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A história torta de amor de Elza e Garrincha no documentário da Globoplay

O casamento explosivo entre as estrelas da música e do futebol foi cercado de preconceito, violência e acusações

Garrincha e Elza Soares, na Itália, quando o casal morou lá: amor e destruição (Keystone-France/Getty Images)

Garrincha e Elza Soares, na Itália, quando o casal morou lá: amor e destruição (Keystone-France/Getty Images)

Ivan Padilla

Ivan Padilla

Publicado em 16 de março de 2022 às 06h30.

Última atualização em 16 de março de 2022 às 06h51.

“Deus escreve certo por linhas tortas. A minha história foi escrita por pernas tortas.” É dessa forma que em certo momento Elza Soares descreve sua vida com Mané Garrincha, no documentário Elza & Mané - Amor em Linhas Tortas, na Globoplay. Essa foi uma grande história de amor. Foi também uma grande tragédia.

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Elza e Garrincha eram celebridades quando se juntaram. Foi o encontro de um dos maiores jogadores de futebol, já bicampeão mundial pelo Brasil, com uma das maiores estrelas da música. Com o devido distanciamento histórico, seria algo como um casamento hoje entre Neymar e Anitta.

Mas a tradicional família brasileira era contra o romance. Garrincha era casado com a namorada da adolescência e tinha sete filhas. Como poderia largar a família para ficar com Elza, uma cantora negra, viúva, que cantava com grunhidos, de um jeito só dela?

Segundo depoimentos do documentário, Elza já era Elza, enquanto Garrincha não sabia mas já estava deixando de ser Garrincha, pelos problemas com o joelho, com o Botafogo – e principalmente com o alcoolismo.

Flerte no Chile

Garrincha e Elza começaram a namorar logo depois da Copa de 1962. Pouco antes, o finado Jornal dos Sports promoveu uma votação para eleger o jogador mais popular do Rio de Janeiro. Cada atleta tinha uma madrinha. Adivinhem qual era a de Garrincha?

Elza já era famosa e “ganhava muito dinheiro”, segundo a própria diz no filme. Ela foi se apresentar na concentração da seleção brasileira em Campos do Jordão, em São Paulo, antes da Copa de 1962. Por lá, trocou o primeiro beijo com Garrincha.

Durante o Mundial, Elza deu um jeito para fazer shows no Chile. Aconteceu na época uma história curiosa. Ao ver Louis Armstrong se apresentando, com a voz rouca, ela teria ficado irritada, achando ele estava imitando o timbre dela. Em uma cena do documentário, Elza deu outra versão à apresentadora Fernanda Young. Ela disse que tinha receio de o celebrado músico americano achar que ela é quem estava imitando a forma dele cantar.

Elza passa fome

Falam no documentário Zeca Camargo, autor da biografia da cantora, músicos como Chico Buarque e Caetano Veloso, o biógrafo de Garrincha Ruy Castro, comentaristas esportivos como Juca Kfouri e José Trajano, ex-jogadores como Pepe e Rivelino.

Eles ajudam a traçar o perfil da estrelas e a reconstituir a relação entre os dois. Elza e Garrincha têm trajetórias parecidas, de certa forma. No Brasil das desigualdades, pessoas sem acesso à educação e ao mercado de trabalho formal enxergam na música e no futebol um meio de ascensão. Alguns poucos conseguem.

Elza é do bairro de Padre Miguel, na zona oeste. Filha de lavadeira, foi obrigada pelo pai a se casar aos 12 anos. O marido chegou a tentar matá-la, disparando em seu ombro. Ele morreu de tuberculose quando Elza tinha 21 anos.

Elza teve uma vida de privações. Dos três filhos, um morreu de fome e uma foi sequestrada, só ressurgindo 30 anos depois. Trabalhou em diversos empregos braçais, muitas vezes não tinha o que comer, mas eu sonho sempre foi cantar. É conhecida a história de sua apresentação no programa de Ari Barroso. Ela, muito magra, com 36 quilos, chamava a atenção. “De que planeta você é, minha filha?” Ao que ela respondeu: “do planeta fome.”

Mas nada aconteceu depois da apresentação. Elza seguiu com sua vida normal. Somente anos depois ela passou a cantar nas periferias dos clubes, quando a deixavam, por ser negra, como lembra Chico Buarque no documentário. Com a voz potente e rasgada, começou a ser convidada cada vez mais para participar de shows, até que gravou seu primeiro disco.

Elza não só não imitou ninguém como ninguém conseguia imitá-la, diz Chico Buarque. Segundo Caetano, ela sempre foi inovadora na história do samba, com sua voz única. Para Sandra Sá, Elza cantava música preta de verdade. Seu primeiro grande sucesso foi “Se acaso você chegasse”, de Lupicínio Rodrigues. Tinha então 30 anos. Quando conheceu Garrincha, dois anos depois, já era umas das cantoras que mais vendia discos no Brasil.

 Alegria do povo

Garrincha era operário de uma tecelagem de Pau Grande, distrito de Magé, no Rio de Janeiro. Péssimo empregado, só não era demitido por ser o craque do time da fábrica. Fez inúmeros testes nos times cariocas, mas suas pernas tortas sempre causavam desconfiança de médicos e olheiros.

Até que conseguiu sua chance no Botafogo. E logo virou uma sensação. Se Pelé deixava os torcedores boquiabertos, Mané fazia os estádios gargalharem, diz Juca Kfouri. Era mesmo a alegria do povo, apelido dado pela criativa crônica esportiva da época.

Garrincha tinha sempre o mesmo drible, caindo pela direita, com arrancadas inacreditáveis para quem via aqueles dois joelhos virados para o lado esquerdo, a perna direita seis centímetros mais curta que a outra.

Pelé e Garrincha nunca perderam um jogo juntos. Mas o craque do Botafogo sofria preconceitos. Diziam que ele tinha problemas cognitivos, limitações intelectuais, diz Chico. “Era o contrário. Ele tinha um gosto musical refinado, gostava muito de João Gilberto. Cantava bem, de um jeito bossa nova, suave, ao contrário da Elza”, lembra.

Garrincha convivia com o alcoolismo desde a infância. Em uma entrevista, ele diz que começou a beber aos 10 anos de idade. O jogador conta que era comum as crianças de Pau Grande beberem uma mistura de cachaça, mel e canela chamada Cachimbo.

A precocidade com o álcool cobrou um preço alto a Garrincha. Quando ele sumia dos treinos do Botafogo, era para ficar bebendo em Pau Grande. Amigos jornalistas então iam buscá-lo, lhe davam banho e café, e o levavam para o jogo. E Garrincha driblava e divertia a torcida.

Fim melancólico

Elza e Garrincha, a Crioula e o Neném, como se chamavam, morreram no mesmo dia, 20 de janeiro, com um intervalo de 39 anos. Muita bebida rolou nos anos em que ficaram juntos, até a morte do craque, em 1983.

Elza ajudou a negociar contratos do craque e cuidou dele, cada vez mais em casa devido aos problemas com o joelho. Para isso, teve de reduzir as apresentações e o dinheiro começou a faltar novamente. Os anos de relacionamento foram marcados por traições e agressões. E tragédias: mortes na família, tentativa de suicídio, exílio por causa do governo militar. Logo depois da Copa Garrincha entrou em decadência, or problemas fisicos com o joelho e pelo álcool.

Para parte da conservadora opinião pública, a cantora era culpada pela decadência do jogador. Elza & Mané é mais do que a história trágica de dois amantes. É um pedaço da nossa história, a lembrança de um país que se projetava no futebol e no samba,  um retrato em preto e branco de uma sociedade machista.

 

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