Editor de Macroeconomia
Publicado em 25 de julho de 2024 às 09h07.
Poucos bancos sentiram no seu dia a dia, e no de seus clientes, os efeitos da hiperinflação dos anos 80 e do início dos anos 90 como a Caixa Econômica Federal. A instituição financeira tem 151 milhões de clientes, a maior parte deles das classes C, D e E. Enquanto a população bancarizada tinha acesso a aplicações financeiras, como o overnight, para combater a perda de valor do dinheiro, os mais pobres, naquela época muito mais desbancarizados, tinham muita dificuldade de proteger seu poder de compra.
"O período inflacionário foi terrível para a gente", diz Carlos Vieira, presidente da Caixa. "Eu me lembro de ter tido acesso à nossa tesouraria, e naquela época a Caixa precisava recorrer a bancos de segunda linha para, em nome dela, fazer gestões no mercado de capitais para poder fechar sua tesouraria. Você imagina isso hoje em dia? É impossível pensar nisso."
Vieira, que está na Caixa desde 1982, falou com a EXAME para a série especial sobre os 30 anos do Plano Real. Ele viveu na prática como o descontrole monetário afetava a operação do banco público. "Vivenciei dentro de uma mesa de operações da Caixa um momento em que a Caixa recorria a bancos de segunda linha para fechar suas posições. Hoje, a população de baixa renda tem na Caixa uma grande parceira. Nós estamos criando uma série de modelos de incentivo para trazer esse povo ainda mais para o mercado bancário", afirma.
"Qual o grande papel da moeda? É instrumento de troca, de reserva e de valor. Com as moedas antes do Real, ninguém queria mais elas como instrumento de troca, porque instrumento de troca tem valor quando eu tenho ele comigo e não tenho pressa em trocá-lo. E todo mundo queria se desfazer da moeda. Você perdia a referência. E o valor da moeda é quando você quer entesourar, manter ela sob seu domínio. Então, sobre esses aspectos, eu acho que o Real trouxe de volta esse desejo de você não querer rapidamente fazer as coisas. 'Ah, eu quero trocar um carro.' Beleza, vou esperar aqui um ano, não tem problema. Antes do Real, você dizia assim: 'Tenho que trocar meu carro hoje, senão minha moeda não vai permitir que eu troque o carro daqui a um ano. Tenho que fazer alguma coisa imediatamente.' Era um processo de ansiedade em relação a se desfazer da moeda. O Real teve um papel fundamental para chegar ao Brasil na forma como a gente tem hoje"
Para Vieira, o modelo de negócios do banco estatal, como tantos outros, naturalmente se beneficiou da estabilidade econômica. "A Caixa é um banco que, do ponto de vista da duration das operações, você cria operações de longo prazo. Se você tem uma economia estabilizada, isso ajuda a manter a relação do ponto de vista de retorno dessas operações. A Caixa essencialmente trabalha com operações de prazos mais alongados", diz.
Segundo ele, essa maior certeza econômica ajuda a precificar produtos para, ao longo do tempo, fazer o seu papel da Caixa e também ter o retorno necessário à sobrevivência da instituição. "Com operações de longo prazo num modelo econômico e monetário instável, criou-se um descompasso muito grande. Hoje, a Caixa tem um universo muito mais tranquilo do ponto de vista das suas relações do que no passado. Nós tivemos uma situação muito delicada quando, no ano do fechamento do BNH, poderia ter sido a Caixa a instituição a ser fechada naquela época", diz, referindo ao Banco Nacional de Habitação, antigo gestor do FGTS e extinto em 1986.
O presidente da Caixa lembra que, à época, era natural haver alguma descrença com o plano econômico, sobretudo por causa do fracasso dos planos econômicos lançados até então.
"As tentativas de natureza heterodoxa não surtiram efeito. Elas surtiram um efeito de curto prazo, eram um voo de galinha. Na realidade, todas essas medidas estancavam a inflação, mas como a inflação estava assentada por uma série de elementos estruturais da economia, ela voltava no ciclo seguinte. Era como se represasse o momento e depois ela estourava, usando um termo mais popular. E aí gerou uma descrença", afirma Vieira.
Segundo ele, uma das lições do real foi adotar "toda uma tecnologia monetária". "Houve uma construção feita a partir de uma compreensão de que o primeiro momento que teria de ser feito era desindexar da mente da população o efeito da chamada inflação inercial", diz. "Ou seja, eu já criava uma expectativa de inflação, e ao absorver dentro do coletivo essa ideia, todo mundo já tinha uma expectativa: hoje eu pago por um cafezinho R$ 1, amanhã eu vou pagar R$1,30 porque é assim que se dá. Era uma lógica coletiva. Como quebrá-la?"
Nesse ponto, ele destaca a criação da URV, entre outras medidas, que serviram para ancorar e dar previsibilidade sobre a nova realidade monetária. "Um exemplo gritante disso: você comprava um móvel, um bem de consumo, um eletrodoméstico, e você tinha uma tabela que era deflacionada. Ou seja, ela tirava já da expectativa que estava no preço um valor futuro de ajuste", diz Vieira.
Para Vieira, o Real faz parte de uma série de transformações positivas que a economia nacional sofreu nos últimos 30 anos. "Ele trouxe estabilidade monetária trouxe ao Brasil até hoje", diz. Dentre essas transformações, avalia, está a consciência sobre a importância da política fiscal como um todo e da responsabilidade fiscal dos estados e municípios, um processo de reformas que também foi iniciado no final dos anos 90 — e segue como tema até hoje. "Isso é uma questão pétrea do ponto de vista de gestão pública", afirma Vieira. "O terceiro aspecto são as reformas que aconteceram e a última reforma, que é a reforma tributária, que tem um papel importantíssimo nesse contexto de estabilidade e crescimento do país. A reforma tributária, que era uma expectativa gerada naquela época, só se concretiza com o governo atual, com uma relação entre o Parlamento e o governo para que ela se dê. Então, você imagina o ciclo que foi durante esses 30 anos para isso acontecer."
Vieira também refletiu sobre o futuro da moeda, com a chegada do Real Digital (DREX) e a transformação digital do setor bancário e da Caixa. "Estamos na quarta onda bancária. Tem um escritor, o Brett King, que escreveu o livro 'Bank 4.0', onde ele define o que é esse universo de banco. Ele tem uma frase que diz assim: 'Banking is everywhere, not a bank.'", afirma Vieira. "Na Caixa, iniciamos um processo biométrico de reconhecimento facial e de biometria que está fazendo e já está fazendo com que milhões de brasileiros não precisem mais fazer o deslocamento para receber o benefício social pelo cartão físico."
Para ele, o futuro da moeda e do mercado de crédito está diretamente ligado à inovação tecnológica. "O mundo está sempre em evolução, em mudança e em avanço. A tecnologia vem como um grande solucionador de problemas," afirma. Ele acredita que as transformações tecnológicas serão essenciais para resolver problemas ecológicos e econômicos atuais, destacando o potencial de crescimento do crédito imobiliário no Brasil.
Loyola foi entrevistado para a série documental "Plano Real, 30 anos", um projeto audiovisual da EXAME que ouviu alguns dos principais economistas, executivos e banqueiros do Brasil.
Entre os entrevistados estão:
Assista às entrevistas já publicadas: