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Marina Silva, ministra do Meio Ambiente e da Mudança do Clima, sobre mapa dos combustíveis fósseis: "Boa parte de nosso mapa já está desenhado quando vemos a quantidade de coisas que já temos." (Raimundo Pacco / COP30)
Editora ESG
Publicado em 9 de dezembro de 2025 às 07h07.
Última atualização em 9 de dezembro de 2025 às 08h55.
Um despacho presidencial publicado na segunda-feira, 9, no Diário Oficial da União formalizou o que Luiz Inácio Lula da Silva havia prometido repetidas vezes durante a COP30: o Brasil terá seu próprio mapa do caminho para reduzir gradativamente a dependência de combustíveis fósseis.
A medida, no entanto, traz embutida a contradição que sintetiza o principal impasse do país (e talvez do mundo), o planejamento para abandonar petróleo e gás será financiado exatamente pelas receitas dessa mesma exploração.
O decreto determina que quatro ministérios - Minas e Energia, Fazenda, Meio Ambiente e Casa Civil - apresentem, em 60 dias, uma proposta de resolução ao Conselho Nacional de Política Energética com diretrizes para uma "transição energética justa e planejada".
O texto menciona ainda explicitamente a criação do Fundo para a Transição Energética, "cujo financiamento será custeado por parcela das receitas governamentais decorrentes da exploração de petróleo e gás".
É uma resposta tardia, mas necessária, à pressão internacional que o próprio presidente ajudou a criar em Belém.
Durante a Cúpula de Líderes e ao longo da COP30, Lula convocou o mundo a concordar com o início da construção de mapas nacionais para o afastamento gradual de petróleo, gás fóssil e carvão.
Em um de seus discursos mais enfáticos, comprometeu-se a agir: "Direcionar parte dos lucros com a exploração de petróleo para a transição energética permanece um caminho válido para os países em desenvolvimento. O Brasil estabelecerá um fundo dessa natureza para financiar o enfrentamento da mudança do clima e promover Justiça Climática."
Agora, menos de duas semanas após o encerramento da conferência em Belém, a fala se materializa em política pública, ainda que sob a forma de diretrizes a serem elaboradas.
Em conversa com EXAME, Marina Silva, ministra do Meio Ambiente e Mudança do Clima, defendeu o timing do decreto, mesmo em dezembro, quando Brasília costuma desacelerar.
"Não podemos perder tempo, quanto mais cedo o processo for iniciado, melhor. Considerando ainda que são quatro ministérios cujas dinâmicas não têm como parar", afirmou.
Para ela, a decisão presidencial tem peso político: "O presidente não faria um movimento desse com tanta ênfase - e que vem desde COP28, quando foi falado pela primeira vez, em que apresentou pessoalmente e liderou essa proposta - se não fosse algo sério."
A ministra traçou paralelos com outras políticas estruturantes do governo: "É algo semelhante ao que estamos fazendo com o desmatamento, na disposição de liderar pelo exemplo."
O despacho presidencial coloca em campo uma articulação interministerial complexa. Fazenda, Minas e Energia, Meio Ambiente e Casa Civil terão de convergir em torno de diretrizes estratégicas que, segundo Marina Silva, já partem de bases consolidadas.
"A feitura do planejamento precisa ser robusta, dialogando com todas as interações", explica a ministra, mencionando que o Brasil já possui elementos estruturantes: a matriz energética com 45% de fontes limpas, a Estratégia Brasil 2050 de desenvolvimento de longo prazo, a Política Nacional de Transição Energética, o Plano Clima com metas para todos os gases, a NDC brasileira e o Plano de Transformação Ecológica.
"Boa parte de nosso mapa já está desenhado quando vemos a quantidade de coisas que já temos", argumenta Silva. A questão agora é coordenar essas iniciativas dispersas sob uma estratégia unificada que enfrente a raiz do problema climático.
E aqui reside o principal ponto de tensão: como planejar o fim do petróleo sendo um país que não apenas explora, mas expande essa exploração?
A proposta de criar um fundo de transição energética custeado por receitas de petróleo e gás não é nova no debate internacional. Mas ao anunciá-la como bandeira brasileira na COP30, Lula pode ter assumido mais uma ambiguidade política que testará a coerência de seu governo.
Ambientalistas ouvidos pela EXAME reconhecem que o despacho está alinhado com o que o presidente demandou dos países durante a conferência de Belém, e que é natural e esperado que o autor da proposta faça o dever de casa.
A iniciativa, portanto, é avaliada como positiva, mas exige acompanhamento rigoroso para que o plano efetivamente produza resultados concretos.
A preocupação não é injustificada. O risco é que o discurso de "financiar a transição com petróleo" se torne justificativa para expandir a exploração, não para limitá-la.
Algo, que de certa forma, já vem acontecendo: três semanas antes da abertura da COP30, o governo autorizou a Petrobras a perfurar na Margem Equatorial, uma decisão que gerou manchetes internacionais e minou a narrativa de liderança climática que o país tentava construir.
Além disso, durante o G20 no Rio de Janeiro, realizado simultaneamente à COP29 de Baku, o Brasil articulou uma declaração final que evitou mencionar explicitamente o abandono dos combustíveis fósseis.
E nas negociações para o Tratado Internacional do Plástico em Genebra, em agosto, a postura brasileira foi criticada por ambientalistas que acusaram o país de ter se alinhado a nações petroleiras para bloquear limites à produção.
"Começamos em 2003 esse nosso mapa do caminho e mesmo o desmatamento ter chegado à redução de 83% não significou queda para o setor agrícola. Então quando se planeja a mudança, não somos mudados pelas circunstâncias, temos mais chances de potencializar", afirma Marina Silva, defendendo que a transição planejada pode evitar prejuízos econômicos.
Em que pese a contradição, vale reconhecer que o Brasil tem trunfos para fazer essa transição de forma menos traumática. A matriz energética relativamente limpa, o potencial em biocombustíveis e a experiência em políticas transversais são vantagens reais, como destacou a ministra e concordam muitos especialistas.
A COP30 em Belém terminou com avanços pontuais em adaptação, transição justa e mecanismos voluntários de implementação, consolidados no chamado "Pacote Político de Belém" com 23 decisões.
Contudo, a ausência de qualquer menção aos combustíveis fósseis nos textos finais das negociações foi percebida como grande fracasso, por serem responsáveis por cerca de 75% das emissões globais.
O gap entre intenção e realidade é considerável. Projeções mostram que a produção de combustíveis fósseis planejada até 2050 supera em 141% o limite compatível com as próprias metas climáticas dos países. Alinhar ambição e prática demandaria reduzir 43% das emissões globais até 2030 e 60% até 2035, a partir dos níveis de 2019.
Como ponderaram especialistas reservadamente para EXAME, esta seria uma omissão "sintomática". "Quando as negociações globais evitam nomear o que precisa ser enfrentado, o consenso diplomático produz apenas avanços marginais", reflete um deles.
Após o término das negociações, a presidência brasileira da COP emitiu uma declaração adicional a reconhecendo que pontos críticos permanecem sem solução e comprometendo-se a liderar um esforço global para a preparação dos mapas até a COP31, em 2026, na Turquia.
A Colômbia anunciou ainda a realização da primeira conferência internacional para a eliminação gradual dos fósseis, também em 2026.
Agora, a partir do decreto, segundo a ministra brasileira, o país passa a atuar simultaneamente em duas dimensões: desenvolve seu mapa nacional enquanto André Corrêa do Lago, presidente da COP30, trabalha nas diretrizes globais.
Marina Silva descreve o decreto presidencial como parte de uma metodologia que o governo vem desenvolvendo desde 2003.
"É um método, um processo que é o desdobramento da ideia de política ambiental transversal, não separado da ideia de desenvolvimento, a exemplo do Plano Clima, plano de prevenção de desmatamento, plano da BR-319", explica.
Para a ministra, a mudança necessária não é mais incremental, mas estrutural. E, por isso, precisa da liderança presidencial direta.
"A mudança não é mais incremental, é estrutural, não tem como ser isolada", afirma, citando vetos, combate a incêndios e criação de salas permanentes de gestão de crise como exemplos dessa atuação.
Segundo a ministra, as diretrizes deverão garantir participação ampla: agências internacionais, setor privado, comunidade científica e sociedade civil precisam ser ouvidos, especialmente considerando que muitos municípios dependem economicamente do setor.
A preocupação com os impactos sociais e econômicos da transição é central no discurso governamental. "Tudo isso pensar como isso se planeja no médio e longo prazo para não sofrermos acelerando a mudança, sem que isso signifique gerar prejuízos - potencializar ganhos, sem gerar prejuízos", resume Silva.
Marina Silva expressa confiança de que o movimento brasileiro pode gerar "força gravitacional" para que outros países sigam o mesmo caminho.
"Sendo presidente da COP, país que apresentou a proposta, isso dá um respaldo político. O Brasil e a Noruega [que também anunciou seu mapa] dão esperança enorme porque se esses países começam a criar suas rotas, criam força gravitacional de que todos precisam fazer o mesmo."
A ministra defende ainda a criação de estruturas de apoio semelhantes às que já existem para ajudar nações em desenvolvimento a elaborarem suas NDCs (Contribuições Nacionalmente Determinadas).
"Do mesmo jeito que há um secretariado de suporte à feitura de NDCs, podemos criar o mesmo para dar apoio aos que não tenham condições de fazer seus mapas, mas sempre com autonomia."
O que Marina Silva chama de "coerência entre o que está sendo dito e o que está sendo feito" será testado nos próximos meses.
Organizações ambientalistas já sinalizam que preparam propostas técnicas detalhadas sobre como deve ser estruturado um mapa brasileiro de transição energética justa e efetiva.
A resolução a ser apresentada ao Conselho Nacional de Política Energética terá de responder a questões fundamentais que o decreto deixa em aberto:
São aspectos que exigirão não apenas articulação técnica entre ministérios, mas vontade política para enfrentar lobbies consolidados e interesses econômicos poderosos.
A efetividade das ações nacionais de clima depende cada vez mais de instrumentos que vão além das negociações formais do regime climático global.
Iniciativas domésticas coordenadas entre governos, setor privado, sistema financeiro e sociedade civil podem preencher lacunas que o multilateralismo, sozinho, não consegue resolver.
E neste sentido, o decreto de Lula é um primeiro passo. Mas entre o papel assinado e a implementação efetiva, há um longo caminho.