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Tempo das mães, medo de não existir e a falta do capeta soprando no ouvido

Não ter tempo para fazer nada que seja exclusivamente para você é um asset assegurado às mães de crianças pequenas

Tempo é como a gente goza do maior privilégio que tem: estar vivo (filadendron/Getty Images)
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Bússola

Publicado em 2 de setembro de 2022 às 19h00.

Última atualização em 2 de setembro de 2022 às 19h12.

“Me tornei o que mais temia”. Uso muito essa frase depois que virei mãe. Vai de coisas triviais como ser a pessoa que veste roupa de treino e não treina — que fase; até uma autocrítica mais pesadona sobre as escolhas diárias que faço na missão de não delegar demais a criação do humano que coloquei no mundo - no meu caso, por livre e espontânea vontade.

Cada escolha, uma renúncia. Mas no bolo de renúncias da maternidade, quando você se liga, acabou o dia, de novo, e você nem tem energia para pesquisar onde é que ele foi parar.

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Não ter tempo para fazer nada que seja exclusivamente para você é um asset assegurado às mães de crianças pequenas. Vem dentro da caixa, junto com o bebê, os 50 paninhos de boca e a uma declaração autenticada em cartório revogando seu direito de morrer. É estrutural, claro, tem mais conexão com papéis de gênero e com uma sociedade pensada para que mulheres façam todo o trabalho de cuidado, do que com a minha ou a sua relação específica com o relógio.

Mas passa rápido, essa fase. Minha mãe sempre diz, e a sua talvez diga também. Para mim isso não é consolo. Adoraria que minha filha crescesse em câmera lenta, para eu curtir e captar em 8k cada momentinho ao lado dela. Tô no segundo ano e já deu para perceber que passa rápido de verdade. Mas mesmo dentro da janela do “rápido”, o tempo — na verdade, a falta dele — tem potencial para fazer muito estrago.

Se eu não tenho tempo para estar regularmente comigo mesma, conversar com as minhas ideias, usufruir da minha companhia, quem mais vai fazer isso por mim? Ninguém. Se isso te parece uma grande egotrip, você nunca foi furtado da sua privacidade até na hora de ir ao banheiro. Não precisa acreditar em mim, acredite na natureza: o ser humano nasce só, e existe um bom motivo para isso.

Um pouquinho de silêncio, um pouquinho de ócio e um pouquinho de solidão - pedindo licença para usar essa palavra tabu, tão injustiçada, tadinha. É disso que a mãe precisa. É disso que a mente gosta para deixar a criatividade brilhar. Tá cheio de artigos e estudos sobre o tema. Depois do nascimento do seu primeiro filho, a jornalista Manoush Zomorodi comprou um smartphone para voltar a trabalhar de maneira remota — ainda em 2007, no começo da internet móvel. Entre cuidar de um bebê e o estímulo constante de responder mensagens de trabalho no telefone, ela percebeu que sua cabeça simplesmente não conseguia mais ter novas ideias. Eventualmente, alguns anos mais tarde, esse insight deu origem ao projeto “Bored and Brilliant”, que também virou livro.

Quando falo de criatividade neste contexto, não estou me referindo apenas a trabalho, embora sirva também para isso. Claro que a criatividade é alimentada por tudo: conflito, dificuldade, tensão social. Mas tô falando daquela criatividade raiz, a mente funcionando tipo uma árvore grandona mandando uma fotossíntese, tipo um bicho solto e já alimentado, tranquilão, de rolê na mata, livre de amarras, contemplando um pouquinho de nada, sentindo a brisa, deixando espaço onde tem sempre um monte de carga mental. Sentiu a leveza? Não existe psicotrópico que reproduza isso aqui.

Essa criatividade é a faísca da identidade. É o que alimenta quem somos e quem queremos ser. Ah, mas cabeça vazia é oficina do diabo. Não sei quem foi o capitalista safado que disse isso. A ciência diz o contrário e, baseado em um conhecimento bem mais empírico e bem menos comprometido, eu diria que cabeça vazia, com uma certa frequência, é um direito e uma necessidade. É preciso abrir essa brechinha para conseguir ser uma pessoa no mundo. Aquele espacinho livre que serve para ter novas ideias, enxergar outras perspectivas, ou mesmo para dar chance pro capeta chegar junto e soprar o ouvido, mandando a gente fazer uma coisa errada. Puxar o rabo do cachorro bravo. Jogar marimba na rede elétrica. Enviar meme pro ex. Agir em cima de um impulso que não deveria. Ou será que deveria? Só fazendo para descobrir, né?

Tempo é como a gente goza do maior privilégio que tem: estar vivo. E esse tempinho de cabeça livre, me parece, também é o único antídoto possível para combater um fantasma que assombra 9 entre 9 das mães de bebês e crianças pequenas com quem eu convivo: o medo de deixar de existir.

Defenda seu tempo, Luiza Voll, uma mulher incrível que tenho a sorte de conhecer, tá repetindo esse mantra há anos nas redes sociais. Ser mãe me obrigou de maneira definitiva a engrossar o coro e a perceber que defender seu tempo também é defender o seu direito de continuar existindo como uma pessoa no mundo.

*Daniele Marques é publicitária e sócia da Bold, onde lidera o departamento criação. Em 2021, foi reconhecida pelo Festival El Ojo como a melhor criativa de agência independente no Brasil. Mãe de menina, escreve sobre pessoas e sentimentos por teimosia e vocação. Resolveu se especializar em direitos humanos e responsabilidade social para entender como as empresas podem fazer sua parte para estar cada vez mais conectadas às necessidades humanas e para ajudar a construir um mundo mais igualitário

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