O consumo de champanhes caiu bem mais do que o dos vinhos tranquilos (Divulgação/Divulgação)
Tânia Nogueira
Publicado em 5 de setembro de 2020 às 08h00.
Última atualização em 5 de setembro de 2020 às 09h41.
Em Bancoc, Saint-Tropez, Ibiza ou Balneário Camboriú ainda há uma festa ou outra na qual se distribuem champanhe e coronavírus para centenas de convidados. De maneira geral, no entanto, o clima no mundo todo não está para grandes comemorações, sejam elas casamentos ou convenções corporativas. O ano de 2020 está sendo um ano sem festas. Isso teve um impacto tremendo especialmente sobre a economia de uma região da França: Champagne. Lá se produz o vinho com borbulhas mais famoso do planeta, um vinho que é sinônimo de festa e alegria. “A pandemia simplesmente cancelou as principais razões de abrir esse tipo de vinho”, diz o francês Cédric Grelin, diretor de produtos da PNR Group. “Os champanhes são vinhos para ocasiões bem específicas. O consumo caiu bem mais do que o dos vinhos tranquilos (sem bolhas)”.
Com isso, cerca de 100 milhões de garrafas de champanhe vão deixar de ser vendidas neste ano. Pior, as caves estão lotadas e não há onde acomodar a próxima safra. Ironicamente, ela parece ter muita qualidade, e este ano vai chegar muito mais cedo por conta de uma onda de calor que antecipou a colheita em toda a Europa. “Os produtores costumam ter entre 3 e 4 anos de estoque”, diz Grelin. “Mas com essa parada brutal das vendas e depois de algumas safras mais generosa do que o previsto, os produtores estão com um estoque bem maior do que é possível de aguentar em termo de custo de estocagem e de caixa.”
Infelizmente, isso não significa que sobrará champanhe no mercado e o preço da garrafa cairá. Para manter o posicionamento como um produto de luxo, o Comitê de Champagne optou por uma solução não tão simpática: estabeleceu uma produção máxima de 8 mil quilos de uva por hectare de vinhedo e o excedente ou vai para o lixo ou será usado para fabricar álcool. Calcula-se que, com isso, sejam produzidos nesta safra 230 milhões de garrafas de champanhe, 70 milhões a menos do que na safra passada e 85 milhões a menos do que a média usual.
Essa decisão não foi fácil de tomar. Havia duas correntes opostas dentro do comitê, que representa cerca de 16 mil pequenos viticultores, mas também as grandes casas (maisons) que compram uvas desses produtores para produzir as marcas famosas que chegam às nossas mãos. Os viticultores, que possuem em média 3 hectares, queriam um limite de produção mais alta. Calcula-se que, com esse limite, um viticultor que tenha 3 hectares de vinhedos irá perder cerca de 43 mil euros nesta safra. Já as grandes casas queriam um limite ainda menor pois também estão super estocadas e não querem baixar o preço para deixar de ser um produto de luxo.
O problema de super estocagem é geral na Europa, em todas as faixas de preço. Por vários motivos. O primeiro deles é o fechamento de bares e restaurantes. “Os restaurantes há décadas são o principal canal de distribuição de vinhos na Europa”, diz Grelin. “É neles que se constrói a marca dos produtores nos maiores mercados”. Além disso, vários países estabeleceram barreiras sanitárias que dificultaram muito o comércio internacional.
A interrupção do enoturismo também foi fatal para várias regiões que tinha na venda da loja da vinícola uma importante fração do seu faturamento. O turismo comum, que não está diretamente ligado à produção e venda de vinhos, também é uma parte importante equação.
Portugal, por exemplo, está sofrendo muito com a queda do turismo. “Portugal tem uma população flutuante de turistas de mais ou menos 25 milhões de pessoas”, conta Rodrigo Lanari, country manager no Brasil da Wine Intelligence, empresa internacional especializada em pesquisa de mercado na área de vinhos. “E a população de residentes é de pouco mais de 10 milhões. Portugal tem o maior consumo per capita de vinho, ao redor de 50 litros per capita. Mas, se você tirar essa população de turistas, o consumo real per capita é muito menor. Então, eles estão super estocados”.
Para o brasileiro, que viu o consumo de vinho crescer no período de isolamento, esses números podem parecer estranhos. Lá como aqui, o consumo doméstico e, consequentemente, as vendas online e nos supermercados subiram, mas não foram suficientes para compensar as perdas com restauração, turismo e exportação. Mas, certamente, o e-commerce vai ficar como um novo e importante canal de vendas e construção de marca.
No caso dos vinhos franceses, há um outro problema que não é relacionado com a pandemia, mas coincidiu com ela: a questão das tarifas americanas. No fim de 2019, em represália a um imposto francês sobre operações digitais, o presidente americano, Donald Trump, criou uma taxa extra de importação de 25% sobre vários itens franceses, incluindo os vinhos. “Isso acaba reprimindo a compra do maior mercado do mundo, que é os Estados Unidos”, diz Lanari. “O que a gente percebe das pesquisas que temos feito é que o consumidor está fortemente inclinado a comprar produtos locais. Nos Estados Unidos, o consumidor tem favorecido os vinhos californianos”
Os produtores de volume foram os mais afetados, principalmente pela dificuldade de estocar. Para ajudar a encontrar espaço para a nova safra França, Itália e Espanha, junto com a União Europeia, vêm destinando centenas de milhões de euros para auxílio dos produtores afetados, esse dinheiro é destinado para buscar soluções de estoque e ajuda financeira, como a compra do vinho excedente para destilar em álcool industrial ou álcool gel.
Muitos produtores da prestigiosa (e cara) região francesa da Alsácia, por exemplo, anunciaram que estão vendendo seus vinhos para a fabricação de álcool. Calcula-se que cerca de 5 mil produtores estejam fazendo isso. Alguns produtores, no entanto, acharam outras formas de subir demais os estoques. A vinícola Hugel, um importante produtor da região, por exemplo, optou por fazer poda ver. Ou seja, cortar fora alguns cachos antes que eles se desenvolvam. Isso é uma prática normalmente usada para aumentar a concentração de açúcar e material fenólico nos bagos, mas que nem sempre é necessária. Certamente, não no caso da Hugel. “Sacrificamos uma grande parte de nossas uvas dos melhores terroirs", lamentou Jean Frédéric Hugel, 13ª geração da família de enólogos, à revista inglesa Decanter.
Mas os grandes chateaux de Bordeaux, por exemplo, preferiam baixar os preços a deixar o fruto de seu trabalho escorrer pelo ralo. Pelo menos no caso da venda “en primeurs” (tradicional venda adiantada de grandes exemplares da safra que ainda não está completamente pronta). “Apesar de divulgar uma safra extraordinária, os produtores se decidiram em conjunto baixar os preços em relação 2018”, diz Cedric Grelin. “Com dificuldade para fazer provas de barrica de seus vinhos, como costumam ser feitas da forma tradicional, com a presença dos maiores críticos do mundo inteiro, eles acharam que era mais seguro assim. Portanto, a safra 2019 vai oferecer enorme oportunidade de compra para os clientes apesar do atual câmbio”.
Outras soluções passam por flexibilizar algumas regras das diferentes denominações de origem. O Consórcio de Chianti Classico, na Toscana, por exemplo, permitiu que excepcionalmente os vinhos sejam armazenados fora de região delimitada. Com a retomada lenta das atividades econômicas, as vendas em Chianti Classico se recuperaram. Mesmo assim, os estoques continuam altos. Para evitar descartar vinho, com a ajuda do consórcio, os produtores estão fazendo armazenamento colaborativo. “Colocamos em contato vinícolas que tinham espaço disponível na adega com quem precisava’, disse à revista Decanter a diretora Carlotta Gori.
Foco na qualidade e espírito inovador costumam ajudar a sair de qualquer crise. Tem ajudado mesmo lá em Champagne, onde a situação das piores. “Os pequenos produtores, cada vez mais, buscam desenvolver suas próprias champanhes”, diz Alaor Lino, proprietário da importadora Anima Vinum, que traz uma série de champanhes especiais de pequenos produtores. “Esses rótulos continuam vendendo bem. É cada vez mais difícil conseguir comprar alguns deles. A grande busca desses pequenos produtores é por valorizar o terroir, a cultura dos vignerons (vinhateiros). Eles têm um cuidado artesanal, muitas vezes prolongam o período sur lies, tudo isso faz com que esses champanhes de vigneron sejam um produto excelente com demanda crescente em todo o mundo. Eu diria que há, apesar do impacto econômico, a crise gerada pela pandemia veio para alguns como uma oportunidade de gerar coisas novas, produtos de maior valor agregado”.