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A vacina e a guilhotina, quer venha em forma de lâmina ou de voto

Continuar em campanha durante o longo velório nacional pode ser fatal para alguns políticos e enterrar a democracia como forma viável de organização

A história ensina a não brigar com a ciência, seja na área da saúde, seja na seara econômica (Governo do Estado de São Paulo/Flickr)
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André Martins

Publicado em 25 de março de 2021 às 19h53.

Última atualização em 25 de março de 2021 às 21h32.

O rei francês Luís XV morreu aos 64 anos de varíola, doença que matava aos milhares nos anos de 1700, sem respeitar a cor do sangue, se azul ou vermelho. Na tentativa de evitar a reedição do destino do avô, o jovem monarca Luís XVI foi inoculado com o vírus, por um fio que fora passado na pústula de uma criança que estava resistindo à doença.

Um defensor da técnica da “vacinação” daquela época era Voltaire, um iluminista que fazia tremer catedrais e castelos com sua verve incontrolável e filosofia questionadora.

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O resultado foi positivo, e o rei da França foi imunizado. Lançaram até um penteado para comemorar. Maria Antonieta usou o "pouf à l’inoculation", em que se decorava a cabeleira com uma serpente, símbolo do deus da medicina Esculápio, além de um sol em homenagem ao rei e um ramo de oliveira para representar a vitória sobre a praga.

As luzes da ciência ainda eram fracas, com muito empirismo, erros de conceitos ou na compreensão de vários fenômenos. O Iluminismo entretanto começava a abrir uma avenida maior, como as largas ruas que marcariam Paris pelos séculos seguintes, depois de Bonaparte e Hausmann.

Era a ciência ser impondo à doença, às crendices, à ignorância.

A França daquele período também ajudou a inocular no mundo a democracia, ao apoiar com recursos financeiros e humanos a guerra pela independência das 13 colônias do Norte da América que desejavam se livrar do jugo da Inglaterra. Esta era uma inimiga figadal da França. Para ver a colônia vencer a disputa valia até mesmo mandar soldados e militares em apoio aos agricultores daquele fim de mundo.

Sabemos hoje que, pouco depois de século, os Estados Unidos emergiram economicamente, passaram a Inglaterra, a França e muitos outros países, disseminando os valores democráticos pelo velho mundo. Valores antigos, a Revolução Francesa já havia colocado no patíbulo.

A história ensina a não brigar com a ciência, seja na área da saúde, seja na seara econômica. Os problemas financeiros da corte de Luiz XVI, os boatos sobre a dissipação de Versalhes, a fome do campesinato custaram ao rei, que escapou da varíola, a cabeça. A guilhotina foi obra de homens revoltados com o governo.

Hoje a ferramenta é menos cortante: o voto. Mas quem é derrotado passa a ser praticamente um morto. Vide Donald Trump. Perdeu as eleições depois de não oferecer respostas adequadas à pandemia de coronavírus. Mesmo com um Anthony Fauci ao seu lado, a ciência não indicou o caminho facilmente. Voltaire talvez visse Trump como um Pangloss sádico…

A inflexão do presidente Jair Bolsonaro talvez seja a tentativa de se imunizar do destino de Trump em 2022. Ao inocular a vacina em seu discurso, pode mudar o jogo que vinha se desenhando contrário nos últimos dias, principalmente após a limpeza feita pelo ministro Edson Fachin na ficha judicial de Lula.

E isso poderá acontecer a Bolsonaro porque o povo vê o governo federal comprando, distribuindo e vacinando a maioria das pessoas. O Sistema Único de Saúde congrega o governo federal, estados e municípios. Não existe verticalidade, mas horizontalidade na forma como se enfrenta a pandemia.

Para o bem de todos, e para a função primordial de salvar vidas, há necessidade de unir esforços, diminuir os atritos e focar no enfrentamento do vírus (não nos adversários da vez). Continuar no embate é abrir uma cova, não para mais um brasileiro que se tornou vítima, mas para enterrar o Estado e a democracia como formas viáveis de organização mínima da vida em sociedade. Continuar em campanha durante esse longo velório nacional pode ser fatal para alguns políticos.

O pescoço que vai hoje para a guilhotina é colegiado, grupal, coletivo. O vírus que mata poderia significar uma certa redenção de crenças em valores humanos, por mais que ecoe Camus e sua Peste. Hoje há poucos caminhos para o cidadão a não ser buscar formas de se aplacar a distância imposta nas relações interpessoais, principalmente pela solidariedade, compreensão e diálogo. Sem isso, na vida e nas relações sociais, o vírus terá vencido. E não teremos nem um conhecimento para oferecer em legado, nem herdaremos no conjunto algum aprimoramento na convivência institucional, após toda essa tragédia que levou milhões pelo mundo, milhares aqui… até agora.

Melhor portanto que se unam para enfrentar o verdadeiro inimigo da vez, o coronavírus.

* Márcio de Freitas é analista Político da FSB Comunicação

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