Queda da FTX pode incentivar autocustódia de criptoativos, dizem especialistas
Corretoras precisam lidar com danos reputacionais e falta de confiança entre investidores, além de retirada de capital
João Pedro Malar
Publicado em 9 de dezembro de 2022 às 18h27.
Uma das consequências da falência da FTX, a segunda maior corretora de criptoativos do mundo, foi a retirada recorde de investimentos de clientes de outras corretoras. O movimento veio acompanhado de uma intensificação da defesa de um conceito importante no setor: a autocustódia.
Para alguns entusiastas do mundo cripto, a capacidade de armazenar e administrar seus ativos de forma independente, a partir de carteiras digitais e sem um agente intermediário, é um dos pilares do potencial disruptivo da tecnologia blockchain.
Ao mesmo tempo, outros investidores e agentes de mercado apontam para as inseguranças nessa modalidade, que em teoria seriam resolvidas pela entrada de intermediários com algum nível de centralização. O principal exemplo veio das exchanges.
Entretanto, a crise da FTX reforçou argumentos em defesa da autocustódia, mas, à EXAME, especialistas avaliaram que ainda é cedo para dizer até que ponto esse movimento realmente terá vida longa ou se acabará enfraquecendo em um curto prazo.
Autocustódia e outras alternativas
Para Alexandre Ludolf, CIO da QR Capital, o movimento de crescimento da autocustódia “pode não ser pontual”, mas “não vai atender a maioria dos investidores neste momento de adoção inicial” dos criptoativos.
“A autocustódia delega toda a segurança das chaves [das carteiras digitais] para você. Se você esquece a senha, ou perde ou é roubado, não consegue mais acessar os ativos. É diferente de um cofre físico, não dá para chamar um chaveiro”, explica.
Ludolf diz ainda que a autocustódia traz também uma facilidade para fraudes, que podem ser mais simples de ocorrer envolvendo a chamada engenharia social, formas de enganar as pessoas em conversas, e-mails e trocas de mensagens.
Mesmo assim, ele acredita que “a autocustódia é sim a forma mais segura [para armazenar criptoativos], mas também é suscetível a problemas, de acidentes a mortes e roubos”. Ele acredita que, atualmente, o método de armazenagem é simples de realizar.
“Você compra um hardware, vê um tutorial. É simples, mas o problema é no dia a dia. Tem que saber onde está guardado, o acesso, onde anotou a chave, o quão boa a senha é. Apesar da simplicidade, boa parte das vezes é o usuário que fragiliza a própria segurança”, comenta.
Por isso, Ludolf ainda não recomenda a autocustódia para o “usuário comum”. Ao invés disso, ele vê potencial para “soluções híbridas”, que “não são corretoras, não usam capital do cliente, não fazem alavancagem”, em meio a uma fraqueza das corretoras centralizadas.
Na solução híbrida, “os clientes terceirizam essa segurança, e a custódia tem uma governança múltipla, uma pessoa só não pode roubar. Acho que é algo que pode florescer, um bom compromisso porque tem uma regulação. Você não consegue deixar [o criptoativo] à margem dos sistema financeiro, mas não fica tão sujeito, vulnerável, do que com corretoras”.
A ideia é que os prestadores de serviços façam a custódia, mas não realizem nenhum tipo de operação com os ativos do usuário, que “ficam parados”.
Já Dan Yamamura, sócio-fundador da Fuse, lembra que a Web3, fortemente associado ao mundo dos criptoativos, “entra com essa noção de ter a propriedade dos próprios dados, e aí entra a questão da autocustódia de um dado, de um produto financeiro, e aí assume uma responsabilidade”.
Ele avalia que ter a propriedade dos próprios ativos tem vantagens, mas também “traz fricções, responsabilidades por aquilo”. “Isso gera algumas vantagens em termos de segurança, mas desvantagens em termos de usabilidade especialmente”.
“As exchanges centralizadas ainda trabalham com essa custódia delas desses ativos, não das pessoas. É um modelo centralizado em Web3, parece um caminho intermediário”, considera Yamamura.
Para ele, as discussões atuais sobre autocustódia atuais envolvem mais um movimento de questionamento sobre as soluções centralizadas, incluindo as exchanges. Ou seja, isso também pode acabar beneficiando outras alternativas de custódia, incluindo as exchanges descentralizadas e protocolos de finanças descentralizadas (DeFi, na sigla em inglês).
“A adoção da Web3 ainda é algo que está no começo. Tem fases. Se a Web3 rodar a todo vapor, a centralização não faz sentido, mas esse ainda não é caso”, avalia.
Ao mesmo tempo, ele lembra que a centralização torna a negociação e operação de ativos e produtos financeiros mais fácil, e por isso “têm uma função no ecossistema, em especial em um momento de adoção inicial de cripto”.
“Ao longo desse processo, vai passando por aprendizados nesse ciclo, e um ponto que claramente chamou atenção foi essa irresponsabilidade, má gestão que aconteceu na FTX. Foi um erro de governança, e está falando de transparência, que as exchanges centralizadas estão buscando se antecipar e já trazer.
“Quanto mais inserido no ecossistema, mais exposto está, mas tem mais otimização. Quando vai para o mercado centralizado, tem um ganho, e quando está fora disso é diferente. A autocustódia faz com que o usuário tenha que ter mais conhecimento, tem que dominar mais um processo dentro dessa jornada”, afirma Yamamura.
Segundo ele, “se todo mundo for pra autocustódia, o mercado fica mais travado, muitos vão errar e perder ativos. Isso seria ruim porque geraria outros problemas. A propriedade traz ônus e bônus. Precisa tomar cuidados que hoje as instituições centralizadas tomam, mas corre o risco delas serem desonestas”.
Exchanges e transparência
Yamamura considera que o movimento de incentivo à autocustódia faz parte de um processo, em que “vai passando por aprendizados nesse ciclo, e um ponto que claramente chamou atenção foi essa irresponsabilidade, má gestão que aconteceu na FTX”.
"Foi um erro de governança, e se está falando muito no mercado agora de transparência, que as exchanges centralizadas estão buscando se antecipar e já trazer”, avalia.
Para ele, o sistema de criptoativos como um todo ainda precisa passar por uma fase de maturação, mas “está aí para ficar”, e isso inclui a existência das exchanges, pelo menos no curto e médio prazo.
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Ao mesmo tempo, com a falência da FTX “houve uma aceleração do processo de regulação, todos os órgãos reguladores tomaram esse sacode de perceber que precisam andar mais rápido porque já está causando problemas na sociedade, e isso tende a botar o sarrafo um pouco mais para cima. Na margem, isso é bom, mas precisa ter cuidado para o regulador não errar a mão e sufocar um negócio super saudável”.
Ludolf lembra que o caso FTX trouxe um “um dano reputacional muito grande para o ecossistema como um todo, que vai demorar um pouco para ser digerido e a gente entender o real impacto. O valor de mercado total ainda está alto, as corretoras são necessárias e vão sempre existir, mas são uma parcela pequena nesse valor de mercado total”.
Ele acredita que a crise gera um “dano ainda maior para corretoras centralizadas. Nunca se soube exatamente o que essas corretoras faziam, mas nunca se imaginou que poderia ser algo tão severo quanto o que aconteceu com a FTX”.
“As corretoras não só são corretoras, elas estão mais próximas de um banco múltiplo, tem vários serviços, atividades, fazem empréstimo, venda, alavancagem. E se produtos usam capital de cliente, é preocupante”, pontua.
Por isso, ele também aposta em um investimento pesado em transparência para atrair e manter investidores. O maior exemplo disso até agora é o esforço para realizar a chamada prova de reservas, ou proof-of-reserves, uma comprovação de liquidez.
Ele ressalta que “as corretoras vão ter que evoluir. É quase uma forma de autorregulação, dar transparência para manter credibilidade, mas só isso não vai ser suficiente depois de tudo que aconteceu neste ano. Espero algo mais próximo do arcabouço regulatório do sistema bancário tradicional”.
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