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O novo doar: a confiança como base do investimento social

A doação livre carrega em si a consciência sobre a importância de fortalecer institucionalmente a organização apoiada e todo o ecossistema das ONGs

Modelo de ONGs centralizadoras falhou no Brasil (Angelina Bambina/Getty Images)
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Bússola

Publicado em 3 de maio de 2022 às 14h50.

Última atualização em 5 de maio de 2022 às 12h13.

Por Joice Toyota e Erika Sanchez Saez*

Diante das várias agendas urgentes que se agravaram nos últimos anos, tanto ambientais quanto sociais, está claro que a sociedade civil organizada é fundamental na construção de soluções em parceria com governos, empresas, filantropia e investidores sociais. O protagonismo desse papel inclui a necessidade de organizações desenvolvidas e fortalecidas institucionalmente.

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Para isso, as organizações da sociedade civil (OSCs) ou ONGs, como são mais conhecidas, precisam de recursos que não sejam exclusivamente dirigidos a programas e projetos e de um novo paradigma de relação com o doador, pautado em confiança, corresponsabilidade e colaboração. É necessário que haja uma relação de parceria com as ONGs na construção de soluções e não “prestadoras de serviços” de baixo custo.

A Mackenzie R. Scott é um símbolo dessa mudança em nível global. Eleita pela Forbes a mulher mais poderosa do mundo, em 2021, é reconhecida pelos altos valores doados, e, principalmente, por realizar doações irrestritas ou livres, dando liberdade para a organização decidir onde e como utilizar os recursos, de acordo com a estratégia. Assim, Mackenzie Scott tem levantado a bandeira sobre a importância de fortalecer institucionalmente as organizações, em primeiro lugar. O processo de seleção é longo, criterioso e o acompanhamento é, sobretudo, qualitativo, com a realização de conversas anuais com as organizações apoiadas.

Em 2022, pela primeira vez, as doações da Mackenzie Scott contemplaram organizações brasileiras. O Vetor Brasil foi a primeira anunciada de uma lista de 15 que receberam doações da filantropa, recentemente. Dentre os pontos avaliados na seleção, e que são essenciais na construção de confiança, estão: 1. avaliação da estratégia da ONG; 2. identificação da capacidade da organização para resolver problemas reais; 3. avaliação da equipe; e 4. compreensão do que a organização executaria com um orçamento superior ao que possui. Esse último quesito revela a existência ou não de uma estratégia de longo prazo.

Desde a constituição de 1988, fruto do processo de redemocratização do Brasil pós-ditadura militar, a sociedade civil ganhou espaço para exercer seu papel na busca de soluções para resolver questões coletivas. O investimento social também se fortaleceu, protagonizado por empresas, institutos ou fundações empresariais, familiares e independentes. Tornou-se mais estratégico e incorporou, aos poucos, visão de longo prazo e objetivos de impacto mais claros na sua atuação.

A boa intenção, no entanto, construiu um modelo centralizador e controlador em que ONGs, muitas vezes, assumem papel de prestadoras de serviço ou recebem doações totalmente dirigidas a um projeto, a fim de maximizar o investimento na ponta e garantir que se alcançarão os indicadores de impacto.

Mas o modelo não deu certo. Não garante impacto nem fortalece a sociedade civil organizada. A doação baseada em projetos é cada vez mais questionada por contemplar apenas o custo direto para tirá-los do papel ou fazê-los acontecer. Porém, não cobre os custos indiretos, como planejamento estratégico, governança, comunicação e captação de recursos, que garantem a sustentabilidade de longo prazo da organização e o desenvolvimento institucional. Sem esse comprometimento com a infraestrutura necessária, os recursos atravessam a organização sem fortalecê-la.

São as ONGs menores e de base comunitária, a maioria das aproximadamente 236 mil organizações cadastradas no Brasil (IBGE), as que mais sofrem com o modelo. A pandemia escancarou o tamanho do desafio. Apesar da mobilização histórica da sociedade civil em conseguir recursos e fazê-los chegar até a ponta, gerando impacto real, o ano de 2020 terminou com ONGs exaustas e com o risco de fechar portas, como apontam dados do estudo "Impacto da covid-19 nas OSCs brasileiras". Imagine que uma parte importante desses recursos chegou para comprar alimentos, mas não cobriu o pagamento de quem faria as entregas, de quem faria o cadastro das famílias beneficiadas, nem a logística necessária para a sua distribuição, muito menos a formação de uma equipe para gerenciar o projeto.

Um estudo da Bridgespan, organização sem fins lucrativos dedicada a questões de justiça social, aponta que o modelo de doação para projeto é um desafio também para as organizações que mais mobilizam recursos nos Estados Unidos. Das quase 300 organizações analisadas, mais da metade (53%) apresentava déficits orçamentários frequentes ou crônicos e 30 delas não tinham reservas financeiras. Outro estudo da Bridgespan intitulado “Momentum for Change: Ending the Nonprofit Starvation Cycle” aponta que os custos indiretos de uma ONG geralmente representam mais de 20% do valor destinado a um projeto, podendo chegar a 60%, dependendo da natureza da organização.

A doação livre carrega em si a consciência sobre a importância de fortalecer institucionalmente a organização apoiada e, por consequência, todo o ecossistema das ONGs. É um modelo que enxerga as organizações como desenvolvedoras de inteligência social em vez de executoras de projetos. Promove a construção de um ciclo de abundância e não de escassez.

Para a transição rumo a esse novo paradigma de doação no Brasil, a confiança precisa estar na base do investimento social. Do lado das organizações da sociedade civil, este novo paradigma torna ainda mais necessária a promoção da confiança a partir da transparência das suas ações, do desenvolvimento institucional e da definição de estratégias de impacto claras, para solucionar desafios reais.

Do lado do investidor social, famílias e empresas, principalmente, é preciso humildade, escuta, desburocratização, empatia, flexibilidade e muito menos controle para o exercício da construção conjunta. De ambos os lados, é necessária a construção da crença, profunda e verdadeira, de que investir em desenvolvimento institucional é investir na missão da organização. O novo doar depende desse movimento simultâneo, de sair dos papéis tradicionais para construir relações transformadoras.

*Joice Toyota é cofundadora e co-CEO do Vetor Brasil, e Erika Sanchez Saez é diretora executiva do Instituto ACP e integrante do Comitê Coordenador do Movimento por uma Cultura de Doação

 

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