A melhor chef que você não conhece
Jardel Sebba Por mais que esteja atualizado com o que há de mais instigante na gastronomia brasileira, é provável que você nunca tenha comido um prato preparado por Giovanna Grossi, jovem chef alagoana de 25 anos. Mas tudo indica que é só uma questão de tempo. Vencedora em 2015 da etapa brasileira do Bocuse d’Or, […]
Da Redação
Publicado em 11 de fevereiro de 2017 às 06h28.
Última atualização em 22 de junho de 2017 às 17h54.
Jardel Sebba
Por mais que esteja atualizado com o que há de mais instigante na gastronomia brasileira, é provável que você nunca tenha comido um prato preparado por Giovanna Grossi, jovem chef alagoana de 25 anos. Mas tudo indica que é só uma questão de tempo. Vencedora em 2015 da etapa brasileira do Bocuse d’Or, o mais importante concurso gastronômico do mundo, Giovanna não se deu por satisfeita e abocanhou também a medalha de ouro na etapa latino-americana, ano passado na Cidade do México. Duplamente habilitada, no último fim de semana de janeiro Giovanna tornou-se a primeira mulher brasileira a concorrer na final do Bocuse d’Or, em Lyon, na França. É o mais prestigiado concurso mundial de gastronomia, uma espécie, como tem sido dito por aí, de “Master Chef da vida real”.
Foi uma ocasião de gala para ela e para o concurso. Realizado a cada dois anos em paralelo com o Sirha (Salão Internacional de Restaurantes, Hotelaria e Alimentação, em francês), maior feira de gastronomia do mundo, o concurso criado pelo chef Paul Bocuse completou 30 anos em 2017. Em homenagem à data festiva, as 24 equipes classificadas para a final tiveram dois desafios. O primeiro, uma reedição do desafio da primeira edição do concurso, uma interpretação do frango com lagostim, receita tradicional lionesa. O segundo, uma receita composta 100% de vegetais.
Não havia surpresa: os desafios já eram conhecidos dos participantes. “Durante os treinamentos, nós tivemos mais dificuldade com o prato de legumes, pelo tempo menor de treinamento, por ser um prato vegano e por ser um tema nunca visto no Bocuse d’Or”, lembra Giovanna. Sua Aquarela de Vegetais Brasileiros apresentou aos franceses, entre outros, a mandioquinha e o jiló. Já a releitura do frango ganhou mosaico de lagosta com molho homardine e garras de lagosta com vegetais crocantes, palmitos e coulis de Cambuci entre os acompanhamentos.
Quando ela diz “nós”, se refere a uma equipe comandada pelo não menos laureado chef Laurent Suaudeau, francês radicado no Brasil desde 1980 e presidente do Bocuse d’Or Brasil. Além do comando de Suaudeau, Giovanna contou ainda com o apoio de Nicholas Santos (commis, espécie de auxiliar), Victor Vasconcellos (coach) e Andrews Valentim (logística). “No começo, parecia que tinham me colocado em uma jaula de leões, foi difícil. Mas depois vi que foi a melhor escolha que poderia ter sido feita, os meninos são incríveis!”, ela registra, lembrando que todos trabalharam muito sem receber nada.
Laurent Suaudeau é conhecido tanto pelo talento na cozinha quanto pela rigidez, e com Giovanna não foi diferente. “Eu costumo comparar com um atleta. Quem disputa um triatlo precisa de meses de treinamentos diários, e conosco foi a mesma coisa”, compara. “Todos os dias íamos para escola testar receitas novas, repetir gestos, treinar o tempo, aperfeiçoar receitas. Às vezes chegávamos às 7h e saíamos oito, nove da noite. Na semana antes da final, chagamos a sair meia-noite.” O tempo era fator fundamental: cada equipe tinha exatos 5h35 para servir as duas receitas para cada um dos quatorze jurados.
Apesar dos 25 anos, Giovanna exibiu um talento moldado ao longo de quatro anos de experiência em cozinhas europeias, inclusive com alguma familiaridade com Lyon. “Me formei em gastronomia no Brasil e fui pra França fazer um curso no Institut Paul Bocuse, e acabei ficando dois anos trabalhando por lá. Na sequência, fui trabalhar na Espanha, uma cozinha mais inovadora. Os espanhóis veem a comida com olhar diferente dos franceses”, define. Quando viu que as inscrições para o Bocuse d’Or estavam abertas, encontrou a razão que procurava para voltar ao Brasil.
O objetivo de Suaudeau era realista, ficar entre os dez melhores. Não deu: Giovanna e seu time acabaram em décimo-quinto lugar. O que não a desanimou. “Era difícil competir com os grandes, que todos os anos participam do concurso, a experiência conta muito. Esse é o tipo de concurso que não é só chegar e cozinhar, é um trabalho que tem que ser feito durante 2 anos”, avalia. “Sei que fizemos o melhor nas condições que tínhamos e ficou incrível, muitos chefs da organização elogiaram”, lembra.
Os Estados Unidos ficaram com a medalha de ouro, seguidos no pódio por noruegueses e islandeses. Foi a primeira vez dos norte-americanos – nas quatorze edições anteriores, apenas França, Luxemburgo, Noruega, Suécia e Dinamarca haviam vencido o Bocuse d’Or. Apesar do destaque que ganhou com o concurso, ainda deve demorar para provarmos a cozinha de Giovanna Grossi no Brasil. Ela não pensa em abrir restaurante, pelo menos não agora. “Ainda tenho vontade de viajar e aprender mais antes de me estabilizar em algum canto”, conclui.
A culpa é das estrelas
Giovanna só teve a oportunidade de ver Paul Bocuse de perto uma vez, no restaurante dele, o L’Auberge du Pont de Collonges, quando estudava em Lyon. Se alta gastronomia fosse rock’n’roll, Bocuse seria uma espécie de Mick Jagger: não apenas uma estrela, mas a maior de todas. A comparação faz mais sentido se você considerar uma reputação que foi construída em boa parte pelo indiscutível talento na cozinha mas, em alguma medida, também pelo seu, digamos, temperamento.
Em uma entrevista, há cerca de oito anos, Claude Troisgros lembrou de quando trabalhava na cozinha de Bocuse e o chef levou a equipe para o estacionamento, onde ficaram armados e escondidos esperando para dar um flagrante no ladrão que aparecia todas as noites para furtar os carros dos clientes. Algumas tiradas de Paul Bocuse são tão épicas quanto seus pratos. Certa vez, um jornalista perguntou a ele quem cozinhava quando ele não estava na cozinha. “Os mesmos que cozinham quando eu estou”, ele respondeu.
Bocuse fez 91 anos neste sábado, 11 de fevereiro, em plena forma. O menu-degustação completo do L’Auberge du Pont de Collonges, que inclui a lendária sopa de trufas negras (criada em 1975 para o então presidente francês Valéry Giscard d’Estaing) entre os sete pratos, custa 270 Euros por pessoa. Há dois anos, Bocuse comemorou o cinquentenário de suas três estrelas do Guia Michelin, cotação máxima que ostenta ininterruptamente desde 1965. O chef é um dos ícones da nouvelle cuisine, movimento em oposição à gastronomia tradicional nascido nos anos 1960 que, em breves linhas, deu as bases da gastronomia moderna ao reduzir exageros e focar nos ingredientes.
Estrelas Michelin não são apenas pontos luminosos na biografia de um chef, mas movimentos determinantes para o sucesso ou o fracasso de um negócio que depende de tempo e credibilidade e que, uma vez estabelecido, movimenta muito dinheiro. Entre os chefs franceses que começaram a carreira na década de 1970, o que melhor incorporou o lado empresário foi Alain Ducasse. São mais de vinte estabelecimentos em sete países, entre elas o icônico restaurante do Hotel Plaza Athénée, em Paris, hotéis no interior da França, escolas de gastronomia, serviços de consultoria, fábrica de chocolates, livros e eventos. Inclusive uma parceria desde 2007 da Alain Ducasse Formation com o curso de gastronomia da faculdade carioca Estácio de Sá. O amplo leque de negócios rendeu ao chef, em 2014, estimados 80 milhões de Euros em receita e negócios da ordem de 155 milhões de Euros.
Tudo começou em Copacabana
Sem Bocuse, Troisgros e Suaudeau, fatalmente não existiria Giovanna. Isso porque, além de mestres da arte que ela escolheu para viver, os três também estiveram na gênese da moderna cozinha brasileira. Foi em Copacabana, mais precisamente nos extremos da praia mais famosa do Rio que, em 1979, a nouvelle cuisine desembarcou no país.
A história mostra que, desde Nicolas de Villegagnon, almirante que adentrou a Guanabara em novembro de 1555 com duas naus e 600 homens, os franceses são apaixonados pelo Rio de Janeiro. Em setembro de 1979, Paul Bocuse era o principal consultor do restaurante Le Saint Honoré, inaugurado no terraço do Hotel Le Méridien, na fronteira com o Leme. Três meses depois, ele convidou Suaudeau para comandar a casa – o chef chegou ao Rio no começo do ano seguinte, aos 23 anos.
Ainda no fim de 1979, Claude Troisgros desembarcou na mesma praia, mas do outro lado, nos limites do Arpoador. Enviado por Gaston Lenôtre, outro ícone da nova cozinha francesa, Troisgros veio trabalhar no recém-inaugurado Le Pré-Catelan, dentro do Hotel Rio Palace. Seu sobrenome já tinha história na gastronomia francesa desde 1930, quando o avô Jean-Baptiste abriu a Maison Troisgros, em Roanne, que trinta e oito anos depois ganhou a terceira estrela Michelin em definitivo, já sob o comando de seu pai, Pierre.
Bocuse virou lenda – mas continua na cozinha de seu restaurante, onde você já sabe quem de fato cozinha. Troisgros e Suaudeau construíram trajetórias desbravadoras na gastronomia brasileira. Ampliaram a perspectiva dos chefs brasileiros e abriram espaço para a consolidação de uma nova geração de franceses no pais, como Roland Villard, Erick Jacquin e Emannuel Bassoleil, entre muitos outros.
Troisgros, ao lado do filho Thomas, quarta geração de chefs, se divide em quatro cozinhas no Rio, com destaque para o impecável Olympe. Suaudeau comanda em São Paulo a escola gastronômica que leva o seu nome. E o legado deles segue pelas mãos de Giovanna Grossi. “A disciplina que há dentro de uma cozinha francesa, a precisão, a perfeição… Não dá para fazer uma gastronomia inovadora e esquecer as bases, não faz sentido”, resume a jovem chef.