A independência e a interoperabilidade do mercado voluntário de carbono
O mercado voluntário complementa mercados de carbono obrigatórios, oferece uma via adicional para a redução de emissões e permite que empresas e indivíduos tomem medidas proativas
Colunista
Publicado em 10 de julho de 2024 às 18h18.
Tiago Ricci*
É consenso entre os países que compõem as Nações Unidas que a redução das emissões de gases de efeito estufa (GEE) se tornou essencial para mitigar os impactos das mudanças climáticas em todo o mundo.
Entre as diversas iniciativas e políticas existentes, o mercado de carbono se destaca como uma ferramenta eficaz para a redução das emissões de GEE. Enquanto muitos países ainda estruturam suas políticas públicas e regulações legalmente impostas para o mercado de permissão de emissões, os avanços do mercado voluntário (MVC) têm desempenhado um papel crucial para concretizar estas preocupações em ações práticas de conservação ambiental e redução de emissões.
São diversos os estudos que demonstram que as empresas que compensam suas emissões com a compra de créditos de carbono (offsetting) são, em geral, as que mais adotam práticas para a redução de suas emissões de GEE. A lógica é simples: em geral, essas empresas são as que mais se comprometem com sustentabilidade, inovação tecnológica e distribuição de co-benefícios socioambientais. Além disso, quanto mais reduzirem suas emissões, menos precisarão gastar com offsetting.
Ou seja, empresas que operam no mercado voluntário de carbono são geralmente líderes em práticas de redução de emissões de GEE.
Nessa linha, os Estados Unidos vêm claramente se posicionando quanto à importância de um mercado voluntário de carbono, mesmo na ausência de um mercado obrigatório legalmente regulado. Esses mercados de carbono (obrigatório por força legal e voluntário) são distintos e têm importâncias próprias, mas podem e devem ser interoperacionais.
Com isso, o governo americano tem adotado uma série de ações e políticas destinadas a fortalecer e garantir a integridade deste mercado, como o lançamento do "Voluntary Carbon Markets Joint Policy Statement and Principles", com o objetivo de estabelecer diretrizes para garantir a alta integridade dos mercados voluntários de carbono.
Outra medida anunciada pelo país foi o apoio aos agricultores e proprietários de florestas, feito pelo Departamento de Agricultura dos EUA (USDA), que ajuda esses profissionais a participarem do MVC.
São ações que refletem um compromisso abrangente do governo americano em apoiar o desenvolvimento de mercados voluntários de carbono robustos e confiáveis, capazes de contribuir para as metas climáticas globais.
O posicionamento do governo americano, embora recente, não é isolado. Países europeus como a Noruega já reconhecem a eficácia do MVC e seus impactos positivos para a preservação ambiental há mais de uma década.
Muitas vezes, é difícil estabelecer sistemas legalmente regulados em decorrência da diversidade de setores interessados e com visões diferentes de como se regular um mercado que repercute diretamente no meio ambiente, sociedade, economia e ciência. É o que estamos vendo no Brasil há anos, uma vez que temos previsão da existência de um mercado brasileiro de carbono desde 2009, na lei que estabeleceu a Política Nacional sobre Mudança do Clima.
Assim, na ausência de um mercado obrigatório imposto por lei, o MVC age como incentivador de inovação para ações de sustentabilidade, visto que estimula empresas a investirem em tecnologia e práticas sustentáveis, inclusive permitindo a participação de pequenas, médias e grandes empresas não abrangidas pela regulação legalmente imposta a algumas empresas e setores da economia. Isso é especialmente relevante em países em desenvolvimento, onde a infraestrutura regulatória pode ser limitada, possibilitando a participação deles em esforços globais de mitigação climática.
Também conecta projetos de preservação ambiental a fontes de financiamento que, de outra forma, não seriam capazes de se sustentar, contribuindo para a geração de empregos, desenvolvimento da infraestrutura local e melhoria da qualidade de vida das comunidades diretamente impactadas.
Além disso, o mercado voluntário contribui como ferramenta de precificação do carbono sequestrado e, embora o MVC represente uma fração dos créditos de carbono negociados globalmente, ele tem um impacto significativo na redução de emissões. Os projetos realizados em seu âmbito também geram benefícios ambientais, como conservação da biodiversidade e melhoria da qualidade do ar e dos recursos hídricos.
Esse também é o entendimento do Painel Intergovernamental sobre Mudança Climática das Nações Unidas (IPCC), que, conforme seu relatório científico produzido em 2022, coloca o mercado de offsetting como ferramenta de combate à mudança do clima.
A importância do MVC é clara e, para o Brasil, é extremamente significativa. Isso porque o potencial de crescimento do MVC até 2030 é de US$ 50 bilhões, conforme estudos produzidos por instituições como McKinsey e S&P Global.Se considerarmos que o Brasil pode capturar uma parte significativa desse mercado, especialmente devido ao seu potencial para projetos de REDD+ e reflorestamento, é possível estimar um volume financeiro entre US$ 5 bilhões e US$ 10 bilhões até 2030 no país.
Isso é relevante para o cenário nacional, uma vez que o MVC gera impactos significativos nas economias locais. Um relatório da Climate, Community & Biodiversity Alliance (CCBA) revelou que projetos de carbono que envolvem comunidades geram empregos, promovem a infraestrutura local e a melhoria da qualidade de vida das comunidades envolvidas. Esses benefícios adicionais aumentam a atratividade e a eficácia dos mercados de carbono como ferramenta de política climática abrangente.
No entanto, o MVC tem suas adversidades, como todos os mercados globais, e isso precisa e vem sendo enfrentado. Os desafios passam desde a ausência de padronização global para geração de créditos de carbono de alta integridade, o que pode resultar em variações na qualidade e até mesmo em ações que podem ser consideradas como greenwashing. Isso porque algumas empresas acabam usando o MVC como ferramenta de marketing sem um compromisso genuíno com a redução de emissões, comprometendo a credibilidade do mercado.
Ainda assim, o aumento do escrutínio público representa um reflexo direto do amadurecimento desse mercado, ainda que sem um marco legal. Nele, seus atores passam a exigir cada vez mais robustez técnica do sistema onde atuam, de forma a buscar o aprimoramento científico de metodologias e processos de geração e verificação destes ativos.
Um exemplo dessa evolução é que, até 2020, poucos projetos de carbono no Brasil possuíam certificação adicional que verificasse, além do crédito de carbono, melhorias da sociobiodiversidade nas áreas de influência dos projetos.
Desde então, a maioria dos projetos brasileiros passou a buscar essa certificação adicional e isso se tornou essencial para manter o valor e a atratividade dos ativos gerados.
Os desafios existem, mas a dinâmica do mercado voluntário de carbono permite que padrões de certificação, desenvolvedores, investidores e compradores rapidamente se adaptem e busquem os aprimoramentos técnicos, sociais e científicos necessários para refletir sua importância.. O papel estratégico do MVC fica cada vez mais evidente com o amadurecimento do sistema e de seus atores, que vêm se adequando às exigências técnicas e metodológicas que demonstrem cada vez mais integridade.
Assim, para maximizar seu impacto, é fundamental aprimorar a transparência, a padronização e fomentar um compromisso genuíno com a sustentabilidade.
O MVC, ainda que não exista um mercado legalmente regulado, é crucial na mitigação das mudanças climáticas, promovendo a inovação e práticas sustentáveis ao passo que pode ser instrumento para geração de bilhões de dólares em investimentos, que são revertidos em emprego e renda para comunidades locais.
*Tiago Ricci é diretor comercial da Systemica.