Depois de longa jornada, Harley-Davidson deixa a Índia
A empresa orgulhosamente norte-americana está desistindo da Índia devido às vendas fracas, depois de mais de uma década tentando fazer negócios
Daniel Salles
Publicado em 1 de dezembro de 2020 às 10h47.
Última atualização em 1 de dezembro de 2020 às 17h51.
Bhupender Singh se inclinou sobre um tanque de combustível em uma concessionária da Harley-Davidson. Uma fileira de motocicletas brilhava sob o sol da tarde; uma era vermelha metálica, outra tinha acabamento preto fosco, e outro modelo ligeiramente mais alto era azul.
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As motos estavam ali para conserto, e não para venda. A porta da frente da concessionária estava trancada. A Harley-Davidson, empresa orgulhosamente norte-americana, está desistindo da Índia devido às vendas fracas, depois de mais de uma década tentando fazer negócios em um país enorme, mas frustrante. "Acabou tudo agora. Não temos mais motos à venda", disse Singh.
O fechamento representa um duro golpe para a ambição indiana de atrair montadoras para o país, em uma campanha chamada "Make in India" (Fabrique na Índia), baseada no sucesso chinês. Isso prejudicou os esforços que a Harley-Davidson tem feito para expandir sua popularidade no exterior, além de ter afetado um pequeno, mas dedicado, grupo de apaixonados pela Harley que está se perguntando como manterá suas queridas motos na estrada.
"É como perder alguém da família. Nós nos sentíamos seguros com a presença física da marca, sabendo que poderia nos ajudar com peças de reposição", afirmou Sandeep Bharadwaj, executivo-chefe de uma montadora de ônibus, que pagou mais de US$ 40 mil por sua Fat Boy.
Empresas em busca do próximo grande boom de vendas há muito ficam de olho na Índia, país com 1,3 bilhão de habitantes e uma classe média crescente. Contudo, fazer negócios no país ainda é bastante difícil. As estradas e ferrovias são inadequadas em muitas regiões, as regras de construção civil atrapalham os projetos e a burocracia indiana é conhecida no mundo todo.
Com a campanha "Make in India", o primeiro-ministro Narendra Modi prometeu reduzir as barreiras burocráticas, investir em infraestrutura e implantar outras medidas para criar vagas especializadas nas áreas de design e da indústria manufatureira.
Mesmo antes da pandemia, a campanha tinha sido desapontadora. A contribuição da indústria para a economia indiana é menor agora do que há uma década. O governo enfrenta dificuldades para criar um ecossistema apropriado para a indústria, incluindo infraestrutura e parques industriais. Pequenos fornecedores que poderiam ajudar as grandes empresas a criar uma boa rede de abastecimento encontram dificuldades para conseguir crédito.
"A Harley veio produzir para nosso mercado. Se não estiver contente, que faça as malas e vá embora", afirmou C.P. Chandrasekhar, economista e ex-professor da Universidade Jawaharlal Nehru, em Nova Déli.
Um porta-voz do Ministério do Comércio, em Nova Déli, disse que o governo está tentando diminuir a burocracia para as empresas.
Apesar das dificuldades, qualquer empresa estrangeira interessada na Índia deve antes explorar as possibilidades de abrir uma fábrica aqui. A Índia conta com algumas das barreiras comerciais mais elevadas do mundo entre os países de grande porte. O presidente Donald Trump citou em inúmeras ocasiões o excesso de impostos pagos pelas motos da Harley-Davidson em suas negociações comerciais com o governo em Nova Déli.
A Índia diminuiu as tarifas das motos da Harley de 75 para 50 por cento em 2018. Ainda assim, o governo continua a cobrar um imposto adicional de 31 por cento sobre veículos de duas rodas, um dos mais altos do mundo.
A Harley-Davidson decidiu montar as motos na Índia. A empresa, com sede em Milwaukee, enviava para a fábrica, nos arredores de Nova Déli, kits com as peças necessárias para montar seus modelos de baixo desempenho, como o Street 750. As motocicletas de alto nível continuavam a ser enviadas prontas dos EUA.
Mas, depois de um crescimento inicial, as vendas despencaram, e a operação da empresa na Índia sofreu com a troca constante de executivos. A Harley-Davidson vendeu um total de 2.470 motos na Índia no período de 12 meses que terminou em março, quase metade do número registrado há cinco anos, de acordo com a Sociedade de Montadoras de Automóveis da Índia, entidade sem fins lucrativos que representa as fabricantes de automóveis.
As motos da empresa também continuaram fora do alcance de muita gente. Os modelos de alto nível da Harley custam mais de US$ 88 mil em Nova Déli, com todos os impostos e as taxas de licenciamento. Isso representa 41 vezes o salário anual médio na Índia, de acordo com o Banco Mundial.
Na Índia, as pessoas preferem motos mais leves e baratas, que são fáceis de manobrar nas estradas esburacadas e engarrafadas do país. As motos mais caras fabricadas pela Hero MotoCorp, uma das maiores montadoras de motos e scooters do país, custam cerca de US$ 1.500.
As medidas tomadas pela Harley-Davidson na Índia fazem parte de uma reestruturação mais ampla. A média de idade do cliente da Harley tem aumentado rapidamente, as vendas se estabilizaram e a margem de lucro caiu.
Sob o comando de Jochen Zeitz, o novo presidente e executivo-chefe da empresa, a montadora está diminuindo o tamanho das concessionárias, restringindo a produção para um pequeno número de modelos e eliminando descontos para demonstrar que as motocicletas são um item exclusivo e de luxo.
"Essa sempre foi uma ideia complicada, porque pode afastar os clientes. A empresa está em busca de um equilíbrio muito delicado neste momento", disse Stephen Brown, diretor sênior da Fitch Ratings, agência de avaliação de crédito com sede em Chicago.
O nome da Harley não desaparecerá completamente da Índia. A empresa divulgou ter fechado um acordo para "vender e fazer a manutenção" de suas motos por meio da Hero, a montadora local, que também vai "desenvolver e vender" motos com a marca Harley. Com o fechamento da fábrica da empresa, o destino da Street 750, o modelo mais popular da Harley na Índia, não está claro. A Harley também despediu cerca de 70 trabalhadores.
Os fãs da Harley na Índia ainda não sabem o que isso significa para eles.
Em 2014, Gaurav Gulati, que pilota Harleys há muito tempo, foi convidado pelo diretor-geral da empresa na Índia a abrir uma concessionária em Nova Déli.
Gulati queria algo grande. Procurou em toda a cidade o local ideal e ocupou um armazém abandonado, que transformou em uma loja chique da Harley com café, oficina e até armários e chuveiros para os motociclistas. Quando a loja finalmente foi aberta, dois anos depois, a montadora já havia trocado a diretoria duas vezes no país.
Gulati é um dos 33 concessionários que disseram ter investido quase US$ 27 milhões nas lojas, incluindo endereços inaugurados em fevereiro deste ano. Ele investiu US$ 1,2 milhão, quantia que saiu em parte de suas reservas e em parte de empréstimos bancários. Além disso, ele ainda paga cerca de US$ 20 mil por mês de aluguel.
Nem a Harley nem sua nova parceira indiana, a Hero MotoCorp, conversaram com Gulati sobre a possibilidade de manter a concessionária, cujo contrato termina ao fim deste ano. "Estou arrasado. É uma tortura mental. Depositei minha fé e minha confiança nisso. O que vou fazer agora?", lamentou-se Gulati, enquanto olhava para a fachada da loja, de tijolos à vista e decorada com grafites.
Apesar de tudo isso, alguns fãs de carteirinha da Harley na Índia não vão desistir.
Em uma manhã recente, o empreiteiro Preetam Thakoor e outros membros do seu clube Harley saíram para passear no fim de semana. Eles pilotaram completamente paramentados, com bandanas com a bandeira dos EUA, colares e jaquetas feitas sob medida com suas iniciais. "Não se trata só da máquina. É a comunidade toda, é nossa união que torna isso tão especial", afirmou Thakoor, que comprou a popular Street 750 em 2014.
Ainda não se sabe se ele poderá continuar com sua paixão. Os motociclistas e concessionários indianos terão de encontrar novas fontes para peças fundamentais: baterias, cabos de aceleração, silenciadores. "Não existe gambiarra neste caso. A Harley deveria estar aqui", disse Thakoor.
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