Lance Armstrong (Getty Images)
Da Redação
Publicado em 24 de agosto de 2012 às 19h33.
São Paulo - Quando entrevistei Lance Armstrong pela primeira vez, alguns anos atrás, fiquei em dúvida se comentava sobre meu câncer de esôfago ou não. Por que ele se importaria? O caso dele foi muito mais grave, afetando os testículos, o abdome, os pulmões e o cérebro. Além disso, o foco de Armstrong não era o câncer de uma única pessoa – ele trabalhava para ajudar o mais de meio milhão de norte-americanos que morrem da doença anualmente. "O câncer me deu um propósito", ele afirmou na época. "Um dia, a bicicleta será um hobby e não mais meu trabalho. A doença e meus filhos são propósitos para o resto da vida."
É lógico que não resisti: uso uma pulseira amarela da LiveStrong diariamente desde a minha cirurgia. A pulseira existe desde 2004 é o símbolo da Fundação Lance Armstrong (e dos sobreviventes do câncer e defensores da causa), fundada em 1997. Para pessoas como eu, seu poder de inspiração é inegável.
Treinei pesado nas semanas de quimioterapia que antecederam minha operação, obedecendo à regra de Armstrong de que quanto mais você sofre antes da prova, menos você sofrerá durante e depois. Na sala de recuperação, quando uma enfermeira viu minha frequência cardíaca em repouso, ela perguntou: "Você corre?" Sim, eu corro.
Uma das primeiras perguntas que fiz na cama do hospital foi: "Quando vou poder voltar a treinar?" Essa é uma história comum a todos os corredores que sobreviveram a um câncer: somos guiados pela necessidade de vencer aquilo que está tentando nos matar. Armstrong sabe do que estou falando. Na verdade, ele mesmo encontrou motivação dessa forma.
Aos 41 anos, ele agora avança em seu papel na LiveStrong com a mesma determinação com que subia o Alpe d'Huez, o ladeirão mais famoso da Volta da França. Até o ano passado, Lance Armstrong já havia ajudado sua fundação a levantar mais de 400 milhões de dólares e se encontrou com milhares de sobreviventes.
Os milhares de pessoas que participam das provas do Team LiveStrong não costumam conter a emoção. "Não são corridas divertidas", conta. "São corridas emocionantes." Armstrong é um herói para os sobreviventes e seus apoiadores, que não estão nem aí para o ciclismo, a vida social dele ou as acusações de doping que o acompanham.
Armstrong se orgulha do fato de que a fundação está indo melhor que nunca, apesar da situação econômica e das incansáveis investigações do seu passado esportivo. Recentemente, a LiveStrong abriu um Cancer Navigation Center ("Centro de Navegação para o Câncer", em tradução livre) em Austin, no Texas. A proposta do local é ajudar as pessoas a cuidar das questões médicas, sociais e financeiras relacionadas ao tratamento do câncer.
Armstrong recebeu a Runner's World para a entrevista a seguir sentado ao lado da piscina no quintal de sua casa, no Texas. Ele já não monta sua bicicleta com a frequência de antes. Em vez disso, corre e nada diariamente. Parte do seu treino consiste em empurrar seus filhos mais novos em um carrinho de bebê próprio para correr (na companhia da mãe deles, Anna Hansen), ou então correr enquanto seus três filhos mais velhos andam de bicicleta ao seu lado (ele mora próximo de sua ex-mulher, Kristin).
Contudo, a veia competitiva de Armstrong continua presente, principalmente enquanto ele se defende das acusações de doping ligadas a vitórias conquistadas entre 1998 e 2004 (nunca houve um resultado positivo). Enquanto isso, Armstrong segue em sua luta. "Não fico feliz se não me submeto a algum sofrimento físico, como correr ou pedalar." Por causa disso, muita gente acredita que ele vá mesmo participar do próximo Ironman no Havaí, em outubro.
- Como surgiu seu interesse por corrida?
Lance Armstrong - Eu já corria antes do ciclismo. A natação foi meu primeiro esporte de competição, mas eu corria um pouco. Às vezes, fazia 10 km com minha mãe aos fins de semana. Depois disso, fui para a equipe de atletismo na escola. Em seguida, iniciei no triatlo profissional e a corrida ficou de lado por um tempo. Agora estou de volta, não só por gostar disso, mas também porque acredito que posso ser veloz. Para correr as maratonas de que participei em 2006 [Nova York] e 2007 [Boston], eu me preparei um pouco, mas não muito.
- Ouvi falar que você está recebendo apoio da Nike e de um tal de Alberto Salazar [tricampeão da Maratona de Nova York nos anos 80].
Armstrong - Passei por uma análise da minha passada e da minha pisada. A ideia não é tanto melhorar a passada, mas sim escolher o melhor tênis. Minha pisada é pronada no calcanhar e supinada no arco do pé. Isso parece ter ajudado. Também tive alguns problemas de joelho seis meses atrás.
Cheguei a achar que precisaria de tratamento, mas as coisas se resolveram. Não fiquei fanático [em relação ao treino para maratona], mas estou começando a fazer algumas coisas que não fazia antes, como treinos de velocidade, de distância. Além disso, eu era mais pesado. Aí todo mundo vai dizer: "Você nada todo dia, corre todo dia, já venceu a Volta da França sete vezes. A gente sabe em que você está pensando".
- Triatlo?
Armstrong - Sim, o triatlo. Mas, ao participar do Ironman [foi o segundo colocado no Panamá em fevereiro e confirmou presença no principal evento da modalidade, em outubro, no Havaí], apenas um resultado deixará as pessoas satisfeitas. Em um evento difícil como esse, existe muita pressão. Chegar em quarto ou quinto lugar com minha idade é muito bom.
- Você era um ciclista altamente tático. Você tem uma estratégia para as maratonas?
Armstrong - Para a maioria das pessoas, é uma questão de combinar um pouco de estratégia com um bom ritmo. Se você corre os primeiros 15 km rápido demais, está cometendo um erro estratégico. Dizem que, na maratona, 30 km são metade do caminho, o que é verdade.
Os últimos 12 km são fundamentais. As pessoas não costumam lembrar- se disso em grandes maratonas, nas quais há um público enorme nas calçadas, e elas vão se juntando a ele. Elas correm 15 km e se sentem bem, correm mais 15 sem problemas e de repente as dores começam e a pessoa já não se sente tão bem assim.
- Bem, você sabe se alimentar das multidões, utilizar essa energia.
Armstrong - Mas no fim de uma maratona isso não importa. Você está acabado, nada vai ajudá-lo...
- Hoje, muitos sobreviventes de câncer correm em provas da livestrong e similares. Você conversa com eles? O que eles significam para você?
Armstrong - Muitos dos nossos corredores são sobreviventes ou pessoas diretamente ligadas a eles. Muitos deles já pensaram que não teriam outro dia, outra semana, outro mês, outro ano de vida, e mesmo assim eles chegaram lá. Eu sou um deles. Penso: 'Consegui. Estou aqui". Para eles, lidar com esse desafio, esse objetivo, é como uma maratona. Correr reafirma o fato de que eles estão vivos, o fato de que eles estão de volta, que tiveram uma nova oportunidade, seja ela o amor, a vida, os filhos ou correr uma maratona.
- Voltei a correr logo após minha cirurgia, para provar para mim mesmo que eu podia. Por que correr maratonas tornou-se algo importante para tanta gente?
Armstrong - Existe um forte senso de comunidade em nossos eventos. As pessoas querem sentar e conversar sobre suas experiências. Elas falam sobre corrida, mas falam principalmente sobre sua experiência com o câncer. Quando levantam fundos, elas falam sobre sua experiência para milhares de pessoas. Acho que isso é terapêutico para muita gente, não é só algo como "apareça no dia da prova e venha correr".
Existe todo um processo acontecendo, de treinamento, de angariar fundos, fazer amigos. Todas essas pessoas com quem eles falaram seguem sua vida, sabendo que vão correr uma maratona. Não é sequer necessário que o palestrante seja o sobrevivente de um câncer. Pode ser alguém que sobreviveu a um ataque cardíaco, que vem sobrevivendo à aids, ou ainda um dos mineiros chilenos. O cara estava lá embaixo, correndo, treinando. Muitos disseram: "Por que você está treinando? Você não vai sair daí". E então ele correu a Maratona de Nova York. Isso é incrível. Puxa, eu não teria treinado lá embaixo. Pensando bem, talvez eu tivesse, sim...
- Quando passei pelo câncer, perdi 10% do meu peso e toda minha força física. Como a doença mudou você e seu corpo?
Armstrong - Para começar, o tratamento é destrutivo para os músculos e o condicionamento físico já existentes. Além disso, você não faz nada. Você fica em repouso. Eu ficava deitado. Dormia 20 horas por dia. Você não vai manter a massa muscular de antes. Eu perdi muito peso. Porém, quando voltei, minha visão do esporte tinha mudado.
Todas as coisas que eu não fazia em termos de treinamento... Eu percebi, como disse agora há pouco, que tinha retornado. Recebi minha vida de volta. Tenho certeza de que estarei aqui ano que vem e não quero estragar as coisas, portanto tenho que ser mais focado do que eu era. Meu desempenho era medíocre no começo dos anos 90.
- Bem, algumas pessoas gostariam de ser medíocres assim...
Armstrong - E vencer campeonatos mundiais! Entretanto, eu não teria vencido a Volta da França com o corpo que tinha antes. Perder peso até que foi bom. Aqueles 5 kg fizeram muita diferença. Para o corpo, pesar 83 kg é bem diferente de pesar 88 — os joelhos, as articulações, os tendões. Agora que está aposentado do ciclismo, o que você faz para manter a forma?
- Agora que está aposentado do ciclismo, o que você faz para manter a forma?
Armstrong - Natação e corrida, e só. Nadar é excelente para seu sistema cardiovascular. Não existe esporte melhor para isso. Segurar seu fôlego durante 50% do tempo, durante horas? É bem difícil.
- Com que frequência você pensa no seu próprio câncer?
Armstrong - Penso com frequência, pois sou lembrado sobre isso a todo instante. Contudo, 15 anos e incontáveis check-ups depois, estou curado. Muito da minha reflexão sobre a doença tem a ver com as outras pessoas. Quando penso em todas as histórias que ouço diariamente, fico com a sensação de que tudo isso é injusto. Muitas vezes, essa é a minha conclusão sobre o câncer. Olho para minha situação e tudo que me foi concedido depois da doença.
Acredito que algumas coisas foram conquistas minhas, mas o fato de ter recuperado minha saúde é, de certo modo, injusto para muitas pessoas, pois elas não tiveram essa chance. O que eu quero dizer é que eu sou um tremendo de um sortudo. Porém, os tipos de câncer são extremamente variados. As pessoas não entendem isso. Elas olham para mim e dizem: "Puxa, eu vou ficar bem, olhe só para ele".
- E as controvérsias sobre o doping? Esse assunto parece não ter fim.
Armstrong - Concordo, parece mesmo.
- Acho que a coisa vem se estendendo há 11 anos.
Armstrong - Mais. Mais de 11.
- Isso é um problema para a Livestrong?
Armstrong - Isso é mensurável. Podemos nos comparar com onde estávamos um ano atrás. Podemos nos comparar com outras organizações. Posso lhe dizer que 2011 foi muito melhor que 2010, em termos financeiros. O ruído todo sobre o caso não nos afetou. Durmo melhor sabendo que nossos membros acreditam na nossa missão, nas pessoas, na organização e não se deixam abater por alegações infundadas. Algumas são de 15 anos atrás, outras têm dez anos. Tanto tempo e, mesmo assim, sou questionado constantemente.
- É a pergunta que sempre estará na lista.
Armstrong - Sim. Eu me recuso a ficar aborrecido com isso. A imprensa caiu em cima do assunto, mas pergunte se eu já saí na rua e senti o impacto disso. Não. Se já estive em uma prova de ciclismo e percebi algo. Nunca. Se não lesse os jornais, eu jamais teria sabido. O impacto sobre nosso cotidiano é zero. Você sabe o que há por baixo dessas árvores? [Aponta para o jardim.] Raízes, muitas delas. Elas se aprofundam, se espalham. Essas árvores balançam bastante, seja com o vento, seja se empurrarmos o tronco delas. Porém, nós nunca conseguiremos derrubá-las. Temos que ter fé nas raízes.
- Qual é seu próximo desafio? Como você vai mensurar seu sucesso? Quem você vai deixar para trás dessa vez?
Armstrong - Corro porque quero. Muitas pessoas perguntam: "Por que você quer correr uma maratona? Você passou 20 anos como ciclista profissional. Vá jogar golfe. Vá pescar". Só que eu não gosto dessas coisas. Eu gosto disso. Hoje foi um dia caótico, mas amanhã não tenho nada para fazer. Vou dormir um pouco, tomar um café e ler os jornais. Depois disso, vou sair para correr. Porque eu quero.