Filme sobre Leonilson vence festival É Tudo Verdade
O festival iniciou pela exibição de "Últimas Conversas", filme póstumo de Eduardo Coutinho, morto ano passado em circunstâncias trágicas
Da Redação
Publicado em 20 de abril de 2015 às 10h07.
São Paulo - "A Paixão de JL", de Carlos Nader, sobre o artista plástico José Leonilson, foi o vencedor do 20º É Tudo Verdade. Nader, que havia recebido o principal troféu ano passado por Homem Comum, torna-se o primeiro bicampeão do principal festival brasileiro dedicado aos documentários. Além do troféu principal, "A Paixão de JL" levou o prêmio da crítica, promovido pela Associação Brasileira de Críticos de Cinema (Abraccine). Tal acúmulo não é tarefa das mais fáceis, ainda mais quando se leva em conta o alto nível de disputa do festival comandado criado e comandado pelo jornalista Amir Labaki.
Na parte internacional, venceu "A França é nossa Pátria", de Rithy Pahn, um estudo sobre o colonialismo francês na Indochina. O melhor curta brasileiro, para o júri oficial foi "Cordilheira de Amora II", de Jamille Fortunato. Neste ponto, discordante da crítica, que preferiu "Sem Título #2: La Mer Larme", de Carlos Adriano.
As premiações são indiscutíveis, dada a qualidade dos escolhidos. É pena, no entanto, que obra tão intensa como "Orestes", de Rodrigo Siqueira, tenha ficado de fora. Trata-se de rara imersão na tragédia da violência brasileira, tanto a atual como a da época da ditadura militar, apoiada no texto clássico da Orestíade, de Ésquilo.
Num momento em que vingança e revanche tornam-se palavras de ordem na sociedade brasileira, a lembrança desse marco civilizatório da justiça seria bastante oportuna. Mas o filme tem toda uma trajetória diante de si. Um grande festival também pode ser lembrado pelos filmes que não pôde (ou não quis) premiar.
Em todo caso, tanto a qualidade quanto o impacto emocional provocados por "A Paixão de JL" tornam sua escolha bastante compreensível. Nader realiza um trabalho sensível, delicado e profundo sobre um legado de Leonilson - o registro, em gravador, de um diário íntimo iniciado em 1990. Leonilson narra o cotidiano do País (na época envolto no turbilhão da era Collor), traz reflexões sobre seu trabalho, a família e sua vida amorosa.
Na parte final, tendo-se descoberto soropositivo, fala da dolorosa evolução da doença. A voz é entremeada, na tela, por imagens heteróclitas, de fatos do cotidiano ou de suas obras. Voz e imagens mesclam-se, levam o espectador ao rico e sofrido universo do artista. Um belíssimo filme.
O tom político adensa-se em "A França é Nossa Pátria", do franco-cambojano Rithy Pahn. O título poderia evocar uma louvação ao país dos direitos humanos, de Voltaire e Rousseau, da Marselhesa e da tríade Liberté, Egalité, Fraternité. Mas não. Irônico desde o princípio, Pahn traz de volta o nada glorioso passado colonial da nação francesa. Usa material de época, filmes mudos, "comentados" por cartazes que evocam o discurso colonialista. "Estamos lhes trazendo a civilização", diz o cartaz, enquanto as imagens mostram a construção de escolas, igrejas e ferrovias, utilizando a mão de obra local.
A arrogância e o senso de superioridade do colonizador são patentes. O outro, o colonizado, seus sentimentos, sua cultura, não contam para nada. Na parte final, com o início das guerras anticoloniais, o tom muda. Não há uma imagem forjada. Não há um discurso que não faça parte da mentalidade do colonizador. O contraste entre imagens e palavras desvela a brutalidade do colonialismo. Em especial quando ele é promovido em nome da "civilização" e dos "valores ocidentais".
Carlos Nader e Rithy Pahn formam um par de vencedores que, por si só, já justificaria o festival. Mas houve muito mais. Além do não premiado "Orestes", outros filmes, em competição ou fora dela, passaram pelas telas do É Tudo Verdade e deixaram ótima impressão. Como "O que Houve, Srta. Simone?", de Liz Garbus, tocante evocação da rica e dilacerada trajetória da cantora Nina Simone. Ou "Seguindo Nazarin", de Javier Espada, retorno às locações do clássico de Luis Buñuel, de 1959. Ou o urgente "Cidadãoquatro", de Laura Poitras, vencedor do Oscar. Seu personagem, Edward Snowden, denunciou o esquema de espionagem mundial da CIA e da NSA (Agência Nacional de Segurança) dos EUA.
Não se pode esquecer que o É Tudo Verdade iniciou pela exibição de "Últimas Conversas", filme póstumo de Eduardo Coutinho, morto ano passado em circunstâncias trágicas. Nesse testamento involuntário, o diretor de "Cabra Marcado pra Morrer" e "Edifício Máster" conversa com adolescentes e aspira à espontaneidade da infância. Muito ainda há de se falar e se escrever sobre essa obra-legado de Coutinho, cineasta divisor de águas no documentário brasileiro.
O É Tudo Verdade assinalou ainda os 80 anos do documentarista paraibano-brasiliense Vladimir Carvalho, promovendo retrospectiva dos seus filmes, debate sobre sua obra e lançamento de seu livro Jornal de Cinema.
Para comemorar o centenário de Orson Welles, o É Tudo Verdade, que tira seu nome da obra inacabada de Welles no Brasil, trouxe o especialista Jonathan Rosenbaum, autor do fundamental ensaio "Discovering Orson Welles". Na Cinemateca Brasileira, Rosembaum deu uma palestra inesquecível sobre o autor de "Cidadão Kane".
A parte reflexiva do festival foi muito interessante, com presença de estudiosos como Ally Derks, Thom Powers, Carlos Alberto Mattos e Fernão Pessoa Ramos. Fernão, autor de "Mas Afinal, O que É Mesmo um Documentário?", tocou em ponto importante: a anarquia conceitual que tomou conta da discussão com a ideia de que a fronteira entre documentário e ficção estava abolida.
As qualidades do É Tudo Verdade, tanto na escolha dos filmes quanto na programação da sua parte reflexiva, podem ser resumidas numa única palavra: curadoria. Enquanto outros festivais mudam de cara a cada ano, indecisos entre formatos e ênfases, este mantém-se firme em suas opções e linha curatorial. É avis rara em território nacional. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.
PREMIADOS
COMPETIÇÃO BRASILEIRA
Melhor Documentário Brasileiro de Longa ou Média-metragem - "A Paixão de JL", de Carlos Nader
Melhor Documentário Curta e Prêmio Mistika- "Cordilheira de Amora II", de Jamille Fortunato
COMPETIÇÃO INTERNACIONAL
Melhor Documentário Longa ou Média-metragem - "A França é Nossa Pátria", de Rithy Pahn
Melhor Documentário Curta- - "Supercondomínio", de Teresa Czepiec
Menção Honrosa para Documentário Longa ou Média-metragem - "Hora do Chá", de Maite Alberdi
Menção Honrosa para Documentário Curta - "Urso", de Pascal Flörks
São Paulo - "A Paixão de JL", de Carlos Nader, sobre o artista plástico José Leonilson, foi o vencedor do 20º É Tudo Verdade. Nader, que havia recebido o principal troféu ano passado por Homem Comum, torna-se o primeiro bicampeão do principal festival brasileiro dedicado aos documentários. Além do troféu principal, "A Paixão de JL" levou o prêmio da crítica, promovido pela Associação Brasileira de Críticos de Cinema (Abraccine). Tal acúmulo não é tarefa das mais fáceis, ainda mais quando se leva em conta o alto nível de disputa do festival comandado criado e comandado pelo jornalista Amir Labaki.
Na parte internacional, venceu "A França é nossa Pátria", de Rithy Pahn, um estudo sobre o colonialismo francês na Indochina. O melhor curta brasileiro, para o júri oficial foi "Cordilheira de Amora II", de Jamille Fortunato. Neste ponto, discordante da crítica, que preferiu "Sem Título #2: La Mer Larme", de Carlos Adriano.
As premiações são indiscutíveis, dada a qualidade dos escolhidos. É pena, no entanto, que obra tão intensa como "Orestes", de Rodrigo Siqueira, tenha ficado de fora. Trata-se de rara imersão na tragédia da violência brasileira, tanto a atual como a da época da ditadura militar, apoiada no texto clássico da Orestíade, de Ésquilo.
Num momento em que vingança e revanche tornam-se palavras de ordem na sociedade brasileira, a lembrança desse marco civilizatório da justiça seria bastante oportuna. Mas o filme tem toda uma trajetória diante de si. Um grande festival também pode ser lembrado pelos filmes que não pôde (ou não quis) premiar.
Em todo caso, tanto a qualidade quanto o impacto emocional provocados por "A Paixão de JL" tornam sua escolha bastante compreensível. Nader realiza um trabalho sensível, delicado e profundo sobre um legado de Leonilson - o registro, em gravador, de um diário íntimo iniciado em 1990. Leonilson narra o cotidiano do País (na época envolto no turbilhão da era Collor), traz reflexões sobre seu trabalho, a família e sua vida amorosa.
Na parte final, tendo-se descoberto soropositivo, fala da dolorosa evolução da doença. A voz é entremeada, na tela, por imagens heteróclitas, de fatos do cotidiano ou de suas obras. Voz e imagens mesclam-se, levam o espectador ao rico e sofrido universo do artista. Um belíssimo filme.
O tom político adensa-se em "A França é Nossa Pátria", do franco-cambojano Rithy Pahn. O título poderia evocar uma louvação ao país dos direitos humanos, de Voltaire e Rousseau, da Marselhesa e da tríade Liberté, Egalité, Fraternité. Mas não. Irônico desde o princípio, Pahn traz de volta o nada glorioso passado colonial da nação francesa. Usa material de época, filmes mudos, "comentados" por cartazes que evocam o discurso colonialista. "Estamos lhes trazendo a civilização", diz o cartaz, enquanto as imagens mostram a construção de escolas, igrejas e ferrovias, utilizando a mão de obra local.
A arrogância e o senso de superioridade do colonizador são patentes. O outro, o colonizado, seus sentimentos, sua cultura, não contam para nada. Na parte final, com o início das guerras anticoloniais, o tom muda. Não há uma imagem forjada. Não há um discurso que não faça parte da mentalidade do colonizador. O contraste entre imagens e palavras desvela a brutalidade do colonialismo. Em especial quando ele é promovido em nome da "civilização" e dos "valores ocidentais".
Carlos Nader e Rithy Pahn formam um par de vencedores que, por si só, já justificaria o festival. Mas houve muito mais. Além do não premiado "Orestes", outros filmes, em competição ou fora dela, passaram pelas telas do É Tudo Verdade e deixaram ótima impressão. Como "O que Houve, Srta. Simone?", de Liz Garbus, tocante evocação da rica e dilacerada trajetória da cantora Nina Simone. Ou "Seguindo Nazarin", de Javier Espada, retorno às locações do clássico de Luis Buñuel, de 1959. Ou o urgente "Cidadãoquatro", de Laura Poitras, vencedor do Oscar. Seu personagem, Edward Snowden, denunciou o esquema de espionagem mundial da CIA e da NSA (Agência Nacional de Segurança) dos EUA.
Não se pode esquecer que o É Tudo Verdade iniciou pela exibição de "Últimas Conversas", filme póstumo de Eduardo Coutinho, morto ano passado em circunstâncias trágicas. Nesse testamento involuntário, o diretor de "Cabra Marcado pra Morrer" e "Edifício Máster" conversa com adolescentes e aspira à espontaneidade da infância. Muito ainda há de se falar e se escrever sobre essa obra-legado de Coutinho, cineasta divisor de águas no documentário brasileiro.
O É Tudo Verdade assinalou ainda os 80 anos do documentarista paraibano-brasiliense Vladimir Carvalho, promovendo retrospectiva dos seus filmes, debate sobre sua obra e lançamento de seu livro Jornal de Cinema.
Para comemorar o centenário de Orson Welles, o É Tudo Verdade, que tira seu nome da obra inacabada de Welles no Brasil, trouxe o especialista Jonathan Rosenbaum, autor do fundamental ensaio "Discovering Orson Welles". Na Cinemateca Brasileira, Rosembaum deu uma palestra inesquecível sobre o autor de "Cidadão Kane".
A parte reflexiva do festival foi muito interessante, com presença de estudiosos como Ally Derks, Thom Powers, Carlos Alberto Mattos e Fernão Pessoa Ramos. Fernão, autor de "Mas Afinal, O que É Mesmo um Documentário?", tocou em ponto importante: a anarquia conceitual que tomou conta da discussão com a ideia de que a fronteira entre documentário e ficção estava abolida.
As qualidades do É Tudo Verdade, tanto na escolha dos filmes quanto na programação da sua parte reflexiva, podem ser resumidas numa única palavra: curadoria. Enquanto outros festivais mudam de cara a cada ano, indecisos entre formatos e ênfases, este mantém-se firme em suas opções e linha curatorial. É avis rara em território nacional. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.
PREMIADOS
COMPETIÇÃO BRASILEIRA
Melhor Documentário Brasileiro de Longa ou Média-metragem - "A Paixão de JL", de Carlos Nader
Melhor Documentário Curta e Prêmio Mistika- "Cordilheira de Amora II", de Jamille Fortunato
COMPETIÇÃO INTERNACIONAL
Melhor Documentário Longa ou Média-metragem - "A França é Nossa Pátria", de Rithy Pahn
Melhor Documentário Curta- - "Supercondomínio", de Teresa Czepiec
Menção Honrosa para Documentário Longa ou Média-metragem - "Hora do Chá", de Maite Alberdi
Menção Honrosa para Documentário Curta - "Urso", de Pascal Flörks