Patrocínio:
Parceiro institucional:
Desigualdade extrema de emissões: 10% mais ricos geram 47% do carbono global, enquanto 50% mais pobres respondem por apenas 10%, segundo novo relatório. (jcomp/Freepik)
Editora ESG
Publicado em 10 de dezembro de 2025 às 15h55.
Última atualização em 10 de dezembro de 2025 às 16h04.
Um relatório global divulgado nesta quarta-feira, 10, pelo World Inequality Report 2026 (Relatório Mundial da Desigualdade em livre tradução) expôs uma realidade incômoda: menos de 60 mil pessoas controlam ativos que emitem três vezes mais carbono do que os 4 bilhões de pessoas mais pobres do planeta.
Coordenado pelo economista Thomas Piketty, o relatório marca uma virada na forma como a crise climática é analisada. Pela primeira vez, o documento dedica uma seção inteira ao que chama de "desigualdade climática", resultado de uma intersecção explosiva entre concentração de riqueza e colapso ambiental.
A mensagem é clara. Quem menos contribui para o aquecimento global é quem mais sofre suas consequências, enquanto uma elite minúscula acumula fortunas com o modelo econômico que está destruindo o planeta.
A transversalidade da questão climática nos grandes relatórios globais marca uma transformação histórica, embora não seja exatamente uma novidade deste documento específico.
Se até poucos anos atrás as mudanças climáticas eram tratadas como um problema setorial, confinado a ministérios do meio ambiente e ONGs, hoje aparecem como ameaça central em análises de bancos, agências de rating, estudos de segurança nacional e investigações gerais sobre desigualdade.
Um exemplo é o Relatório de Riscos Globais do Fórum Econômico Mundial (WEF), que em janeiro deste cravou que quatro dos dez principais riscos de longo prazo são ambientais. Com eventos climáticos extremos liderando o ranking para a próxima década, seguidos de perto por perda de biodiversidade, colapso de ecossistemas e escassez de recursos naturais.
"Não é mais possível falar de economia, segurança ou desigualdade sem falar de clima. As crises convergiram", afirma o estudo do World Inequality Lab.
À época, especialistas ouvidos pelo WEF foram unânimes também sobre eventos climáticos extremos serem o maior risco de longo prazo.
O trabalho de Piketty agora vai além ao demonstrar que a crise climática não é apenas um risco futuro, mas uma realidade presente que aprofunda desigualdades existentes. E em que a concentração extrema de riqueza e a concentração extrema de emissões são dois lados da mesma moeda.
Os dados revelam uma arquitetura global de injustiça. Quando se analisa as emissões baseadas no consumo - o carbono gerado pelo estilo de vida de cada grupo -, os 10% mais ricos do mundo são responsáveis por 47% das emissões globais. Enquanto os 50% mais pobres geram apenas 10%.
Mas essa é apenas parte da história. Ao se considerar as emissões de empresas, fazendas, imóveis e investimentos de cada pessoa, a desigualdade se torna ainda mais evidente. Os 10% do topo controlam ativos responsáveis por 77% das emissões globais. E a metade mais pobre da humanidade? Apenas 3%.
"O debate público foca nas emissões do consumo, mas a propriedade do capital revela uma desigualdade ainda mais profunda", escreve a equipe de Piketty no relatório. "Os mais ricos não apenas consomem mais, mas também possuem os ativos que mais poluem."
A questão climática invadiu todos os relatórios porque eventos extremos desencadeiam uma cascata de crises que afetam economia, segurança e estabilidade social.
Por exemplo, uma seca severa causa perda de safras, eleva preços de alimentos, gera instabilidade social e desencadeia fluxos migratórios. Furacões destroem infraestrutura crítica, paralisando economias regionais. Ondas de calor sobrecarregam sistemas de saúde e redes elétricas.
Autoridades de segurança nacional captaram essa dimensão cedo. Nos Estados Unidos, o Pentágono classifica mudanças climáticas como "multiplicador de ameaças" desde 2014.
Secas prolongadas contribuíram para a guerra civil na Síria, iniciada em 2011 após a pior estiagem em 900 anos forçar milhões de agricultores a migrar para cidades. O aumento do nível do mar ameaça Bangladesh, que poderia deslocar 30 milhões de pessoas.
A linha de pesquisa que resultou neste relatório começou há pouco mais de uma década, quando Piketty, e os pesquisadores Branko Milanovic e Lucas Chancel começaram a mapear a "pegada de carbono dos ricos".
Quando a pandemia demonstrou que crises sistêmicas globais podem parar a economia mundial, a experiência com lockdowns, cadeias de suprimento rompidas e intervenções governamentais massivas tornou tangível o que cientistas alertavam sobre clima. Se uma pandemia pode fazer isso, o que fará um colapso ambiental que não tem vacina?
A injustiça climática também tem endereço. São exatamente nas regiões mais pobres, as mais vulneráveis aos eventos climáticos extremos que o Fórum Econômico Mundial identifica como risco número um de curto prazo.
Dados da EM-DAT (Emergency Events Database), da Universidade Católica de Louvain, na Bélgica, dimensionam esse impacto desproporcional. Entre 2000 e 2023, desastres climáticos causaram perdas econômicas proporcionalmente muito maiores em países de baixa renda, onde uma única enchente pode equivaler a porcentagem significativa do PIB nacional.
Enquanto isso, nações ricas têm recursos para construir infraestrutura de proteção, sistemas de alerta antecipado e seguros robustos.
No Brasil, os 10% mais ricos recebem renda 63,5 vezes maior que os 50% mais pobres. E essa diferença cresceu na última década, passando de 53,7 vezes em 2014, afirmam os pesquisadores.
Moradores de favelas em encostas no Rio de Janeiro ou em áreas de várzea em São Paulo são dizimados por deslizamentos e enchentes, enquanto a elite vive em condomínios fortificados com geradores próprios e reservatórios de água.
O mesmo sistema financeiro que concentra riqueza também concentra emissões e transfere riscos climáticos.
Conforme o documento, a cada ano, cerca de 1% do PIB global - aproximadamente três vezes o valor da ajuda internacional ao desenvolvimento - flui das nações mais pobres para as mais ricas através de transferências líquidas de renda externa.
Economias avançadas, lideradas por Japão (5,9% do PIB), Estados Unidos (2,2%) e Zona do Euro (1%), podem tomar empréstimos a custos baixíssimos e investir em ativos de maior rendimento no exterior, posicionando-se como "rentistas financeiros globais".
Já países dos BRICS enfrentam rendimento negativo de -2,1% do PIB, capital constantemente drenado para fora. "O que era um 'privilégio exorbitante' dos EUA tornou-se um privilégio estrutural do mundo rico", diz a análise.
O resultado: os países do Sul Global ficam sem recursos para investir em adaptação climática, enquanto o Norte financia seu estilo de vida emissor com o dinheiro sugado do Sul. É uma dupla extração de recursos financeiros e de resiliência climática.
O Fórum Econômico Mundial identifica essa dinâmica como parte da "fragmentação global" que dificulta a cooperação necessária para enfrentar a emergência ambiental.
Com relações internacionais cada vez mais tensas e desigualdade crescente, as promessas de financiamento climático do Norte para o Sul permanecem em grande parte não cumpridas.
A meta de US$ 100 bilhões anuais, estabelecida em 2009, só foi alcançada em 2022 - com anos de atraso - e está longe das necessidades reais de adaptação e mitigação.
Mas nem tudo é pessimismo. O World Inequality Report 2026 demonstra que políticas públicas bem desenhadas podem reduzir drasticamente as disparidades.
Na Europa, sistemas de impostos e transferências conseguiram reduzir a desigualdade em aproximadamente 47%. Na América Latina, essa redução é de 27%, uma melhoria significativa desde os anos 1990, embora ainda distante do padrão europeu.
"A evidência é clara: onde a redistribuição é forte, a tributação é justa e o investimento social é priorizado, a desigualdade diminui. As ferramentas existem", afirma o documento.
Os sistemas tributários atuais "falham exatamente onde são mais necessários: no topo". As alíquotas efetivas de imposto de renda sobem para a maior parte da população, mas caem drasticamente para bilionários e centimilionários, que pagam proporcionalmente menos que a maioria das famílias com renda muito menor.
Esse padrão regressivo "priva os estados de recursos essenciais e mina a justiça e a coesão social". A proposta concreta, portanto, é a taxação mínima global sobre os multimilionários, ideia defendida pelo economista Gabriel Zucman durante a presidência brasileira do G20 em 2024.
Uma taxa de 2% afetaria aproximadamente 92 mil adultos e geraria US$ 503 bilhões anuais, o equivalente a 1,2 vez o gasto total com educação na África e Sul/Sudeste Asiático. Com 3%, a receita saltaria para US$ 754 bilhões (1,7 vez o gasto educacional). Com 5%, US$ 1,256 trilhão (2,9 vezes).
As estimativas assumem 10% de evasão fiscal, taxa considerada conservadora, dado que mecanismos como troca automática de informações bancárias já reduziram significativamente a riqueza offshore não declarada em um fator de três desde 2016.
Esse montante poderia transformar a adaptação climática no Sul Global. Para colocar em perspectiva: o gasto público com educação por criança na África Subsaariana é de €220 anuais, comparado a 9.025 euros na América do Norte e Oceania, uma diferença de 40 vezes.
Aplicados ao clima, os recursos poderiam financiar infraestrutura de proteção contra eventos extremos, sistemas de alerta antecipado, agricultura resiliente, transição energética justa e compensação por perdas e danos.
"A regressividade no topo não é algo inevitável", argumenta a análise. "Com uma taxação mínima, os governos podem restaurar a progressividade do sistema, mobilizar uma soma relevante de recursos e reconstruir a legitimidade da tributação em uma era de fortunas individuais extremadas. Implementar tal imposto é, em última análise, uma questão de vontade política."
Os próximos dez anos serão decisivos. O Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) já deixou claro que é preciso reduzir emissões globais pela metade até 2030 para ter chance de limitar o aquecimento a 1,5°C.
Mas como mobilizar a ação necessária em um mundo onde 0,001% da população controla 6% da riqueza e gera emissões incomparavelmente maiores que bilhões de pessoas? Como financiar a transição justa quando o sistema financeiro global drena 1% do PIB das nações pobres para as ricas a cada ano?
"A crise da desigualdade e a crise climática são inseparáveis", resume o Relatório Mundial da Desigualdade. "Resolver uma sem resolver a outra é impossível. Ambas exigem confrontar os interesses de uma elite minúscula que se beneficia do status quo, mesmo enquanto o planeta queima".