Economia

Redução de bolsas levam pós-graduandos a trabalhar como Uber

Para especialista, saída pelo subemprego é resultado da queda do fomento à ciência e do cenário de aumento da inflação

Viagem por aplicativo: motoristas estão mais seletivos com corridas (Germano Lüders/Exame)

Viagem por aplicativo: motoristas estão mais seletivos com corridas (Germano Lüders/Exame)

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Agência O Globo

Publicado em 30 de julho de 2021 às 20h58.

O ingresso em uma pós-graduação é uma realização para muitos pesquisadores mas, sem bolsa e enfrentando a crise econômica, estudantes recorrem à informalidade para bancar os estudos. Sem carteira assinada, os jovens pesquisadores entram no grupo dos 34,7 milhões de brasileiros que estão na informalidade, segundo dados da Pnad divulgados nesta sexta.

Em dez anos, o número de bolsas ofertadas pelo CNPq caiu 68% para o mestrado e 80% para o doutorado, por descontinuidade e cortes no orçamento da pasta, segundo banco de dados do próprio CNPq. E os valores de R$ 1.500 para mestrado e R$ 2.200 para doutorado não sofrem reajustes há 8 anos.

Para obter uma bolsa, o candidato não pode ter vínculo formal de trabalho. Como o valor é baixo, mesmo quem consegue uma, muitas vezes se vê obrigado a complementar o orçamento com o trabalho informal.

O cenário de poucas bolsas para mestrado e doutorado fez com que muitos recorressem a subempregos. Para o economista Bruno Imaizumi, da LCA Consultores, é reflexo da queda do fomento à ciência e da alta da inflação desde o começo da pandemia, que demanda uma fonte de renda a curto prazo, ainda que com salários abaixo do esperado para a profissionalização.

Conheça a história de quatro pós-graduandos que, diante do aperto econômico e da falta de bolsas, abdicam do tempo dedicado à pesquisa acadêmica, sua profissão, para sobreviver.

“Recebi auxílio emergencial para ajudar na feira da semana”

Foi em São Paulo que o economista Abraão Tavares, de 32 anos, começou a pós-graduação. O percurso na Unifesp, iniciado em 2019, aconteceu um ano depois de uma tentativa frustrada de mestrado na UFPE, interrompida por falta de bolsas.

Começou então a fazer bicos em construções em Maceió, por ter formação técnica em edificações. Trabalhando de domingo a domingo por meses, juntou dinheiro para, em 2019, se sustentar em São Paulo.

Outro balde de água fria na Unifesp: passou em sexto lugar, mas só havia 3 bolsas disponíveis. Usou a poupança para morar com a prima em São Paulo, mas não conseguiu conciliar com outro bico em construção. Entretanto, tudo piorou com a pandemia.

— Entre abril e dezembro de 2020, comecei a receber o auxílio emergencial, para ajudar nas compras da feira da semana, o que me ajudou a respirar um pouco e comer melhor. Antes, só tinha dinheiro para o básico, como arroz, feijão, a fruta que estivesse na promoção e frango, porque era a carne mais barata — conta.

Mesmo com a ajuda financeira dos pais e uma bolsa de projeto recebida pelo Ministério Público de São Paulo por cinco meses, no valor de R$ 1.100, não houve tranquilidade financeira, e a produtividade foi muito afetada.

Abraão teve que adiar a defesa da dissertação em um semestre e, desde novembro de 2020, trabalha na prefeitura da sua cidade no interior da Bahia, e só consegue ficar 3 horas por dia preocupado com a pesquisa.

“Trabalho 15 horas por dia como Uber para complementar a bolsa”

Para a doutoranda em Zootecnia na UFPel Patricia Rosa, de 42 anos, o valor de R$ 2.200 da bolsa de doutorado não foi suficiente para passar com tranquilidade pela crise econômica durante a pandemia.

O aumento significativo na alimentação e no valor do aluguel fizeram com que, em maio, Patricia parcelasse um carro popular para entrar na Uber.

— O meio informal e rápido de conseguir um subemprego foi a Uber. É muito desgastante porque eu tenho que fazer uma jornada de 15 horas para ter o mínimo de lucro. Daí, eu chego em casa e ainda tenho que tirar algumas horas para estudar — conta.

Diariamente, começa a rodar às 6h e fica no volante até 21h para tirar R$ 100 reais, que ajuda a complementar as contas da casa e pagar o aluguel de R$ 1 mil. Quando chega, começa a segunda jornada, de avançar na tese.

Entre 22h e 1h da manhã, começa a escrita do trabalho, mas não tem o desempenho que gostaria. Além de cansada, a rotina de trabalho informal frustra a pesquisadora:

— É humilhante trabalhar assim. Quando eu entrei no mundo da pós-graduação, sonhei, mas na hora de chegar na ponta e ganhar dinheiro, me deparei com essa situação, tendo que abandonar parte da vida de pesquisadora para trabalhar com subemprego. Vou me formar daqui a pouco e aí, ficar de Uber? — reflete Patricia.

“Se não conseguir bolsa até o fim do ano, vou ter que largar o doutorado”

Desde a licenciatura em Química pela UFPB, Isabela Lira, de 26 anos, sonhava com o magistério. A jovem de Guarabira, no interior do estado, levou o sonho para um mestrado na universidade, em 2018, com bolsa do CNPq.

Em 2020, passou em primeiro lugar para o doutorado, também na UFPB. Entretanto, não abriram bolsas para os doutorandos aprovados, situação que persistiu nos dois processos seletivos seguintes.

— Entre o mestrado e o doutorado, fiquei fazendo bicos de correção de ABNT e revisão textual de monografias, e tirava R$ 500 por mês. Eu vinha sobrevivendo com um dinheiro que juntei da bolsa de mestrado, mas foi acabando. Como vivia sozinha e pagava minhas contas, arranjei um bico de extra em um restaurante durante o fim de semana — conta.

E as 12 horas de trabalho nos fins de semana, que garantiram R$ 600 no mês de outubro de 2020, viraram um trabalho com salário mínimo e expediente de seis dias da semana, de 12 horas.

Em fevereiro deste ano, Isabela recebeu aviso prévio do restaurante e, sem renda, voltou às correções de monografias. Mas não conseguiu voltar ao doutorado.

— As correções são hoje a minha única fonte de renda e, por isso, minha prioridade. Eu não tinha como dar conta das matérias junto, então tranquei minha matrícula em maio. Se eu não conseguir uma bolsa até o fim do ano, vou ter que sair do doutorado e tentar outra atividade com a minha formação em licenciatura — lamenta.

“Faço uma segunda graduação para pagar o que viria pela bolsa”

O internacionalista Henrique Magalhães, de 28 anos, fez história na família duas vezes: em 2016, por ter um dos primeiros a concluir uma faculdade; e em 2021, por ser o primeiro a ingressar em uma pós-graduação. O jovem de Campo Grande, na Zona Oeste do Rio, passou para mestrado em Economia Política Internacional na UFRJ, mas nenhum dos 15 estudantes da turma têm previsão de bolsa.

Desde os 22 anos, Henrique recorre à informalidade para complementar os estudos. Em 2015, começou a dar aulas particulares de Química para custear alguns materiais escolares — hoje, ensina Inglês e História.

Em 2020, começou uma segunda graduação em Administração para ter mais chances no mercado de trabalho e, em 2021, conseguiu um estágio na área que, junto com a renda das aulas, serve para arcar com os custos da graduação e do mestrado.

— Estudar na UFRJ sempre foi um sonho e, mesmo passando em quarto lugar, não estava nos favoritos para a bolsa. Se eu tivesse, poderia me dedicar exclusivamente aos estudos, mas eu preciso ganhar dinheiro, então eu faço bicos, dou aulas particulares e faço estágio em outra área — explica.

Desencantado com a falta de fomento à pesquisa no Brasil, para o doutorado, Henrique olha para o exterior, como o Japão, um de seus objetos de estudo no mestrado, devido a maiores incentivos financeiros aos pesquisadores. Segundo ele, tentar uma bolsa de doutorado no Brasil é sinônimo de passar pelo mesmo cenário que vive hoje.

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