Lloyd Kahn, em Bolinas, Califórnia (Aubrey Trinnaman/The New York Times)
Guilherme Dearo
Publicado em 29 de março de 2020 às 07h00.
Última atualização em 29 de março de 2020 às 07h00.
Bolinas, Califórnia – A autossuficiência é como a perfeição, disse Lloyd Kahn, o guru da arquitetura guerrilheira e mentor de todas as coisas DIY, sigla em inglês para "faça você mesmo": "Você nunca chega lá, mas segue em direção a ela o tempo todo."
Em uma manhã de fevereiro, as galinhas tinham sido alimentadas e os pães assados esfriavam em uma travessa. As mudas tinham sido regadas e a alface do almoço foi colhida. E uma panela de corante, feito de coreópsis, estava borbulhando no fogão da cozinha externa, um dos muitos prédios feitos a mão neste conjunto que é casa e laboratório para Kahn e sua esposa, Lesley Creed.
Antes da moda das cabanas e das casas pequenas, Kahn, agora com 84 anos, era o defensor incansável de seus antecedentes DIY.
Nos últimos 50 anos, ele coletou exemplos de habitações construídas pelo proprietário sem um arquiteto – casas na árvore, tendas, yurts, estruturas de fardos de palha e muitas outras – em livros como "Tiny Homes on the Move", "Builders of the Pacific Coast" e "Home Work". Todas elas foram montadas por Kahn na sede de sua empresa, a Shelter Publications, que também está alojada na propriedade, em uma oficina skylit. (Trata-se de uma construção de madeira reciclada de antigos quartéis da Marinha, com janelas coletadas de galinheiros.)
Kahn já foi o editor de abrigos do "Whole Earth Catalog", a bíblia hippie de sobrevivência elogiada por Steve Jobs como o Google de sua época, mas foi sua obra de 1973, "Shelter", que fez sua fama.
Poética e prática, "Shelter" era uma turnê mundial de habitats, além de uma história social da habitação hippie, que propunha uma nova ordem mundial. ("Eu me revolto contra qualquer coisa, tudo e até mesmo isso", afirmou certo dr. Tinkerpaw, então um ranzinza de 76 anos vivendo em um castelo feito de objetos encontrados na praia, na página 55.)
Mais prosaicamente, "Shelter" dava aulas sobre construção de galpões e sistemas sépticos. Até hoje, vendeu quase 300 mil cópias.
Esse manual para os libertários utópicos dos anos 1960 e 1970 continuou a inspirar novas gerações que buscam a volta às raízes, juntamente com os adeptos do anticonsumismo do movimento de "descrescimento" da Europa. Hoje, as lições práticas e filosofias caseiras de "Shelter" são mais urgentes do que nostálgicas, atraindo peregrinos para a residência de Kahn.
Um deles é Zach Klein, de 37 anos, um dos fundadores do Vimeo e o homem que cunhou a frase "cabin porn", que se refere à atração por pequenas cabanas, que nasceu no Tumblr, tornou-se uma hashtag e, finalmente, acabou em um livro, lançado em 2015. "Ele é a personificação viva desse estilo de vida. A maioria das pessoas que fazem livros glorificando o estilo parece falsa quando comparada a ele", disse Klein sobre Kahn.
Com seu cabelo branco encaracolado, bigode branco espesso e traços alegres, Kahn tem um ar convidativo. "Ei, Lloyd", ele ouve um estranho chamando-o em algum local improvável, como as ruas de Edimburgo, na Escócia. Quando Kahn começou a andar de skate aos 65 anos, isso o tornou mais fascinante, embora um punho quebrado há dois anos o tenha feito parar.
Recentemente, o mundo da arte veio procurá-lo. Lukas Feireiss, artista e curador alemão, e Leopold Banchini, arquiteto suíço, projetaram uma exposição inteira em torno da obra inicial de Kahn para a Bienal de Arquitetura em Veneza, na Itália (evento que seria em maio, mas que foi adiado para o fim de agosto). O título do programa é "Como Viveremos Juntos?", e essa pergunta levou os colaboradores a examinar, como escreveram em um e-mail, os ideais e práticas encontrados em "Shelter". Independentemente da pandemia atual, eles o trarão para a abertura. (Feireiss acrescentou: "Então, como vamos viver juntos? Parece mais claro do que nunca: com medo e ansiedade!")
Em Bolinas, na Califórnia, suculentas brilhavam no telhado do galinheiro.
Erguendo-se da casa principal, havia uma torre hexagonal, vestígio de um experimento inicial da vida na cúpula geodésica – "loucura em círculo", como disse Kahn –, da qual ele foi um dos primeiros entusiastas e, mais tarde, detrator apaixonado. Em 1971, a revista "Life" o apontou como um exemplo dessa contracultura específica.
Segundo uma citação de Kahn, "em uma casa quadrada comum, a vitalidade se senta e morre nos cantos".
Esse foi o ano em que Creed e Kahn se conheceram e se apaixonaram, contou Kahn, embora ambos estivessem com outras pessoas. Mas, depois de um inverno extraordinariamente úmido, todos os casais da área se separaram, e Kahn, então com 39 anos, e Creed, com 27, ficaram juntos.
A matéria-prima que usavam não vinha de uma madeireira ou de uma loja de construção. Nos anos 70, segundo Kahn, era possível encontrar toras de sequoia boiando no mar, vindas de operações de exploração madeireira no norte. Ele as pegava em um caiaque na maré alta e as arrastava para a praia. Depois de levá-las para casa, dividia a madeira em pedaços para o telhado. Portas e janelas vinham de lixeiras em San Francisco, e o piso vinha de um ginásio da escola local.
No início, Kahn e Creed esperavam ganhar a vida como fazendeiros. Mas a economia e os apetites da época não se encaixavam. Eles ainda não tinham hipoteca nem filhos (seus filhos, Evan e Will, agora têm 38 e 40 anos). Por alguns anos, disseram, eles cultivaram grande parte de sua própria comida para sua subsistência com US$ 300 por mês.
Então, Kahn leu uma resenha de um livro sobre alongamento na "CoEvolution Quarterly", que se originou do "Whole Earth Catalog", e o encomendou. Quando curou seus problemas nas costas, colaborou com o autor, Bob Anderson, que estava imprimindo o livro em sua garagem, para expandir seus exercícios para garçonetes, carpinteiros e caminhoneiros, contou Kahn. Eles venderam 50 mil cópias na primeira rodada.
"Stretching", com mais de 3,5 milhões de cópias vendidas, tem sido o combustível econômico para as atividades de Kahn desde então.
Ele espera que seu novo livro, "The Half-Acre Homestead: 46 Years of Building and Gardening", lançado este mês, tenha um apelo mais amplo. Uma espécie de livro de memórias desse idílio construído com muito suor, é também uma carta de amor a Creed, artesã e jardineira hábil cuja gloriosa obra é vividamente retratada.
Há muitas dicas para os adeptos do "faça você mesmo", desde estocar a despensa até lavar a louça, captar água de chuva e garantir o isolamento térmico. Há também pensamentos sobre animais selvagens atropelados na estrada (uma situação em que só temos a ganhar, escreveu Kahn, pela carne orgânica e pela bela pele, caso você viva em um estado que permita que você as utilize).
O estilo de vida não é luxuoso, mas ainda está fora de alcance para muitos, afirmou Kahn: "Agora, você não conseguiria fazer o que fizemos. A terra custou US$ 6.500 em 1971. A licença de construção era de US$ 200." Mas há lições a aprender na construção de sua casa.
Nos últimos dois anos, os painéis solares forneceram a eletricidade do casal. Um fogão a lenha aquece a sala e a cozinha, mas o resto da casa não é aquecido.
Foster Huntington, de 32 anos, foi designer da Ralph Lauren antes de renunciar à vida na cidade para construir uma casa na árvore e um parque de skate no estado de Washington, entre outras aventuras.
A vida de Huntington, exibida no Instagram, parece mais difícil que a de outros vivendo no mesmo estilo, e você verá Kahn entre seus posts. Os dois se tornaram amigos e aliados, ambos em busca de fabricantes diferentões para colocar em seus livros.
"'Shelter' teve um enorme impacto em mim, e eu não estaria fazendo o que faço se não fosse por Lloyd", declarou Huntington. Algumas semanas atrás, quando não conseguiu salvar um veado atropelado por um carro perto de sua propriedade, a segunda pessoa para a qual ligou depois do veterinário foi Kahn. "Espero que tenha pegado o fígado. É realmente fabuloso com vinho tinto", disse ele, sempre prático.