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Fora do padrão é o normal: o corpo médio ideal não existe, e para as marcas isso é um problema

Por décadas, as indústrias da moda e beleza perseguiram um consumidor irreal. Agora, buscam ajustar seu negócio para o novo padrão: que é não ter nenhum

Diverse crowd of people on a busy city shopping street with different ethnic groups and body types in cartoon grunge style. (Charles Harker/Getty Images)

Diverse crowd of people on a busy city shopping street with different ethnic groups and body types in cartoon grunge style. (Charles Harker/Getty Images)

Marina Filippe
Marina Filippe

Repórter de ESG

Publicado em 31 de agosto de 2023 às 11h50.

Última atualização em 4 de setembro de 2023 às 15h53.

Barbie, o filme de maior bilheteria do ano até o momento, já ultrapassou 1 bilhão de dólares em vendas de ingressos. A história da boneca que vive em um mundo perfeito e pensa inspirar as garotas, mas que, ao ser transportada para o mundo real, depara com jovens tristes e insatisfeitas por não alcançarem seu padrão de beleza e sucesso, lotou as salas de cinema com meninas e mulheres que vivem a dualidade de conhecer o próprio corpo e atender ao que a sociedade considera padrão. 

Dirigido pela atriz e cineasta Greta Gerwig, indicada ao Oscar, o filme gerou debates sobre conceitos de beleza e comportamento enraizados na sociedade. Mas, para avançar nesta discussão, é importante entender de onde surge a necessidade das pessoas em se sentirem “normais”.

De acordo com Sarah Chaney, pesquisadora do Queen Mary Centre for the History of the Emotions, o conceito de normal é relativamente recente. Até o final do século 19, não se utilizava a palavra para descrever seres humanos, e o “normal” era relacionado a comportamentos – a pesquisadora usa como exemplo o hábito de usar chapéu na rua, considerado adequado; já sair sem o adereço era visto como uma excentricidade, ou mesmo um sinal de deficiência mental.

A ideia de usar o conceito de normalidade para definir características físicas surge a partir do uso da estatística para explicar o mundo. No início dos anos 40, o ginecologista americano Robert Latou Dickinson e o artista Abram Belskie criaram apresentaram ao mundo duas esculturas: Norma e Normann. As figuras eram resultados de uma pesquisa conduzida por Dickinson com 3.000 homens e mulheres, americanos, caucasianos e brancos, e representavam uma média das características medidas pelo médico -- Norma, a título de curiosidade, era uma mulher de 1,67 metro, 56 quilos, com 86 cm de busto e 26,4 cm de quadril. 

Dickinson não era um novato em imagens de anatomia. Desde os anos 1920, ele organizava exposições com esculturas representando o sistema reprodutor humano, sua especialidade. Ele foi pioneiro, por exemplo, a apresentar a imagem de um feto para um público sem relação com a medicina. Isso acontece em 1939, na Feira Mundial de Nova York. Seu trabalho é considerado importante para a conscientização sobre controle de natalidade, educação sexual e para a legalização do aborto nos Estados Unidos -- Dickinson, inclusive, era a favor do direito ao aborto.

As estátuas de Norma e Normann, no entanto, não tiveram um efeito educativo muito positivo. A ideia de um homem e de uma mulher ideais logo caiu no gosto popular. “Em 1945, um jornal local dos Estados Unidos realizou um concurso para encontrar a Norma da vida real. Apenas 1% das mulheres que participaram da competição chegaram perto das medidas de Norma. Embora alguns de nós possamos ter uma média em uma ou até duas características, as chances de atingir a média em nove medições diferentes é quase impossível”, escreve Chaney.

Na prática, o que o trabalho da pesquisadora aponta é a impossibilidade de ser de fato “normal” e “padrão” de acordo com uma média estatística. Ainda assim, a sociedade de modo geral continua correndo atrás de se enquadrar nos termos definidos por Dickinson e Belskie, em parte também pelo marketing das indústrias de bens de consumo que reforça esse movimento.

Essa busca por um ideal estatístico, baseado em uma parcela específica da população, pauta o consumo há décadas. A própria Mattel, fabricante da Barbie, por muito tempo manteve no mercado apenas a versão loira, esguia e com pisada de bailarina da boneca – a norma era a Norma. Nos últimos anos, barbies morenas, negras e de outras etnias começaram a chegar ao mercado, numa tentativa de ampliar a representatividade e a inclusão.

O normal não existe 

A verdade é que o padrão Normann e Norma sempre foi uma armadilha para a indústria de bens de consumo. A ideia era que, ao desenvolver produtos voltados para a média da população, as marcas acessariam a maior parte do mercado, sem precisar se preocupar com os extremos, ou seja, pessoas muito fora do padrão. Mas, na prática, estavam fazendo o contrário: a média que era o extremo. Dessa forma, inadvertidamente, as marcas estavam deixando quase todo mundo de fora, e desenvolvendo produtos a partir de um modelo estatístico improvável.

Ao constatar o erro, no entanto, muitas empresas passaram a trilhar um novo caminho, quebrando esse paradigma e buscando criar e inovar para a verdadeira massa, com toda sua diversidade de peles, cabelos, corpos e culturas. O normal é ser fora de padrão.

No Grupo Boticário, termos como “normal” e “perfeito” para a definição de peles e cabelos estão sendo retirados. A meta é que nenhuma embalagem tenha essas palavras estampadas até 2024. “Com pesquisas também escolhemos, meses depois do primeiro anúncio, retirar o termo ‘clareamento’ de peles. Entendemos que o Brasil é diverso, com diferentes tonalidades e tipos de pele e cabelo. Sendo assim, o que é considerado perfeito para uma pessoa pode não fazer sentido para outra”, diz Luis Meyer, diretor de ESG do Grupo Boticário. 

De acordo com uma pesquisa encomendada pela companhia, 80% de 3.000 consumidores entrevistados esperam que as marcas de beleza apoiem causas de diversidade. Pensando nisso, a empresa também lançou o movimento Diversa Beleza, com iniciativas como um banco de imagens com fotos de pessoas com vários tipos de peles, tons e texturas. As imagens podem ser usadas por outras empresas e mídias de forma gratuita. “A comunicação mais inclusiva faz parte da nossa jornada de negócios”, diz Meyer.

A Unilever adota um movimento semelhante ao do Grupo Boticário. Em 2021, a companhia lançou uma pesquisa com 10.000 entrevistados em nove países, na qual 56% disseram que a indústria da beleza e cuidados pessoais pode fazer as pessoas se sentirem excluídas.

“Como uma indústria que chega em todos os lares brasileiros não podemos reforçar estereótipos de exclusão”, diz Thaís Hagge, líder de beleza e bem-estar no Brasil. Naquele ano, a companhia anunciou o fim do uso da palavra “normal” em publicidade e embalagens, além do banimento das modificações digitais que alteram o formato, o tamanho, as proporções ou a cor da pele do corpo das pessoas. Outra iniciativa é o compromisso em aumentar o número de anúncios que retratam pessoas de grupos diversificados e sub-representados. 

Para Hagge, a iniciativa foi parte de um trabalho que evoluiu nas últimas décadas a partir de ações em marcas como Dove, que há 20 anos aborda a inclusão. “Em 2004 fizemos uma campanha pioneira sobre corpos diversos e reais. Até hoje trabalhamos com o tema da autoestima”, diz ela. O programa Dove pela Autoestima, que trabalha a educação e empoderamento feminino, já atingiu 94 milhões de meninas no mundo todo, com meta de chegar à 250 milhões em 2030. 

A luta pelo fim da padronização, contudo, ainda não está ganha. A ideia de “normal” ainda prevalece nas narrativas das companhias e mesmo no desejo dos consumidores. Para Luciana Florêncio, professora do Programa de Pós-Graduação da ESPM, ainda há muito a ser superado. “As marcas estão se adaptando aos novos contextos, mas existe a busca pela média, desde as notas escolares até o estilo e corpo considerado normal. Por mais que haja a quebra de padrões, ainda há muito caminho para percorrer porque, de modo geral, a população reforça os padrões”, ESPM. 

A vantagem de trabalhar em conjunto

Uma das ações adotadas pelas companhias para garantir que vale a pena diversificar é a co-criação. A fabricante de cosméticos Natura aborda pautas de inclusão há décadas, como em 1992, por exemplo, quando lançou a campanha “Mulher Bonita de Verdade”, abordando questões como o etarismo. Trinta anos depois, a empresa continua reforçando o tema em movimentos como #MinhaIdadeNaoMeDefine. Ainda assim, executivos da companhia entendem que não podem convencer os consumidores sem escutá-los.

Exemplo disso é a recente campanha com o perfume Humor, co-criada com jovens entre 18 e 29 anos, do Brasil, Argentina e México. “Por meio de uma imersão no ateliê de criação da sua perfumista exclusiva, Verônica Kato, mais de 80 jovens contribuíram desde o propósito do produto até a escolha do caminho olfativo. Cada detalhe foi pautado e co-construído: narrativa, fragrância, embalagem, gestual de uso, referências de linguagem e expressão”, diz Denise Coutinho, diretora de marketing da Natura Brasil.

A ideia de participar das narrativas também muda conforme as gerações. Luciana Florêncio, da ESPM, que que as gerações millennial e Z não se encaixam nas caixas já existentes, como a geração X,  e buscam expandir o que é considerado “normal”. “Há um desejo pela identificação e por fazer parte de um grupo que, não necessariamente, é aquele já aceito pelo senso comum. Neste cenário, um fator para o consumo é a co-criação. Ou seja, o cliente participa da experiência do começo ao fim do produto e se sente protagonista na narrativa”.

Outro fator importante para as companhias que tentam ir além do padrão e alcançar uma gama maior de consumidores é a promoção da inclusão dentro de casa. É por isso que, mais da metade da liderança da companhia são mulheres, sendo 17% mulheres negras. Além disto, é na sede da L’Óreal no Rio de Janeiro que fica também a sede do MOVER – Movimento Pela Equidade Racial, que reúne cerca de 50 empresas em busca de aumentar o número de pretos e pardos nas organizações no Brasil.

Como resultado de negócio, a L’Óreal lançou no ano passado a nova nomenclatura das cores para o protetor solar e realinhou todas as marcas a partir de uma régua técnica classificação a partir de números. “Hoje temos 55 dos 66 tons de pele mapeado no Brasil. Neste ano, temos onze cores mais do que no ano passado, o que também demonstra consistência na evolução”, afirma Lívia Ferreira, Cientista de Proteção Solar L’Oréal Pesquisa & Inovação América Latina e Co-Líder AfroSOU.

Movimento semelhante ocorre na marca de cosméticos Avon, que ampliou a gama de cosméticos para a pele negra após, em 2019, 70% das mulheres participantes de uma pesquisa dizerem ser invisibilizadas pela indústria. A marca lançou um manifesto antirracista com o compromisso de ter 30% da liderança formada por pessoas negras até 2030.

“Este é um processo que acontece com muita escuta interna e externa. Um dos temas que discutimos no workshop com as pessoas negras, por exemplo, é que as cores de maquiagem para seus tons de pele sempre eram associadas a comidas e bebidas, como café ou chocolate, sendo que o mesmo não acontece com produtos para a pele branca”, diz Juliana Barros, head de marketing da Avon.

Padronização na moda 

A indústria da moda é uma das mais responsáveis pela idealização do padrão de beleza. Os desfiles com modelos magros, altos e, em maioria, brancos ocupam o imaginário das populações. Contudo, o perfil do brasileiro é bastante distante daquele mostrado nas passarelas.

Na fabricante de vestuário Renner, uma aposta foi o lançamento da marca plus size Ashua, em 2018, com até 58. De acordo com a companhia, o desafio é a falta de padronização nos tamanhos. É por isso que a companhia investe em pesquisas para compreensão dos tipos de corpos brasileiros e o oferecimento de ferramentas como tecnologia 3D a partir do escaneamento de corpos reais para a criação das coleções e para definir o sortimento de tamanhos no e-commerce.

Para Anay Zaffalon, diretora de negócios do Grupo Malwee, mesmo seguindo as normas da ABNT, o padrão do brasileiro segue diferente para cada região. Assim, a intenção da marca é estudar como uma peça pode vestir bem em todos. “Sabemos por exemplo, que a média de altura das pessoas no Sul é maior do que as das pessoas no Norte. O que fazemos é oferecer roupas para todos, pois temos marcas que precisam funcionar para a maioria e ser durável”, diz. 

“Apesar da média ser uma questão estatística que não condiz com a realidade dos corpos humanos, a população, de modo geral, segue buscando estar nessa linha. As marcas que souberem usar essa ideia para explorar novos produtos e atingir outros consumidores se darão bem, mas o que prevalece ainda é a ideia do que funciona para uma suposta maioria”, finaliza Florêncio, da ESPM.  

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