Acordo com Microsoft é jogada de mestre da Netflix
Se desde o excelente filme de Steven Spielberg, roteiros que elegem tubarões como vilões viraram um gênero, a Guerra do Streaming parece um deles
Bússola
Publicado em 7 de setembro de 2022 às 21h00.
Por Omarson Costa*
Você curte um filme catástrofe? A Netflix tem vários em seu catálogo e parecia bem “No Olho do Furacão” depois que anunciou pela primeira vez a perda de usuários nos resultados do primeiro trimestre de 2022. Começaram a comparar a empresa com a Blockbuster, numa espécie de “Dia Depois do Amanhã”. É claro que a “Força da Natureza” do mercado não livraria a empresa de Reed Hastings de enfrentar a dura competição que se formou nos últimos anos.
Quando traçou sua estratégia de crescer muito rápido para não ter chance de ser alcançado, Hastings talvez tenha subestimado a força do modelo de streaming, ao qual todos os grandes players aderiram nos últimos anos, alguns com bastante barulho e muito mais fôlego no caixa, notadamente o Disney Plus. Esse mês, os canais Disney somados (Disney Plus, ESPN+ e Hulu) ultrapassaram a Netflix em número de assinantes no mundo — 221 milhões a 220,6 milhões.
A revista Vulture consultou gente de mercado em Hollywood no começo de julho e ler a opinião deles dava a impressão de que a Netflix teria se tornado uma espécie de Walking Dead depois que a magia do crescimento perpétuo se perdeu. Uma das respostas curiosas foi: "Fora Stranger Things, ali está uma bagunça". Para mim, há um ponta de wishful thinking de adversários em todas essas avaliações.
É verdade que os últimos meses não foram os mais fáceis da história da empresa, com perda de assinantes, lucratividade menor, obrigada a fazer demissões, perdendo títulos importantes do seu catálogo como The Office e Criminal Minds que migraram para os canais dos produtores originais do conteúdo. Ambas faziam parte da lista de programas mais assistidos da plataforma em 2020 e 2021 nos EUA, com tempo de exibição superior mesmo a grandes hits de conteúdo próprio como Squid Game e Ozark.
A empresa, no entanto, não ficou paralisada. Nos últimos 5 anos, o conteúdo licenciado no catálogo da Netflix encolheu 30% na contramão da variação positiva de assinantes — da ordem de 10%. O conteúdo original da casa nesse mesmo período cresceu mais que fermento — passando de cerca de 300 para 2.100 títulos. Pode-se argumentar que a maioria não é páreo para os sucessos que deixaram a plataforma. Mas não foi só essa a reação visível.
Os executivos admitiram que estavam implementando uma política de redução do compartilhamento de senhas para casas diferentes, numa tentativa de turbinar a receita de assinantes. Segundo cálculos de um analista do Citi, cerca de US$ 6 bilhões. Mais importante que isso foi o anúncio de que a plataforma enfim iria aderir ao modelo AVOD (conteúdo sob demanda com anúncio). E nesse ponto, a jogada parece extremamente promissora.
Aliança estratégica
Desde que a empresa admitiu a adoção do modelo AVOD, restava dúvida sobre como ela desenvolveria sua plataforma e o parceiro mais óbvio, o Google, não seria totalmente agnóstico por ser dono do YouTube, a mais bem sucedida empreitada do modelo.
Exatamente por isso, a parceria com a Microsoft, revelada recentemente, deixou uma impressão positiva, de jogada bem feita no xadrez da Guerra do Streaming. Primeiro porque a Microsoft não é uma competidora direta da Netflix e tem uma capilaridade internacional que outros parceiros não poderiam oferecer.
A Microsoft tem experiência nessa área de anúncios, capacidade que está sendo turbinada desde que a Big Tech comprou a Xandr da AT&T. A Xandr possui uma solução de primeira linha, larga escala e orientada a dados para publicidade. O acordo garante um melhor posicionamento para a empresa de Seattle nos mercados de TV e publicidade.
Parafraseando a analista de mercado Marion Ranchet, a Microsoft não é tão avançada quanto o Google, o que dá à Netflix a possibilidade de aprender e construir em parceria uma estrutura de anúncios, sem se tornar totalmente dependente de um fornecedor.
Vale lembrar ainda que vídeo premium é a maior linha de crescimento de receita em publicidade digital segundo todas as estimativas. Além disso, a Microsoft consegue entrar de sola na batalha da TV Conectada, que é uma front importante da Guerra do Streaming — a luta pelo controle da porta de entrada do consumidor para o conteúdo. A TV da Microsoft teria conteúdo Netflix garantido em seu cardápio.
Na medida em que a Microsoft se aprofunda no mercado publicitário, vai oferecer espaço a anunciantes em suas plataformas de game para computador e console. Games, aliás, foi outra área que a Netflix começou a prestar atenção. A parceria entre as duas daria mais tração para esse segmento, sem dúvida.
Não seria demais imaginar que se essa parceria der muito certo que mais para frente às duas empresas discutam um M&A.
Enquanto finalizo esse texto, Microsoft e Netflix estão conversando com agências de publicidade e produtores de conteúdo para definir quanto e onde os anúncios vão ser veiculados. Embora não exista um anúncio formal, o plano da plataforma é exibir 4 minutos de anúncio a cada hora de programação, volume substancialmente menor que os canais a cabo, que exibem entre 15 e 20 minutos de anúncios por hora.
Ela não deve ter problemas em veicular anúncios nos filmes antigos licenciados por outros estúdios. No conteúdo mais novo, a coisa muda um pouco de figura. Aparentemente, não haverá também interrupção nos filmes originais.
Convergência
Acho que Reed Hastings tem um ponto válido quando vaticina que a TV linear e a cabo vão se tornar irrelevantes em cerca de cinco a dez anos. Ele fala isso com base em pesquisa da Nielsen que atribuiu à Netflix um share de audiência total nos EUA de 7,7% porém julho, contra 6,6% um ano antes.
A previsão de Hastings coincide mais ou menos com o fim do contrato recém-renovado das grande redes ABC/ESPN, CBS e NBC com as transmissões da NFL, a liga de futebol americano, em 2031. A diferença foi a Amazon conseguir ficar com o pacote do futebol da quinta à noite (que corresponde à nossa tradição de futebol às quartas). O fato de o Prime ter esse direito significa uma provável mudança de paradigma de negociação das ligas esportivas.
Analistas concordam que a única forma de a TV linear morrer é perdendo os direitos de transmissão de esporte ao vivo, que é um dos grandes motores de audiência e publicidade dos grandes canais.
Some-se a isso a lenta adoção pelos canais de TV abertos nos EUA do novo padrão de tecnologia, chamado de ATSC 3.0 que promete levar ao público uma imagem de 4K e com resolução de 120 FPS, além de outras funcionalidades de forma gratuita. Atualmente, os usuários da Netflix pagam um extra para assistir sua programação em 4K, por exemplo.
Aqui no Brasil, o padrão da TV digital, chamado de SBTVD, utiliza a tecnologia japonesa, a ISDB-T e também está presente em quase toda a América do Sul, Costa Rica, Nicarágua e Filipinas. O modelo adaptado aqui (ISDB-Tb) venceu o debate por conta de sua performance melhor em ambiente interno, ou seja, quando a antena é interna e não externa.
Já Evan Shapiro, especialista nesse mercado de mídia, tem uma visão cáustica a respeito do posicionamento da Netflix, por considerar que a empresa está apostando fichas demais em publicidade. “Ser líder de mercado e esperar que ninguém chegue perto de você não é modelo de negócio, é campanha de marketing para acionistas”, escreveu em seu Linkedin.
Filme de tubarão
Se desde o excelente filme de Steven Spielberg, roteiros que elegem tubarões como vilões viraram um gênero, a Guerra do Streaming parece um deles. A Netflix sofreu uns cortes meio feios e o sangue na água atiçou um monte de tubarões nadando com muita sede para devorar a audiência. Aparentemente, havia menos “carne fresca” para a concorrência.
Agora em julho, os resultados do 2 trimestre vieram sensivelmente menos graves que o esperado. A perda de assinantes não foi de 2 milhões, mas de 970 mil assinantes. O faturamento foi de US$ 7,97 bi, contra a estimativa de US$ 8,04 bi.
O mercado recebeu o relatório de forma generosa, no geral, dando crédito de que o quadro atual não pode ser facilmente comparado com anos anteriores, quando havia concorrência menor e fatores econômicos não contavam — como a inflação nos EUA e em boa parte do mundo.
Fato é que os analistas avaliam que há razões para seguir apostando na Netflix. Por ainda ser o canal individual líder de assinantes no mundo e em horas assistidas de programação nos EUA, ultrapassando a TV a cabo pela primeira vez na história. A ação se recuperou um pouco da queda no primeiro semestre.
Se mantiver os custos sob controle e conseguir emplacar conteúdo de boa qualidade que mantenha sua audiência estável, não vejo esse quadro catastrófico que foi pintado há alguns meses, especialmente depois da aliança com a Microsoft, que facilita a entrada da empresa no lucrativo mercado de games, avaliado em US$ 160 bilhões, e também no modelo AVOD.
Os planos de assinatura com anúncio devem ficar entre US$ 7 e US$ 9, o que representa uma queda de preço em relação aos US$ 15,49 mensais. A estratégia é mais camarada que a da Disney+, que vai manter o preço da assinatura básica com anúncios e criar um valor maior para a versão livre de propaganda.
Quem se dará melhor na busca pro ARPU (sigla em inglês para receita média por usuário)? A Netflix teve uma escalada de valor considerável na última década e acredita que esse novo segmento de assinantes deve acrescentar US$ 8,5 bilhões anuais a sua receita global.
Aparentemente ainda é muito cedo para associar o destino da Netflix ao da Blockbuster, a empresa para qual Reed Hastings chegou a oferecer seu negócio de streaming lá no começo. A Guerra do Streaming parece ainda (bem) longe de terminar.
*Omarson Costa é executivo C-level e atuou na América Latina desde startups até empresas da Fortune 500 nas áreas de telecomunicações, internet, mídia, entretenimento, varejo e finanças
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