Feminismo no mundo real?
Em livro, a autora Jessica Valenti abandona o feminismo militante e parte para uma narrativa de momentos de sua vida
Da Redação
Publicado em 14 de abril de 2018 às 10h46.
Última atualização em 14 de abril de 2018 às 13h16.
Autora: Jessica Valenti
Editora: Cultrix
232 páginas
Preço: R$ 31,40
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A emergência do feminismo como um movimento dominante da cultura e da mídia brasileiras nos coloca novos debates e agendas que antes passavam batidas. O problema social do assédio verbal e físico nas ruas e no transporte público, a dificuldade de mulheres de serem levadas à sério no mundo profissional e tantas outras questões que, em meio a oposições e exageros, são discutidas. Ao mesmo tempo, como qualquer movimento, também serve de plataforma para interesses políticos, oportunismos e para pautas que, longe de corrigir injustiças passadas, querem impor injustiças novas.
Movimento muitas vezes marcado pelo caráter beligerante e pela falta de humor, o feminismo no Brasil carece de vozes literárias, abertas à experiência e ao riso. “Objeto Sexual”, escrito originalmente pela escritora e blogueira feminista americana Jessica Valenti em 2016 e recém-publicado no Brasil, nos mostra como fica o feminismo quando não parte só de juízos éticos e políticos universais, e nem de citações acadêmicas, mas do corpo a corpo com a experiência.
Primeiro, a parte boa: Valenti escreve com fluidez, estilo e humor. É capaz de expor nas páginas do livro um pouco da complexidade da vida real. Ela é muitas vezes vítima de injustiça ou abuso alheio, mas ela própria também se coloca em situações evitáveis, e sabe olhar para isso com algum senso crítico.
Pelo livro, sua vida é marcada por três fases: antes da universidade, quando ela recebe os apelos sexuais de um mundo adulto muito antes de estar preparada para ele; na universidade e no início de sua vida adulta, quando vive uma vida bastante desregrada de sexo, drogas e badalação em lugares descolados de Nova York (o leitor fica com a impressão constante de que ela está sempre querendo ostentar sua vida social na crista da onda, indo a bares clandestinos e “rooftops”); a maternidade, depois do nascimento de sua filha Layla, período em que se sentiu sozinha e aprisionada em casa.
Muitos aspectos do que é narrado no livro são problemáticos para qualquer indivíduo minimamente razoável, feminista ou não. Desde criança a autora sofria assédio na rua, tendo em uma ocasião até sido vítima de uma ejaculação de um pervertido no metrô. Também cabe se perguntar se a divisão social do cuidado com os filhos não poderia ser feita de maneira mais equitativa, embora saibamos que, na prática, em muitos casais não vigore mais a divisão tradicional.
Apesar disso, a vida descrita por Valenti simplesmente não corresponde à sua carta de intenções no início da obra: a de que a vida da mulher na sociedade contemporânea é definida principalmente por seu papel de vítima. Valenti é vítima em diversas instâncias individuais: por exemplo, quando alguém a assedia no transporte. Mas por que esse evento determina sua identidade? Há nela uma tendência – talvez um desejo – de ressaltar como mais fundamentais os casos em que ela sofreu. Uma tendência, ademais, admitida por ela como sendo parte de sua psicologia desde a infância.
Pelo que Valenti descreve, se ela sofreu em diversas ocasiões, também fez sofrer em outras. Poucas páginas depois de admitir que não teve nem um namorado sequer que ela não traiu, ela relata como grande pecado – e sinal de uma sociedade machista – os avanços de um amigo casado que desejava um caso com ela. Ela menciona que em certo período da vida ela utlizava sua sexualidade de forma muito ousada. Fica indignada quando um jornalista a acusa de valorizar o decote numa foto com o ex-presidente Clinton. Ela não é culpada de ter peitos. Mas jamais responde à acusação: além de tê-los, ela também os ressaltou propositalmente? Mesmo que o tenha feito, isso deve necessariamente ser condenado? Seria uma discussão interessante, mas que ela não faz. As memórias sofrem alguma limitação ideológica.
Outras figuras, como o pai dela — que sempre a defendeu e a apoiou, embora também a cobrasse de forma muito exigente —, não levam a uma reflexão mais ampla: será que há traços na masculinidade tradicional que são positivos? E seu marido feminista e pai de sua filha é basicamente uma incógnita, recebendo muito menos espaço do que namorados e casos dos tempos de faculdade.
Dificilmente essa leitura mudará a vida de alguém. Sai-se dela, inclusive, sem muita noção de como são os artigos de Valenti na mídia. O feminismo militante toma o banco do passageiro para a narrativa de momentos da vida da autora, sendo conclamado apenas para fazer comentários simplistas e pouco convincentes sobre a realidade complexa sendo narrada com competência, estilo e humor. Assim, sai-se com uma impressão de alguém bem menos antipática e radical do que o estereótipo da feminista profissional.
A discussão do feminismo seguirá forte no Brasil e no mundo. Se conseguir integrar melhor imperativos universais às demandas, nuances e incoerências da vida real, o debate pode amadurecer. “Objeto Sexual”, ainda que imperfeito, é um passo nessa direção.