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Flores ou cerveja, posso ficar com os dois?

Daniele Botaro, líder de cultura e inclusão na Oracle, questiona a imposição de papéis pré-determinados para a mulher. "Lutamos para mudar as pessoas, não o sistema", diz ela. Na EXAME Plural

Daniele Botaro: "O ritmo é lento e ao observarmos a jornada com lupa para medir esse avanço, constatamos que as características que reduzem a distância entre a linha de partida e a linha de chegada ainda são privilégio de poucas" (//Divulgação)
EXAME Plural

Plataforma feminina

Publicado em 9 de março de 2024 às 09h10.

Última atualização em 9 de março de 2024 às 09h12.

Por Daniele Botaro

Há alguns anos, no dia 8 de março fui a um restaurante e, junto com o cardápio, o garçom me entregou uma rosa pelo Dia das Mulheres. Perguntei se poderia trocar minha rosa por um chopp grátis. Ele fingiu não entender a pergunta, porém com um sorriso sem graça me disse que infelizmente não poderia trocar. Fiquei com a rosa e com a indignação de ter que caber em uma única fórmula de ser mulher.

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O Dia Internacional da Mulher por muito tempo foi para mim uma data que vinha embrulhada em uma obrigatória embalagem (vermelha ou rosa, de preferência): ser mulher e ponto. Era só sobre bombons e flores e compartilhar memes de super-heroínas que davam conta de tudo (de salto alto, claro) em grupos de conversas. Porém, quanto mais me conheci, quanto mais camadas femininas eu descobri que havia, mais percebi que eram infinitas as possibilidades de papéis de presente para cada uma de nós.

Levou tempo até que eu pudesse apreciar as cores do meu próprio presente. Na verdade, achava que quanto mais preto e branco fosse o meu papel, mais salva eu estaria. Sendo ainda uma mulher lésbica, temia que alguém notasse as minhas cores e isso acabasse me “desqualificando” das celebrações do Dia das Mulheres. E aí, como eu viveria sem aquela rosa grátis no restaurante? (sic).

"O mais irônico é que, muitas vezes, nós mulheres lutamos tanto para pertencer que nem nos damos conta que tentamos caber em lugares que nem queremos"

Hoje, o 8 de março tem um significado muito diferente para mim. É uma data que traz com ela um convite para vestir minha melhor versão e assumir um compromisso não apenas comigo mesma, mas com todas ao meu redor. É um dia para bater palmas, recomendar profissionais talentosas, escrever feedbacks elogiosos para as lideranças delas e, acima de tudo, conectar mulheres incríveis que admiro. É ainda, o dia de expressar gratidão àquelas que não somente abriram portas, mas as mantiveram abertas para que outras de nós pudéssemos entrar em espaços antes inalcançáveis.

Vale dizer que não quero trazer aqui o discurso de que as mulheres podem fazer ou estar onde quiserem. Trabalhando com inclusão, equidade e diversidade nos últimos anos, aprendi que elas já entederam isso muito bem, mas os lugares e as pessoas que lideram os lugares, ainda não. Viemos lutando nos últimos 15, 20 anos pela equidade de gênero, mirando sobretudo na mudança das pessoas. E avançamos, pero no mucho! Sim, nos encorajamos e começamos a bater mais nas portas sim. Contudo, descobrimos que levaria muito mais tempo do que desejávamos para que essas portas se abrissem de fato para nós. O ritmo é lento e ao observarmos a jornada com lupa para medir esse avanço, constatamos que as características que reduzem a distância entre a linha de partida e a linha de chegada ainda são privilégio de poucas.

Sempre que assisto a uma cena do filme “Estrelas além do tempo”, me emociono muito quando o chefe do departamento formado por 99% de homens brancos, pergunta a sua única funcionária negra onde ela esteve nos últimos 40 minutos. Na sequência, ele diz que apostou todas as fichas no talento dela dando uma oportunidade (quase uma vaga afirmativa) e que ela não está valorizando ou se esforçando o suficiente. Daí – e aqui, aviso, tem spoiler! - a mulher, cansada de correr atrás dos seus sonhos, explica que leva 40 minutos para ir ao banheiro e voltar. Pois, vejam, no edifício em que o time trabalha, não existe banheiro para mulheres negras. Assim, ela precisa caminhar por mais de um quilômetro, de salto (olha ele aí de novo!), apenas para ir ao banheiro, o que impactava diretamente na produtividade dela.

Por que ninguém se deu conta dessa desigualdade antes? Por que ela nunca se sentiu confortável em compartilhar isso com a liderança? Quais os “banheiros” que estão impedindo as mulheres de serem bem sucessidas na sua empresa? É muito bom oferecer um programa de mentoring para as mulheres, mas você já revisou sua política de pagamento de bônus de vendas para a mulher que está em licença maternidade? Essas são as perguntas que precisam ser feitas no 8 de março. E isso não é sobre banheiros.

Lutamos muito para mudar as pessoas. Porém, o que há diante de nós é a necessidade urgente de mudar os sistemas, as ferramentas, os processos, as políticas e as regras do jogo. E sei que revisar sistemas e processos é bem pouco inspiracional. Imagina que ao invés de ter uma palestra com aquela empresária famosa,você precisará anunciar para as suas colaboradoras que vai revisar o conteúdo das vagas de emprego no site de carreiras ou monitorar o processo de integração de uma pessoa recém-contratada.

Mas é justamente isso que vai mover o pêndulo. Menos rosas, mais processos justos. E um chopp também aceitamos!

*Daniele Botaroé líder de cultura e inclusão da Oracle na América Latina.

AEXAME Pluralé uma plataforma que reforça a cobertura de diversidade, com olhar mais profundo para mulheres. Neste mês de março, que marca mundialmente a luta por direitos femininos, mais de vinte lideranças femininas no ambiente corporativo, no empreendedorismo e na filantropia aceitaram compartilhar em suas vozes, histórias, visões, questionamentos, respostas, desafios e oportunidades percebidas ao longo de suas próprias jornadas.

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