Como será a realidade do transporte público no pós-pandemia?
Transportes públicos já estavam sendo afetados anteriormente à crise de covid-19, mas a nova realidade intensificou os desafios
Bússola
Publicado em 13 de setembro de 2021 às 18h20.
Por Marcelo Bandeira de Mello*
Enfrentando uma queda contínua de passageiros desde 2015 e pressionado por uma matriz de custos que subia mais do que a inflação, o setor de transportes públicos já se via em uma crise profunda antes mesmo do início da pandemia. Atingiu-se um ponto onde a tarifa se mostrava cara para o orçamento do trabalhador, mas insuficiente para a remuneração adequada dos provedores do serviço. Sem a participação efetiva do ente estatal para subsidiar parte do custo da operação, a solução tradicional de revisão tarifária acabava por afastar ainda mais clientes do sistema, gerando um ciclo vicioso de aumento de tarifa, seguido de queda de demanda, que pressionava para novo aumento de tarifa. Era o anúncio do fim paulatino e dramático do setor.
Com a chegada da pandemia ao Brasil, ao fim do primeiro trimestre de 2020, um novo desafio de proporções até então inimagináveis se impunha ao já combalido setor. Como garantir um distanciamento social minimamente compatível com a crise sanitária imposta pela covid-19, quando a concepção do serviço, que tem como um dos princípios a modicidade tarifária, impõe uma alta ocupação do veículo, planejado para operar no horário de pico com até seis passageiros por metro quadrado?
Importante destacar que a própria infraestrutura do transporte metropolitano da RMR (Região Metropolitana do Recife), que foi concebida de maneira a possibilitar múltiplos deslocamentos com o pagamento de uma única tarifa, por meio da utilização dos terminais de integração, acaba por gerar pontos de aglomeração naturais, por concentrar um grande número de linhas em um mesmo terminal, a fim de proporcionar as conexões entre as rotas.
Aliada a este contexto, a brutal queda de demanda observada em razão das necessárias medidas restritivas de circulação afetou diretamente a receita do setor, que chegou a observar uma redução de até 80% do número de passageiros, redundando em uma receita insuficiente sequer para bancar os custos fixos das operadoras. A solução de reduzir o serviço a fim de compatibilizar o custo operacional à receita residual do sistema não se mostrava possível, ante à necessidade de diminuir a ocupação dos veículos, em virtude das imposições sanitárias.
O ano de 2020 foi, portanto, de reinvenção do setor. Avaliações diárias do planejamento operacional eram feitas em conjunto com o órgão gestor. Algumas linhas foram suprimidas, outras reforçadas. Ajustes da frota eram realizados de maneira a sempre oferecer o serviço em proporção superior à demanda remanescente, mas não era suficiente. O setor era pautado diariamente pela mídia como “vilão” da pandemia, sem que fosse dada oportunidade sequer de demonstrar os desafios enfrentados por operadores e gestores públicos.
Estava evidente que aquele modelo de financiamento do sistema que já vinha sendo criticado por especialistas há anos, baseado exclusivamente na tarifa pública paga pelo passageiro, precisava ser revisto de forma urgente. Era necessária uma mudança conceitual importante, que possibilitasse às empresas operadoras a remuneração pelo custo do serviço, bem como permitisse ao poder público definir o nível de serviço a ser executado, de acordo com as necessidades dos passageiros, ponderando, inclusive, os impactos orçamentários.
A partir de abril de 2021, com a implementação de mecanismos que possibilitaram, ainda que de forma parcial, um mínimo de equilíbrio na relação custo-receita do setor, a sociedade observou a ampliação significativa da oferta de serviço e a consequente melhora do nível de serviço (que ainda carece de evolução, é verdade).
Outro ponto importante a ser enfrentado era a concentração da demanda nos horários de pico. Tradicionalmente, as faixas horárias das 5h às 8h e das 16h às 19h30 concentram o maior volume de passageiros transportados ao longo do dia. Ocorre que, com as restrições de funcionamento de serviços não essenciais e a significativa redução dos deslocamentos eletivos (lazer, compras, consultas médicas de rotina) e escolares (a maior parte da rede pública ainda segue sem aulas presenciais), a demanda de passageiros, embora reduzida, tornou-se ainda mais concentrada. Era necessário um novo pacto social que possibilitasse um escalonamento do horário de funcionamento das atividades econômicas, como forma de reduzir a pressão sobre o sistema de transporte nos horários de pico.
Fui coautor de uma nota técnica que definia um modelo matemático capaz de simular a demanda do serviço de transporte por faixa horária em função do horário de funcionamento das atividades. Este debate teve uma importância relevante na decisão do poder público de estabelecer balizas nos horários de funcionamento das atividades não essenciais quando da reabertura das atividades. Importante registrar que procuramos diversos setores da atividade econômica para buscar consensos na definição do referido escalonamento, o que nem sempre foi possível.
E aqui reside o segundo ponto importante da necessária evolução do transporte público. Trata-se de uma construção coletiva, que impacta diretamente no modelo de cidade em que pretendemos viver. Colaborar para a construção de um transporte público eficiente e de qualidade é dever de todo cidadão e o primeiro passo é compreender seus desafios, limites e necessidades.
Por isso, a partir dos problemas que atingem o transporte público e dos impactos que a crise da covid-19 proporcionou ao setor, é imprescindível pensarmos no modelo de cidade e como promover a locomoção dos cidadãos na RMR. Nesta projeção para um futuro próximo, deve-se reconhecer que o conceito de cidade inteligente é incompatível com vias congestionadas pela falta de prioridade do transporte público e o estímulo à mobilidade individual motorizada.
Ao pensar na mobilidade no pós-pandemia, é importante também registrar que o transporte coletivo precisa avançar em qualidade. Melhorar o nível de conforto, diminuir a ocupação dos veículos e incrementar a segurança pública. É necessário ainda disponibilizar ferramentas tecnológicas que possibilitem maior informação e conveniência ao passageiro, possibilitando, por meio de smartphone, realizar compra da passagem e obter a previsão de chegada dos veículos.
Investimentos no mobiliário urbano, fornecendo mais informações sobre as linhas que circulam em cada parada e seus itinerários, bem como melhoria na iluminação e qualidade das calçadas a fim de prover mais segurança e conforto para os passageiros são iniciativas fundamentais para recuperar os clientes que ao longo dos anos abandonaram o sistema.
Por fim, pensar em soluções de integração com modais não motorizados, estimulando a sustentabilidade e a conveniência do passageiro que poderia usar os sistemas de bikes e patinetes de forma complementar ao transporte público, mostra-se como uma medida convergente com as tendências de mobilidade do mundo.
Todas estas propostas de solução, observando um custo tarifário compatível com a renda da população, são iniciativas determinantes na decisão do passageiro de utilizar o serviço, sendo a atuação do poder público fundamental para sua efetiva implantação.
Temos, portanto, que, para além da crise, o setor passou a enxergar com esperança a sensibilização do poder público quanto à importância do transporte coletivo enquanto política social. A destinação de orçamento público para investimento na melhoria contínua da qualidade do serviço é uma meta a ser perseguida por toda a sociedade, mesmo após o fim da pandemia.
*Marcelo Bandeira de Melloé conselheiro de Inovação da NTU (Associação Nacional das Empresas de Transportes Urbanos), diretor de inovação da Urbana-PE e vice-presidente da Subcomissão de Mobilidade Urbana da OAB-PE
Siga a Bússola nas redes:Instagram|LinkedIn|Twitter|Facebook|Youtube