Americanas: governança, pesadelos e grandezas compartilhadas
Se a solução do dilema impõe o reconhecimento da presunção de inocência, essa inocência dialoga também com uma eventual constatação de incompetência
Rodrigo Caetano
Publicado em 23 de janeiro de 2023 às 11h00.
Última atualização em 23 de janeiro de 2023 às 12h01.
Era uma vez um grande sonho. Três empreendedores tiveram o mesmo “Sonho Grande”. À sua maneira, seguiram a dica de Guimarães Rosa: não se dedicaram a fazer biscoitos, mas sim a fazer pirâmides, uma pirâmide de lojas que vendiam biscoitos, cervejas, e uma infinidade de produtos de consumo. As pirâmides verdadeiras duram milênios, como parecia ser o caso da já centenária Lojas Americanas S/A. Os esquemas financeiros chamados de “pirâmide” desaparecem como uma miragem, lesando inúmeros pequenos sonhadores, cujo pesadelo real volta a ser descobrir como pagar as suas contas individuais.
O pesadelo coletivo com a Americanas começou em 11/1/2023. Na voz serena e clara de um “outsider” ao problema, ouvimos, incrédulos, o anúncio do cataclisma. Lembrei do título do livro: Eu poderia ouvir as piores notícias dos seus lindos lábios. Uma lábia de rara serenidade, que poderia ser útil como porta-voz da Presidência da República. Caso um dia a Casa Branca precise anunciar a chegada do Apocalipse, é a voz com o tom certo para fazer o comunicado à humanidade.
Não é a primeira, a segunda ou a centésima vez que um escândalo empresarial explode como se não desse sinais dessa explosão. Ninguém viu? Como ocorre nas investigações desses casos similares, a pergunta central é: houve incompetência ou cumplicidade? A resposta a esse dilema costuma ser uma explosiva combinação desses dois fatores, com múltiplas incompetências e múltiplas cumplicidades. Uma combinação de falhas técnicas e falhas humanas, como se verifica nas quedas de avião.
Se a solução do dilema impõe o reconhecimento da presunção de inocência, essa inocência dialoga também com uma eventual constatação de incompetência, elemento inadmissível no discurso meritocrático, que governava a cultura de resultados propagandeada.
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Daqui para a frente, tende a se repetir a rotina do manual do compliance investigativo. O follow the money ("siga o dinheiro") estudará o padrão de pagamento de dividendos e de pacotes de remuneração, padrões de vendas de ações etc. Nessa análise da origem e histórico da catástrofe, o “follow the money” recomenda buscar compreender os conflitos de interesse que possam ter originado a oportunidade e, na análise do histórico, os padrões de uma “cultura de resultado” e de “meritocracia” que resultaram nos deméritos que estão agora expostos.
Conflitos de interesses
Talvez a situação decorra do notório risco de conflito de interesses de executivos com acionistas, que buscam mostrar bons resultados para obterem bonificações anuais, com números bonitos, que podem vir a empurrar um problema oculto para o futuro. Se foi assim, como não foi percebido pelas instâncias de controle da governança empresarial? O trio controlador parecia oferecer um histórico de controles bastante firmes para evitar ser vitimado. Porém, um dia, até o Rei Lear perdeu a visão.
Se é clássico que o potencial conflito de interesses é o centro da governança, também é basilar que a governança acionária tende a não ser exercida da melhor forma por acionistas desfocados e sem entusiasmo. A governança empresarial e seus controles são imperfeitos, não são ciência exata. Há limites subjetivos na dinâmica de buscar achar o ponto ótimo. Tentativas e erros. Por isso mesmo, todos os estudos sobre governança recomendam que seja ela exercida por profissionais com essa especialidade teórica, vivência prática, energia e atenção focadas, com remuneração compatível e independente.
Levando o olhar para os demais stakeholders da companhia, vem à mente uma frase atribuída a d. Helder Câmara: “Quando se sonha sozinho é apenas sonho. Quando sonhamos juntos é a realidade que começa.” O êxito de um sonho empreendedor surge da confiança, inspiração, motivação com que engaja pessoas, na realização do sonho sonhado por uma liderança empreendedora.
Quantos sonhadores aderiram à inspiração desse sonho e vivenciam hoje os seus pesadelos individuais? Funcionários, de vida inteira, cujos pacotes de ações da empresa triplo-A valem zero; investidores, que investiram na tradição de pagamento de dividendos de uma companhia “risco zero”; a cidade; os beneficiários dos projetos sociais. Microssonhos que vão se tornando macropesadelos.
O decano do trio personifica um ícone referencial no investimento social brasileiro, com as suas décadas de ações filantrópicas. Fez investimentos sociais decisivos para inúmeros jovens, cujos estudos foram patrocinados pelas bolsas da Fundações Estudar e Lemann, ou no apoio pessoal e central que tem dado à Gerando Falcões, cujo projeto transformacional já está presente em 700 favelas, trabalhando para “levar a pobreza para o museu”.
Qual legado sobreviverá?
Ao que surge agora em 2023, o legado central do trio orbitará este fato novo, um dos principais cases de governança, compliance, e gestão de risco da história empresarial brasileira. Mais um parâmetro a ser estudado pelas futuras gerações, inclusive num futuro ótimo livro a respeito que tenderá a nos trazer a Malu Gaspar.
Como qualquer atual manual de governança destaca, talvez alguma diversidade no trio de liderança pudesse ter contribuído para um desfecho diferente, se não fosse composto apenas por um bloco homogêneo de homens brancos de meia idade com formação financista.
Além disso, os 20 anos de mandato do CEO anterior reafirmam a recomendação técnica por alguma alternância de poder, o que sempre gera a oportunidade de um olhar “base zero” para as práticas empresariais e para a sua revalidação, como acabou ocorrendo na forma desse pesadelo. Vale a dica de Jacinda Ardern, a jovem primeira-ministra da Nova Zelândia, que está renunciando por não ter mais o “tanque cheio” para lidar com os desafios da responsabilidade de sua função. O #ficaadica aplica-se a executivos, conselheiros, auditores e acionistas.
Na Roma Antiga, quando um general exitoso era homenageado publicamente pelo auge de suas vitórias, vinha acompanhado por alguém que repetia constantemente ao seu ouvido: “Lembra-te de que és mortal”. No Brasil atual, esse “Memento Mori” é um lembrete que pode ser útil nas salas das gerências, diretorias e conselhos das grandes companhias, bem como na mesa de operações dos bancos e gestoras. Não há semideuses, somos todos falíveis e convém lembrar disso, especialmente nos tempos de vitória e vaidade. Se esse lembrete ecoa hoje quando o trio põe as suas cabeças nos travesseiros, teria sido mais útil tê-lo ouvido nos tempos de apogeu.
Quando o sonho começou, ao tempo da fundação do Banco Garantia nos anos 1970, Paulinho da Viola já cantava que “ é preciso viver e viver não é brincadeira não ”. “ Dinheiro na mão é vendaval/ Dinheiro na mão é solução/ E solidão, e solidão, e solidão, e solidão, e solidão, e solidão ” “ Na vida de um sonhador/ De um sonhador/ Quanta gente aí se engana/ E cai da cama/ Com toda a ilusão que sonhou/ E a grandeza se desfaz/ Quando a solidão é mais/ Alguém já falou. ” Pecado Capital, saudades de Janete Clair. Rosebud.
Luciano Porto é especialista em governança, atento à sua dinâmica nas relações empresariais, contratuais, familiares e ESG. Advogado e Conselheiro Independente IBGC CCA+