A governança do almoço de domingo
O almoço de domingo é um microcosmo das relações pessoais, das relações nas empresas familiares -- que são a maioria das empresas brasileiras. É um convívio que repercute na formação das identidades individuais, nas condutas empresariais e na governança do país
Da Redação
Publicado em 16 de outubro de 2022 às 09h01.
O “almoço de domingo” é um evento de periodicidade ritmada, semanal, quinzenal, mensal, que se repete talvez por décadas. Costuma reunir um núcleo familiar originário e seus agregados, em torno de uma refeição. Uma lasanha, uma feijoada, uma galinhada, um churrasco, uma peixada, um caruru, um estrogonofe, um vatapá, um cachorro-quente, “doce de abóbora com côco, bala juquinha, algodão doce, manjar”.
Um ritual de compartilhamento de afetos atuais, de memórias históricas, e de eventuais projetos comuns para o futuro. Encontros assim acontecem em torno de milhões de mesas no Brasil a cada semana, nas 50 semanas deste ano, nas mais de 100 semanas vividas desde o início da pandemia, nas 500 semanas que compõem a última década.
O almoço de domingo é um microcosmo das relações pessoais, das relações nas empresas familiares -- que são a maioria das empresas brasileiras. É um convívio que repercute na formação das identidades individuais, nas condutas empresariais e na governança do país.
Como toda instituição, o “almoço de domingo” tem uma governança, uma dinâmica de relacionamento entre os seus participantes. Para manter a instituição vitalizada, convém perceber a sua governança.
Se um dia couber a você liderar essa iniciativa, como você escolheria organizar o seu almoço de domingo? Inovaria, repetiria, não faria? É preciso haver resiliência no grupo, em insistir, em querer manter-se unido, em renovar-se, em atualizar-se. Alguns de nós optamos por assumir essa missão de vida, como um propósito para viver.
A governança do almoço de domingo inclui elementos recorrentes, como a comida, as pessoas presentes e ausentes, o espaço, os ritmos de tempo e movimentos, e o ânimo das pessoas e do grupo. A comida afetiva é uma motivação para unir as pessoas, um pretexto para a continuidade dos encontros.
Os frequentadores do seu “almoço de domingo” são majoritariamente consanguíneos? São uma família especializada em alguma atividade? Música, hipismo, vida militar, Carnaval, medicina, advocacia, política, religião, esporte? Têm um histórico de atuação profissional privada ou pública? Estão empregados? São empreendedores? Todos pertencem a uma mesma religião, a uma mesma raça, a uma mesma sexualidade? Há deficiente físicos ou mentais? Participam do encontro?
Como são os portais de entrada e de saída ao grupo? Quem cuida da acolhida, faz o onboarding? Quem marca o horário e o local? Quem escolhe e chama os convidados? Quem escolhe o cardápio? Quem compra os ingredientes? Quem paga a conta? Quem faz a comida? Quem põe a mesa? Quem tira a mesa? Quem lava a louça? Quem guarda a louça? Quem tira o lixo?
O encontro é um espaço de diálogo, de delimitações e de interações. Uma espécie de praça privada, uma ágora familiar. Acontece em casas particulares, restaurantes, clubes. O formato das mesas pode ser retangular, quadrado, oval, redondo. Pode haver uma mesa única, ou mesas espalhadas. Qual é o critério para a organização das pessoas nas mesas: nenhum critério, idade, sexo, mesmo time de futebol, outro critério? Quando você ganha o seu assento, você fica ali para sempre, conversando apenas com as pessoas ficam do seu lado ou à sua frente? Ou a dinâmica do encontro permite o diálogo com grupos de pessoas variadas?
O “almoço de domingo” não precisa ser um almoço. Pode ser um jantar, um piquenique, uma chopada. Não precisa ser num domingo. Não é um retrato idêntico que se repete no tempo. Tem o seu ritmo próprio, na frequência de sua ocorrência, nos movimentos dos participantes e nas dinâmicas que o vitalizam.
Essas dinâmicas podem ser avaliadas e estimuladas por vários indicadores, como ocorre com as métricas ESG. A comida é sempre igual ou varia? O grupo valoriza uma relação afetiva com a comida dos almoços de domingo? Há um prato único ou há também refeições especiais para gostos ou necessidades individuais? O preparo da comida é uma iniciativa individual ou participativa? Acontece no próprio encontro ou antes? Há conversas no almoço? Ou apenas sentam-se para comer em silêncio? Há conversas que fluem? Quem fala? Quem ouve? São pronunciamentos paralelos? Ou um fala sobre o que ouviu e o outro responde levando em consideração as palavras anteriores? Há silêncio, silêncios? Tem música? Que tipo de música? As posições na mesa de almoço são sempre as mesmas ou há variações? Há cabeceira? Cabeceiras? Com titular fixo ou rotativo? Há uma significação ou hierarquização na alocação de assentos? Há apenas participantes presenciais ou também participações especiais on-line, de pessoas que estejam fora?
É uma cultura familiar fechada ou aberta? Como reage esse grupo quando convidados ou participantes habituais revelam perfis diferentes, trazendo assuntos e abordagens diversas das rotinas do grupo?
Qual a temática preponderante das conversas? Qual é a pauta de que se fala e de que se silencia? Fala-se da previsão do tempo, do noticiário político, esportes, fofocas, celebridades, do cotidiano familiar, das conquistas familiares, dos desafios familiares, das finanças familiares?
Toda instituição longeva passa por etapas de “fadiga de materiais”, ciclos de crise, decadência e renovação. Além disso, o “almoço de domingo” vem sendo sacudido pelas diferenças emergidas desde 2016 ou 2018, pela descontinuidade pandêmica em 2020 e 2021, e pelos reencontros em 2022. E, a qualquer tempo, são encontros que podem envolver significações pessoais intensas, com boas lembranças, más lembranças, neutralidades, indiferenças e esquecimentos, reais ou não.
Podem significar sonhos compartilhados, projetos a realizar em conjunto, vontade de viajar, de fazer festas, de estar juntos. Podem ser um passatempo agradável, reconhecido como um privilégio de convívio íntimo, vitalício e hereditário. Pode haver a vontade de continuidade, de reinvenção, e também a vontade de interrupção ou afastamento.
É nas crises que os grupos se testam, se delineiam, se limitam, se delimitam, se validam, se revalidam, se unem, se desunem, se superam, se renovam. Esse teste atual é um legado positivo da atualidade esgarçada. Um teste de verdade, das verdades, que podem gerar períodos de união e desunião, de convívio e de afastamento. Cabe aos grupos fazerem as suas escolhas, dos seus limites, dos seus propósitos.
Sempre foi assim ou era diferente? Quando mudou? Por que mudou? Como pode ser? Como deve ser? O que seria melhor? O que você sugere?
Nas conversas, o objetivo é gerar felicidade ou ter razão? Além das palavras literais, como é o gestual, o comportamento, a história, o contexto, o tom? Quais condutas são estimuladas ou desincentivadas? Às vezes, a gangorra vai para um lado, às vezes para o outro. “C’est la vie”, dizia meu avô.
E quando a gangorra vai para a posição de conflito? O que é tolerável? O que é perdoável? O que parece irremediável, irreconciliável? A boa governança sempre inclui uma cláusula de solução de controvérsias. O almoço de domingo costumava ter a sua dinâmica de equacionamentos, com uma “turma do deixa disso” ou uma palavra ou olhar final dos mais velhos. Os tempos são diferentes, as pessoas e os relacionamentos estão mais esgarçados, vulnerabilizados e dispersos. Agora, quem cuidará da gestão de mágoas, de busca de superação? Quem mediará ou arbitrará os eventuais conflitos que surgem? Uma pessoa exerce essa função ou há uma dinâmica descentralizada, como uma brigada de incêndio, atuante no desejo e nos esforços de convencimento, de diálogo e de renovação da união, de re-união, comum união, de comunhão?
O tempo não retroage. As questões trazidas aqui afetam desde os encontros em torno da mesa mais vivida, comprada há anos com carnê da Magalu, até a nova mesa com o design mais requintado, comprada na Rua Gabriel Monteiro da Silva. No fundo ou no raso, os donos de ambas as mesas sentem que o maior valor das suas vidas são as pessoas que se reúnem em torno de suas mesas, nos almoços de domingo. A união e o bem-estar dessas pessoas são a razão de existir e o propósito desses encontros.
Muita gente prefere não pensar em nada disso, apenas fluir. Ah, sei lá. É isso aí, é o que é. Sempre foi assim, sempre vai ser. “Você pensa muito!”
E por que pensar na governança de um almoço de domingo? Talvez para contribuir um pouquinho, para termos encontros mais agradáveis, famílias mais unidas, entrosadas e produtivas, que se multipliquem num país mais harmonioso, com melhores perspectivas de trabalhos conjuntos e de vidas mais realizadoras e felizes.
Que venham os próximos domingos!
Luciano Porto é especialista em governança, atento à sua dinâmica nas relações empresariais, contratuais, familiares e ESG. Advogado e Conselheiro Independente IBGC CCA+.