 anos.

Agora, com a democratização das ferramentas de biologia sintética, como a CRISPR, e a disponibilidade de sequências genéticas online, biohackers independentes podem projetar microrganismos para funções específicas, como decomposição de resíduos ou produção de biocombustíveis, trazendo um enorme benefício para a humanidade em muito menos tempo.

Por outro lado, a liberação acidental de um desses organismos no meio ambiente pode ter consequências ecológicas desastrosas.

Inteligência artificial

Em 2023, o lançamento do GPT-4 elevou as IAs para outro patamar, tornando-as mais precisas e capazes de compreender nuances complexas. Em poucos meses, o ChatGPT conquistou milhões de usuários e começou a ser integrado em uma variedade de produtos, de assistentes virtuais a ferramentas de suporte empresarial.

Com isso, se estabeleceu como uma das inovações mais rapidamente adotadas na história da tecnologia, transformando o uso de inteligência artificial no cotidiano.

Com a proliferação de modelos avançados de IA para manipulação de imagens, vídeos e áudio — os chamados deepfakes —, tornou-se possível criar conteúdos digitais extremamente realistas que são indistinguíveis de gravações reais.

Inicialmente usados para entretenimento, os deepfakes rapidamente se disseminaram para outras aplicações, como fraudes, manipulação de opiniões públicas e campanhas de desinformação. Governos e instituições democráticas enfrentam dificuldades para controlar o uso dessa tecnologia e regular sua disseminação.

No Brasil, por exemplo, esses recursos são usados até em eleições.

Robótica

A guerra na Ucrânia, em 2022, destacou o uso inovador de drones para enfrentar a superioridade militar russa, mostrando como tecnologias acessíveis podem redefinir a guerra moderna. Através de iniciativas como a Aerorozvidka — uma milícia de voluntários que combinou drones modificados com táticas de guerrilha — a Ucrânia conseguiu atrasar o avanço de uma coluna militar russa de 40 km e atacar suprimentos de maneira estratégica e eficiente.

A corrida para desenvolver armas robóticas autônomas está aumentando as tensões entre grandes potências. Se cada nação buscar desenvolver suas próprias versões de robôs militares, o risco de uma guerra descontrolada e movida por IA torna-se uma ameaça real.

Surfando a próxima onda

A “próxima onda” de inovação é inevitável e trará tanto oportunidades, quanto riscos. Em vez de tentar conter seu avanço, que historicamente se mostrou ineficaz na grande maioria dos casos, a chave está em ser proativo e estratégico. Isso significa entender os limites e potencialidades de cada uma dessas tecnologias e integrar essa visão em um plano mais amplo.

O papel dos líderes será fundamental para definir como essas inovações moldarão o futuro — seja para melhorar a vida de bilhões ou, inadvertidamente, criar novos riscos para a sociedade.

O equilíbrio entre responsabilidade e progresso é mais do que um requisito ético; é um imperativo estratégico para quem deseja prosperar na era da convergência tecnológica.

Em última análise, a questão não é se seremos capazes de acompanhar essa transformação, mas se seremos capazes de guiá-la de maneira sábia e consciente.

Por exemplo, as armas nucleares, apesar de seu poder destrutivo e da proliferação inicial, são uma exceção à tendência histórica de disseminação tecnológica desenfreada. Fatores como complexidade, custo, terror mútuo e grandes esforços internacionais de não proliferação contribuíram para a contenção, ainda que parcial.

Para o Brasil, com o Plano Brasileiro de Inteligência Artificial (PBIA), lançado em meados de 2024, temos uma oportunidade de, nas palavras do comunicado, “desenvolver soluções em IA que melhorem significativamente a qualidade de vida da população, otimizando a entrega de serviços públicos e promovendo a inclusão social”.

Navegar a próxima onda requer, acima de tudo, liderança com propósito e uma compreensão profunda de que o futuro, por mais tecnológico que seja, ainda deve ser construído para servir à humanidade, e não a destruir.

Acompanhe tudo sobre:Faculdade EXAME

Mais de Faculdade Exame

No pódio da inovação: como a Fórmula 1 está conquistando novas audiências

ESG, IA e Inovação: como os três pilares da modernidade estão transformando as finanças corporativas

Por que resistimos a mudanças?

Regulação da IA no Brasil está a caminho, mas só em 2025