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O fenômeno da corrida chamado Paul Tergat

O queniano Paul Tergat já deteve os recordes mundiais dos 10000 metros, 21 km, 42 km, além de ser o maior vencedor da São Silvestre. E falou com a gente em São Paulo

Além de contar suas lembranças, o queniano Paul Tergat conta como se sentiu quando viu Vanderlei Cordeiro de Lima receber o abraço de um padre irlandês, na maratona em Atenas (Getty Images)
DR

Da Redação

Publicado em 8 de julho de 2011 às 13h44.

São Paulo - Quem estava assistindo perdeu o fôlego antes dos atletas. Ainda não inventaram adjetivo para definir o último quilômetro da prova de 10000 metros dos Jogos Olímpicos de Sydney (2000). Como num 100 metros rasos, a vitória só veio na esticada de peito.

Ele, que já havia sido recordista mundial da distância, pentacampeão mundial de cross-country e campeão e, recordista mundial de meia maratona (e conquistaria o bi em novembro de 2000), não conseguia livrar-se da sina da prata nos 10 000 metros. Aquela era a chance de dar o troco pelas derrotas em uma Olimpíada (Atlanta-96) e dois Mundiais (Atenas-97 e Sevilha-99). Mas, novamente, Haile Gebrselassie fez questão de mostrar como se constrói um império. A redenção veio com o recorde mundial da maratona, em 2003.

Além de contar suas lembranças dessas provas épicas, em entrevista exclusiva a RUNNER’S WORLD, Paul Tergat fala da infância pobre no Quênia, do pentacampeonato da São Silvestre e também descreve a sensação de quem viu, ao vivo e de perto, Vanderlei Cordeiro de Lima receber o afetuoso abraço de um padre irlandês, na maratona em Atenas.

Você é pentacampeão (1995, 96, 98, 99 e 2000) e o maior vencedor da São Silvestre, uma das corridas de rua mais importantes da América do Sul. Quais são suas lembranças dessa prova?

Uma das principais razões que me faziam voltar para a São Silvestre era a atmosfera da prova, o público incentivando, a mídia. A São Silvestre ajuda a difundir a cultura da corrida pelo Brasil e é uma prova de alto reconhecimento internacional [o recorde de Tergat na prova é de 43min12, em 1995].

Depois de 15 anos, você ainda é o recordista da prova. O que pensa disso?

Na verdade, acho isso muito triste. Eu achei que fosse ver a nova geração de corredores trabalhando duro para alcançar esse recorde. Eu quebrei um recorde que havia sido estabelecido por alguém antes de mim e não esperava que minha nova marca durasse tanto tempo. Mas, claro, ser o maior vencedor e o recordista da São Silvestre também me dá muita satisfação.


Quem será o próximo grande maratonista do mundo? Como você vê a nova geração?

É uma pena que tenhamos perdido Samuel Wanjiru [corredor queniano recordista da maratona olímpica que faleceu em maio deste ano, aos 24 anos]. E Haile Gebrselassie continua sendo muito forte.

Mas quem será, por exemplo, o próximo recordista mundial da maratona?

É difícil responder. Há muitos atletas vindo aí e está cada vez mais difícil alguém se manter no topo por muito tempo. O vencedor de Nova York do ano passado é um. No ano seguinte, será outro. Em Londres e Berlim acontece a mesma coisa. E isso é ótimo para o esporte.

Você era amigo de Samuel Wanjiru? Como ele era?

Ele era um corredor fantástico, muito talentoso. Foi o primeiro queniano a ganhar um ouro olímpico na maratona. Foi uma pena que o tenhamos perdido ainda tão novo. Era um corredor para seguir brilhando por mais uns dez anos.

Vamos falar sobre seu recorde mundial na Maratona de Berlim, em 2003. Naquele dia, você fez 2h04min55.

É, eu rompi uma barreira e abri caminho para novos corredores. As pessoas diziam que não era possível correr maratona em menos de 2h05 e eu fiz questão de mostrar que era possível.

Naquele dia, você correu a primeira metade da prova em 1h03min01 e a segunda metade em 1h01min54. É um belo split negativo. Essa é a melhor forma de se correr uma maratona?

Sim, é assim que deve ser. Um pouco mais conservador no começo e mais rápido no fim.

Samuel Wanjiru não usava essa tática (em seis maratonas completadas, ele venceu cinco e nunca fez um split negativo). Por que essa diferença?

Wanjiru era um atleta jovem e corria para dar seu máximo. Ele precisava liderar o pelotão. Eu era um corredor mais tático e preferia estar no meio do pelotão, sem liderar no começo, deixando para arrancar no fim. Fomos diferentes nesse aspecto, mas ele era um excelente corredor.

Você foi duas vezes vice-campeão mundial e olímpico nos 10000 metros. Como foram essas provas?

Em eventos como Olimpíadas e Mundiais, a prova de 10000 metros é muito tática. Todos correm para vencer e não para fazer um tempo determinado. Infelizmente, eu não consegui vencer. Mas tudo bem, eu fiz o melhor que eu pude.


Na Olimpíada de 2000, você perdeu os 10000 metros por muito pouco. Você já acordou sonhando que estava tentando acelerar ainda mais naquela última reta, para ficar com o ouro?

Não tenho arrependimentos. Eu fiz o melhor que eu pude. Não havia nada mais que eu pudesse fazer naquela situação.

Talvez aquela tenha sido a maior corrida de todos os tempos.

Sem dúvida! Acontece que os etíopes fizeram um forte jogo de equipe. Eles me encaixotaram na raia 1 e, aí, eu percebi que aquilo era um jogo. É muito difícil sair daquela situação.

Você teve que ir para a raia 3 para escapar dos etíopes.

Sim. E, depois disso, ainda tinha que voltar a fazer força para tornar a brigar pela prova. Eles não deveriam ter feito isso. Eles deveriam ter me deixado competir livremente com Haile, para vermos quem seria o vencedor. Mas, repito, eu fiz o melhor que eu podia.

Você e Haile eram adversários e os principais corredores daquela geração. Ele venceu os 10000 metros em dois Mundiais e em dois Jogos Olímpicos, mas você o venceu na Maratona de Londres de 2002 (Tergat foi segundo colocado e Haile, terceiro). Como era sua relação pessoal com ele?

O esporte deve servir para unir as pessoas, não criar inimigos. Os atletas podem ser de culturas diferentes, diferentes países, diferentes línguas, mas, quando se encontram, falam sobre esporte. É isso que eles amam.

Como era sua rotina de treinos para uma maratona?

Eu costumava fazer dois meses de treinamentos específicos. Eu treinava duas vezes por dia e rodava entre 210 e 240 km por semana, com dois treinos de pista e um treino longo. O treino longo, às vezes, era feito em trilhas em meio à floresta. E eu também costumava fazer musculação.

Como foi sua infância no Quênia?

Eu tive uma infância difícil, num vilarejo do Quênia. Isso fez com que somente aos 18 anos eu percebesse que tinha talento para a corrida [até então, Tergat era jogador de basquete].

Quando você era criança, sua família recebia auxílio da ONU. Hoje você é um dos embaixadores da ONU. Como é seu trabalho lá?

Basicamente, minha função é alertar as pessoas para a questão da fome e tentar levantar fundos para o programa mundial de alimentação. Ver crianças que vão dormir de barriga vazia é muito duro.


Sua carreira terminou em dezembro de 2011, em um acidente de automóveis. Como foi isso?

Isso é muito triste. Eu estava numa estrada do Quênia. Um motorista louco vinha muito rápido e não percebeu que o caminhão que estava na frente dele freou. Para escapar do caminhão, ele jogou o carro para a faixa do lado, que era por onde trafegava meu carro. Mas, por sorte e pela vontade de Deus, eu estou vivo e estou aqui.

Você machucou seu joelho no acidente?

Machuquei minha perna e não consigo correr mais.

Você estava na maratona olímpica de 2004, em Atenas, quando um padre irlandês atacou Vanderlei Cordeiro de Lima. Você se lembra desse episódio?

Sim, eu me lembro, porque eu estava achando que Vanderlei venceria a prova. Eu vinha um pouco atrás de Vanderlei e vi a cena. Aquele cara destruiu o Vanderlei, porque o jogou para fora do percurso, quebrou seu ritmo. Fora a tensão de não saber o que vai acontecer com sua vida naquele momento. É muito triste que um atleta não tenha condições de segurança em uma prova olímpica. Não era uma corrida qualquer. Era uma maratona olímpica.

Você se lembra de Ronaldo da Costa?

Sim, era um ótimo corredor. Eu não o vi participar de competições internacionais por muito tempo. Talvez ele competisse mais no Brasil. Mas foi um recordista mundial e contribuiu para a evolução da maratona.

Qual é o limite humano? É possível correr a maratona em menos de 2h?

É muito difícil. Para a geração atual, eu diria que é impossível. Talvez para a próxima geração. Mas vai levar tempo.

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São Paulo - Quem estava assistindo perdeu o fôlego antes dos atletas. Ainda não inventaram adjetivo para definir o último quilômetro da prova de 10000 metros dos Jogos Olímpicos de Sydney (2000). Como num 100 metros rasos, a vitória só veio na esticada de peito.

Ele, que já havia sido recordista mundial da distância, pentacampeão mundial de cross-country e campeão e, recordista mundial de meia maratona (e conquistaria o bi em novembro de 2000), não conseguia livrar-se da sina da prata nos 10 000 metros. Aquela era a chance de dar o troco pelas derrotas em uma Olimpíada (Atlanta-96) e dois Mundiais (Atenas-97 e Sevilha-99). Mas, novamente, Haile Gebrselassie fez questão de mostrar como se constrói um império. A redenção veio com o recorde mundial da maratona, em 2003.

Além de contar suas lembranças dessas provas épicas, em entrevista exclusiva a RUNNER’S WORLD, Paul Tergat fala da infância pobre no Quênia, do pentacampeonato da São Silvestre e também descreve a sensação de quem viu, ao vivo e de perto, Vanderlei Cordeiro de Lima receber o afetuoso abraço de um padre irlandês, na maratona em Atenas.

Você é pentacampeão (1995, 96, 98, 99 e 2000) e o maior vencedor da São Silvestre, uma das corridas de rua mais importantes da América do Sul. Quais são suas lembranças dessa prova?

Uma das principais razões que me faziam voltar para a São Silvestre era a atmosfera da prova, o público incentivando, a mídia. A São Silvestre ajuda a difundir a cultura da corrida pelo Brasil e é uma prova de alto reconhecimento internacional [o recorde de Tergat na prova é de 43min12, em 1995].

Depois de 15 anos, você ainda é o recordista da prova. O que pensa disso?

Na verdade, acho isso muito triste. Eu achei que fosse ver a nova geração de corredores trabalhando duro para alcançar esse recorde. Eu quebrei um recorde que havia sido estabelecido por alguém antes de mim e não esperava que minha nova marca durasse tanto tempo. Mas, claro, ser o maior vencedor e o recordista da São Silvestre também me dá muita satisfação.


Quem será o próximo grande maratonista do mundo? Como você vê a nova geração?

É uma pena que tenhamos perdido Samuel Wanjiru [corredor queniano recordista da maratona olímpica que faleceu em maio deste ano, aos 24 anos]. E Haile Gebrselassie continua sendo muito forte.

Mas quem será, por exemplo, o próximo recordista mundial da maratona?

É difícil responder. Há muitos atletas vindo aí e está cada vez mais difícil alguém se manter no topo por muito tempo. O vencedor de Nova York do ano passado é um. No ano seguinte, será outro. Em Londres e Berlim acontece a mesma coisa. E isso é ótimo para o esporte.

Você era amigo de Samuel Wanjiru? Como ele era?

Ele era um corredor fantástico, muito talentoso. Foi o primeiro queniano a ganhar um ouro olímpico na maratona. Foi uma pena que o tenhamos perdido ainda tão novo. Era um corredor para seguir brilhando por mais uns dez anos.

Vamos falar sobre seu recorde mundial na Maratona de Berlim, em 2003. Naquele dia, você fez 2h04min55.

É, eu rompi uma barreira e abri caminho para novos corredores. As pessoas diziam que não era possível correr maratona em menos de 2h05 e eu fiz questão de mostrar que era possível.

Naquele dia, você correu a primeira metade da prova em 1h03min01 e a segunda metade em 1h01min54. É um belo split negativo. Essa é a melhor forma de se correr uma maratona?

Sim, é assim que deve ser. Um pouco mais conservador no começo e mais rápido no fim.

Samuel Wanjiru não usava essa tática (em seis maratonas completadas, ele venceu cinco e nunca fez um split negativo). Por que essa diferença?

Wanjiru era um atleta jovem e corria para dar seu máximo. Ele precisava liderar o pelotão. Eu era um corredor mais tático e preferia estar no meio do pelotão, sem liderar no começo, deixando para arrancar no fim. Fomos diferentes nesse aspecto, mas ele era um excelente corredor.

Você foi duas vezes vice-campeão mundial e olímpico nos 10000 metros. Como foram essas provas?

Em eventos como Olimpíadas e Mundiais, a prova de 10000 metros é muito tática. Todos correm para vencer e não para fazer um tempo determinado. Infelizmente, eu não consegui vencer. Mas tudo bem, eu fiz o melhor que eu pude.


Na Olimpíada de 2000, você perdeu os 10000 metros por muito pouco. Você já acordou sonhando que estava tentando acelerar ainda mais naquela última reta, para ficar com o ouro?

Não tenho arrependimentos. Eu fiz o melhor que eu pude. Não havia nada mais que eu pudesse fazer naquela situação.

Talvez aquela tenha sido a maior corrida de todos os tempos.

Sem dúvida! Acontece que os etíopes fizeram um forte jogo de equipe. Eles me encaixotaram na raia 1 e, aí, eu percebi que aquilo era um jogo. É muito difícil sair daquela situação.

Você teve que ir para a raia 3 para escapar dos etíopes.

Sim. E, depois disso, ainda tinha que voltar a fazer força para tornar a brigar pela prova. Eles não deveriam ter feito isso. Eles deveriam ter me deixado competir livremente com Haile, para vermos quem seria o vencedor. Mas, repito, eu fiz o melhor que eu podia.

Você e Haile eram adversários e os principais corredores daquela geração. Ele venceu os 10000 metros em dois Mundiais e em dois Jogos Olímpicos, mas você o venceu na Maratona de Londres de 2002 (Tergat foi segundo colocado e Haile, terceiro). Como era sua relação pessoal com ele?

O esporte deve servir para unir as pessoas, não criar inimigos. Os atletas podem ser de culturas diferentes, diferentes países, diferentes línguas, mas, quando se encontram, falam sobre esporte. É isso que eles amam.

Como era sua rotina de treinos para uma maratona?

Eu costumava fazer dois meses de treinamentos específicos. Eu treinava duas vezes por dia e rodava entre 210 e 240 km por semana, com dois treinos de pista e um treino longo. O treino longo, às vezes, era feito em trilhas em meio à floresta. E eu também costumava fazer musculação.

Como foi sua infância no Quênia?

Eu tive uma infância difícil, num vilarejo do Quênia. Isso fez com que somente aos 18 anos eu percebesse que tinha talento para a corrida [até então, Tergat era jogador de basquete].

Quando você era criança, sua família recebia auxílio da ONU. Hoje você é um dos embaixadores da ONU. Como é seu trabalho lá?

Basicamente, minha função é alertar as pessoas para a questão da fome e tentar levantar fundos para o programa mundial de alimentação. Ver crianças que vão dormir de barriga vazia é muito duro.


Sua carreira terminou em dezembro de 2011, em um acidente de automóveis. Como foi isso?

Isso é muito triste. Eu estava numa estrada do Quênia. Um motorista louco vinha muito rápido e não percebeu que o caminhão que estava na frente dele freou. Para escapar do caminhão, ele jogou o carro para a faixa do lado, que era por onde trafegava meu carro. Mas, por sorte e pela vontade de Deus, eu estou vivo e estou aqui.

Você machucou seu joelho no acidente?

Machuquei minha perna e não consigo correr mais.

Você estava na maratona olímpica de 2004, em Atenas, quando um padre irlandês atacou Vanderlei Cordeiro de Lima. Você se lembra desse episódio?

Sim, eu me lembro, porque eu estava achando que Vanderlei venceria a prova. Eu vinha um pouco atrás de Vanderlei e vi a cena. Aquele cara destruiu o Vanderlei, porque o jogou para fora do percurso, quebrou seu ritmo. Fora a tensão de não saber o que vai acontecer com sua vida naquele momento. É muito triste que um atleta não tenha condições de segurança em uma prova olímpica. Não era uma corrida qualquer. Era uma maratona olímpica.

Você se lembra de Ronaldo da Costa?

Sim, era um ótimo corredor. Eu não o vi participar de competições internacionais por muito tempo. Talvez ele competisse mais no Brasil. Mas foi um recordista mundial e contribuiu para a evolução da maratona.

Qual é o limite humano? É possível correr a maratona em menos de 2h?

É muito difícil. Para a geração atual, eu diria que é impossível. Talvez para a próxima geração. Mas vai levar tempo.

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