Escritório da Shein em Barcelona: informações dos usuários por machine learning. (Kike Rincon/Europa Press/Getty Images)
Repórter
Publicado em 3 de julho de 2023 às 09h39.
A pergunta do título pode parecer pouco elucidativa para definir como a inteligência artificial afetará os guarda-roupas. Mas num horizonte não tão distante em que máquinas poderão talvez criar o que se entende por novidade na moda, com base nas experiências humanas digeridas por seus sistemas ao longo do tempo, o exercício de questionar o que se veste — e o que pode ser vendido — será imposto em algum momento.
É possível que a escolha entre a originalidade humana e a inteligência generativa, essa que tomou de assalto as redes com imagens, roupas imaginárias e arquétipos criados nos últimos meses, fará parte das decisões de executivos e, na ponta, dos consumidores.
Voltaremos ao dilema, mas, partindo do início, por ora, o desafio hoje está em tentar decifrar como essa tecnologia, que saiu das coxias das startups e big techs para ganhar a ribalta quase como um jogo de videogame disponível a qualquer um, poderá beneficiar o sistema de produção.
O relatório da consultoria McKinsey lançado neste mês estima que cerca de 70% do trabalho dos funcionários de uma empresa será, até 2045, dentro desse tipo de ferramenta. O mesmo levantamento afirma que esse também será o percentual dos trabalhos que poderão ser substituídos no futuro pela IA. Para além das discussões relativas à regulação do novo setor — que vão desde análises catastróficas sobre a obsolescência da humanidade até outras que, erroneamente, desdenham do potencial do mecanismo —, o benefício já posto em prática é a otimização do tempo, com base na automação dos processos envolvidos na criação das roupas.
A inteligência preditiva, fundamentada em dados colhidos por machine learning, é a que fez a chinesa Shein virar o titã que é hoje, só de olho nos hábitos que analisa nas contas dos consumidores nas redes sociais, e permitiu à brasileira Amaro reconhecer, com base em informações de compra, os rumos de suas coleções. Magalu, Renner e C&A já utilizam os processos para garantir assertividade nos lançamentos e gerar constância.
O que a preditiva não entrega é aquele ponto que torna um produto realmente inovador, pelo simples fato de operar com o que já existe. A generativa, nesse contexto, pode dar um passo mais longo ao oferecer para um diretor criativo outras opções embasadas no histórico de lançamentos de uma marca. Nesse ponto, chama a atenção outro relatório da McKinsey, do mês de março, que coloca nesse quesito o curioso porém de que tanto o estilista quanto seu time usariam a novidade gerada para alterar o esboço partindo de suas próprias impressões.
Olivia Merquior, uma das maiores especialistas no tema das novas tecnologias na moda, ressalva que marcas já se utilizam da novidade para criar desde os moodboards das coleções — ou seja, as inspirações — até uma simples estampa. Dentro do universo de milhares de padrões de xadrez, ela afirma, os criativos analisam opções geradas por IA para fazer suas escolhas, alterando, com base nesse molde, o que se encaixa melhor no que o time se propõe. “O desafio da tecnologia é que as máquinas ainda não são sofisticadas o suficiente para criar do zero e com tanto refino uma possível peça imaginada por alguém sem os dados gerados por humanos. Vai levar tempo até isso acontecer”, explica Merquior.
Ela compara a um processo de digestão. Se você come algo e seu estômago não digere bem, o resultado é automaticamente sentido pelo corpo. O mesmo acontece na máquina. Se o input não for certo, o que ela vai transmitir também não será, e o erro pode doer — e custar bem caro — no bolso da empresa. Do ponto de vista do sistema da moda, pessoas que se dedicam a pequenas tarefas, “como uma simples revisão de cor”, tenderiam a não ser tão necessárias no futuro, mas, ela diz, “o trabalho de criatividade não está ameaçado”.
Outro especialista no tema, o diretor de tecnologia e inovação do grupo de moda Soma, Alisson Calgaroto, afirma que, do ponto de vista organizacional, a inteligência artificial já otimiza a pauta de reuniões gerando os temas mais sensíveis sobre determinado assunto e que precisam ser discutidos.
Assim como Merquior, ele não vê a originalidade ameaçada. Tampouco acredita, como se ventila no exercício de futurologia, que vendedores de loja serão substituídos por máquinas. “Você gosta de ser atendido por um chatbot? É a mesma lógica. O contato humano não será substituído”, explica.
Nesse contexto, pouco se fala nessa discussão sobre como a experiência da pandemia de covid-19, quando a vida basicamente foi digitalizada a foice, é um exemplo factível de tanta automação disponível no dia a dia. Num recorte mercadológico da moda, aliás, não se concretizou a avaliação de que o e-commerce passaria o varejo físico em importância. Tanto é que, agora mesmo, os investimentos das grifes se concentram, mais uma vez, na experiência dentro do ambiente das araras.
Há motivos ainda maiores para crer em certos limites para o uso da IA na moda. A experiência que uma grife oferece, de Versace a Reserva, vai além do mero produto. Afinal, Calgaroto questiona, “o que faz uma pessoa comprar uma camiseta da Hering, e não a de outra marca? O que está agregado a ela”.
Portanto, faz sentido que se fale tanto no universo da costura sobre o fator humano envolvido na roupa, como o artesanato aplicado na confecção, ou nos investimentos vultosos em criar para as etiquetas espécies de comunidades. As sinapses geradas na satisfação de uma compra, no caso das empresas que vendem ideias vestíveis com base em identidade, passam invariavelmente pelo espectro da questão humana envolvida. O que possivelmente será ampliado, ou automatizado, é a experiência puramente comercial da compra, que beneficia varejistas de moda preocupados em seguir tendências, não em gerar a autenticidade intrínseca a uma grife.
Nesse processo de automação, um importante passo foi dado pelo Google neste ano, que ilustra tanto a potência da inteligência artificial quanto a verdade sobre a rapidez de sua implementação. Durou pelo menos uma década até o início, neste mês, dos testes da ferramenta Experiência Generativa de Busca, que, com a combinação de bilhões de dados sobre as pesquisas e compras efetuadas em sua plataforma, gera ao usuário respostas certeiras com o uso de filtros sobre caimento, modelo, cor e até combinações do que se procura.
Trata-se de algo ampliado em análise combinatória e com uma medida de refino exponencial se comparada ao que fez a varejista britânica Asos ao implementar recentemente em sua plataforma uma ferramenta que, a partir de uma foto adicionada pelo cliente no site, sugere as opções disponíveis para compra.
Os resultados gerados por ferramentas como o Midjourney, que cria imagens de avatares usando roupas específicas em ambientes inanimados, e o DALL-E, da empresa OpenAI, empenhada no mesmo produto imagético, parecem funcionar mais como possíveis protótipos para editoriais ou lookbooks do que como respostas sem custo para a imagem de moda, que depende das sutilezas da criatividade humana para compor sinfonias gráficas que só a combinação de stylists, maquiadores, modelos e fotógrafos ainda consegue imprimir. Nesse caso, artistas têm agora um campo vasto para explorar visões particulares sobre o assunto.
As equipes de estilo, por sua vez, se beneficiam de ferramentas de criação em 3D, como o CLO3D, e de espelhamento de ideias — humanas e originais, vale dizer — convertidas em sugestões de produtos acabados, a exemplo do Vue.ai, que otimizam processos mais lentos na jornada de criar uma coleção.
Por outro lado, já é motivo de preocupação o regramento sobre a propriedade intelectual das criações no futuro. De quem seria a autoria de algo gerado por uma máquina, ou quem pagaria pelos direitos de algo criado a partir de um dado, a roupa, gerada por alguém sem auxílio dessa máquina?
Pior, como garantir que imagens, fatos e, no caso, roupas são reais? Se a verossimilhança de uma foto do papa Francisco trajado com um look branco da Moncler, circulada em março nas redes, causou furdunço ao enganar olhos experientes, qual seria o efeito geopolítico de imagens e vídeos em uma realidade em que a deep fake seja ainda mais refinada e disponível à mão?
Não há respostas fáceis para um cenário que só agora se apresenta como factível, mas, da forma como se apresenta, impõe à moda a questão do início deste texto. Vamos querer consumir o fato ou o que é, em alguma medida, falso? Procurar saber a origem do que está impresso na etiqueta ou fechar os olhos para o método de produção intrincado? Talvez o início das respostas esteja naquilo que nos torna diferentes das máquinas e não ganhou tintas na comoção virtual: o livre-arbítrio, que ainda não nos foi tirado.