Zuccardi: vinhos que se transformam pelas gerações
Com três gerações trabalhando juntas, a vinícola argentina mostra como a sucessão pode ser o momento para inovar
Da Redação
Publicado em 24 de março de 2018 às 09h21.
Última atualização em 24 de março de 2018 às 17h16.
Visto a partir da Rota Nacional Sete, no trecho entre a fronteira com o Chile e a cidade de Mendoza, o Aconcágua, com 6.961 metros de altitude, emana uma densa fumaça de gelo em seu topo — um aviso para todos aqueles que desafiam escalá-lo. Acostumado a viajar pela estrada desde a infância, José Alberto Zuccardi, um dos principais nomes da indústria do vinho argentina, decidiu subir a montanha em 2004, quando tinha 45 anos e nenhum preparo físico para isso. A decisão foi repentina. Zuccardi tinha recebido a visita do importador de seus vinhos na Polônia, que conjugou a viagem de negócios com o hobby da escalada. “Eu pensei, este homem veio da Polônia só para subir o Aconcágua. E eu, que estou aqui todos os dias, nunca subi. Decidi que tinha que escalar”, diz. “Entrei numa academia para me preparar e subi no ano seguinte. Convidei os meus filhos para irem comigo. Dois deles acharam que eu estava estava louco. Apenas Sebastián foi comigo.” Subir a montanha não foi apenas uma aventura de pai e filho, mas acabou por consolidar a transição do comando da vinícola — que agora, em 2018, se materializa numa nova linha de vinhos que começa a ser vendida no Brasil.
Na época da escalada, José Alberto já ensaiava passar o comando dos vinhedos para o seu filho Sebastián, então formado em engenharia agrônoma e com uma temporada trabalhando em vinícolas da Europa. O primeiro passo para isso já havia sido o início da produção de parte dos vinhos na região do Valle de Uco, como insistia Sebastián. Era lá, a 1.200 metros de altitude, que as principais vinícolas da região de Mendoza estavam produzindo seu rótulos mais prestigiados. Até então a produção se concentrava apenas nas regiões mais baixas e mais quentes (algo pior para as uvas) de Santa Rosa e Maipú. A viagem montanha acima, quando a confiança mútua é essencial para a sobrevivência, fez com que José passasse, enfim, a acreditar que a empresa, cuja produção anual é superior a dois milhões de garrafas, estava no rumo certo.
A Zuccardi foi fundada quase por acaso. O engenheiro Alberto Zuccardi, pai de José Alberto, comprou, no início dos anos 1960, um lote de terra para demostrar um sistema de irrigação por gotejamento, que queria vender para os agricultores da região de Mendoza, cercada por deserto. O que começou como um show-room se transformou no negócio principal da família já no final daquela década, produzindo sobretudo vinhos de mesa. José Alberto entrou na empresa em 1976 com a ideia de melhorar a qualidade da produção e exportar — a busca por clientes no exterior continua a ser uma atividade que ele faz até hoje. “A ambição de meu pai era com o vinhedo, com a tecnologia. Eu sempre tive muito espaço. Nós nunca competimos e eu pude fazer coisas na empresa diferente daquelas que meu pai havia feito, como hoje está acontecendo com os meus filhos”, diz Zuccardi.
Alberto morreu em 2014, mas as três gerações da família continuam a trabalhar juntas. A mãe de José Alberto trabalha na fundação, voltada para atividades educacionais, e em exposições de artistas locais apesar dos 92 anos. “Na nossa empresa não há aposentadoria. Se trabalha o que pode e até quando for possível”, ele diz. A filha Julia comanda os três restaurantes da vinícola, enquanto o filho Miguel é o responsável pela linha de azeite. Negócios complementares e que, segundo ele, “versam sobre os prazeres da vida”.
Do lado da produção há agora um trabalho constante de descoberta de perfis diferentes de terroir dentro da mesma propriedade. Chega-se a ter quatro perfis diferentes de solo, com mais ou menos calcário ou com pedras de tamanho distintos, em menos de quinze metros de distância. “ Com a troca geracional, sentimos que estamos começando uma etapa de vinhos que falam de lugares, porque o lugar sempre tem uma interpretação. A mesma variedade se expressa de maneira distinta em distintos lugares. A uva malbec pode ser coisas muito diferentes de acordo com os lugares e com as pessoas que a vinificam”, diz Zuccardi.
Essa é a grande revolução posta em prática pelo filho Sebastián, manifestada sobretudo no rótulo Concreto, um malbec envelhecido (e não apenas vinificado) em barris de concreto, que permite uma constante micro-oxigenação do vinho. O resultado é um malbec delicado e suave e que em nada lembra o clássico vinho argentino. Há também o refrescante branco Fósil, que utiliza uma mistura das melhores uvas dos solos aluviais do Valle del Uco. No Brasil, os rótulos começam a ser trazidos pela importadora e varejista Grand Cru.
“Esses vinhos mostram que uma geração pode construir sobre o que a outra geração fez. Há uma base de confiança e de apoio que permite fazer projetos de longo prazo, como fizemos no Valle de Uco”, diz Zuccardi. “Nas grandes corporações, os resultados são anuais, mas no mundo do vinho os projetos têm cinco, dez, quinze anos. Não é um atividade que as corporações podem fazer, mas as famílias podem.” A dimensão é, como ele mesmo diz, similar a subir a montanha: as pessoas passam por ela, vivem e morrem, mas o Aconcágua segue imponente.