Ricupero, da FAAP: Solução para carne é outra
Para ex-ministro, não será possível "levar a sério" a isenção das superintendências de fiscalização enquanto forem preenchidas por indicação política
Raphael Martins
Publicado em 24 de março de 2017 às 19h53.
Última atualização em 22 de junho de 2017 às 18h06.
A Operação Carne Fraca gerou um entre o governo e a Polícia Federal – e um ponto dessa disputa incomoda o diplomata Rubens Ricupero: nada tem levado a crer que o ambiente de corrupção entre fiscais deve mudar. “Dizem que o sistema de fiscalização sanitária do Ministério da Agricultura é sólido e reconhecido. Como levar a sério a afirmação se todas as superintendências estaduais do setor de sanidade animal são preenchidas por indicação política?”, diz.
Ricupero fez carreira nas embaixadas, chefiando as unidades brasileiras em Genebra, Washington e Roma, até ser convocado para o cargo de Ministro do Meio Ambiente e ministro da Fazenda durante o governo Itamar Franco. Foi professor do Instituto Rio Branco e da Universidade de Brasília e, atualmente, é diretor da Faculdade de Economia da Fundação Armando Álvares Penteado (FAAP). Em entrevista a EXAME Hoje, ele comenta as possíveis saídas para o problema e fala como o país pode recuperar a imagem no mercado.
A Operação Carne Fraca gerou um entre o governo e a Polícia Federal – e um ponto dessa disputa incomoda o diplomata Rubens Ricupero: nada tem levado a crer que o ambiente de corrupção entre fiscais deve mudar. “Dizem que o sistema de fiscalização sanitária do Ministério da Agricultura é sólido e reconhecido. Como levar a sério a afirmação se todas as superintendências estaduais do setor de sanidade animal são preenchidas por indicação política?”, diz.
Ricupero fez carreira nas embaixadas, chefiando as unidades brasileiras em Genebra, Washington e Roma, até ser convocado para o cargo de Ministro do Meio Ambiente e ministro da Fazenda durante o governo Itamar Franco. Foi professor do Instituto Rio Branco e da Universidade de Brasília e, atualmente, é diretor da Faculdade de Economia da Fundação Armando Álvares Penteado (FAAP). Em entrevista a EXAME Hoje, ele comenta as possíveis saídas para o problema e fala como o país pode recuperar a imagem no mercado.
O que é pior: a corrupção dos agentes públicos ou a comunicação falha da Polícia Federal, que prejudicou o mercado de carnes?
Em termos imediatos, a comunicação produziu um efeito nocivo enorme, que será difícil de desfazer. No longo prazo, para desfazer a má-impressão, é preciso atacar o ambiente de corrupção no sistema para passar confiança. Portanto, os dois aspectos estão presentes e não é possível falar de um esquecendo o outro.
O governo agiu rápido para apontar os erros da polícia e minimizar o problema. A estratégia funcionou?
O governo fez bem ao apontar que o número de unidades afetadas é pequena, que houve equívocos cometidos nos anúncios, como o caso do papelão. Foi convincente, mas isso trata de apenas parte do problema. A questão mais grave é a fiscalização – e o governo não tem uma boa estratégia para driblar a questão. Dizem que o sistema de fiscalização sanitária do Ministério da Agricultura é sólido e reconhecido. Como levar a sério a afirmação se todas as superintendências estaduais do setor de sanidade animal são preenchidas por indicação política? Nenhuma é preenchida por funcionário de carreira, escolhidos por critérios técnicos e científicos. A maior parte é PMDB e PP, que foram dois dos partidos mais desmoralizados do país no quesito corrupção. Esse aspecto bastaria para que um país estrangeiro não aceitasse reabrir a exportação de carnes. Se eu fosse responsável pela decisão em um país nessa matéria, só a politização do sistema me bastaria para recusar a abertura da importação. O governo nesse particular não fez nada.
A Polícia Federal precisou informar, numa nota assinada junto com o Ministério da Agricultura, que a intenção era investigar os esquemas de corrupção, não levantar dúvidas sobre o sistema sanitário. O fato de a instituição ter voltado atrás afeta ainda mais a credibilidade da operação?
A Polícia Federal de fato errou. É indesculpável a tendência ao espetáculo. Isso não pode ser tolerado de jeito nenhum. Uma coisa é o desejo de fazer justiça, outra é o estardalhaço. Voltar atrás foi melhor. Quando se comete um erro, é melhor admitir. Mas não me parece que voltaram atrás contra as acusações básicas. O delegado encarregado do inquérito afirma que [tudo o que foi divulgado] é uma pequena parte do que se apurou. O fiscal que fez a delação afirma que apenas 1% veio à tona. Então não sei até que ponto podem estar exagerando, mas isso levanta suspeitas de que há mais.
De que forma é possível combater o problema?
Por meio de transparência. Em lugar nenhum são publicadas as multas e autuações aplicadas às empresas, o que indica uma possibilidade de corrupção. Ao tornar pública a autuação, não é possível apagá-la na base da propina. Sem transparência o risco é enorme. Tudo indica que a estratégia é defender a todo custo o sistema brasileiro de fiscalização. É um sistema de fiscalização politizado na base dos partidos mais corruptos que existem no Brasil, e a desconfiança é natural e legítima. Se o sistema está de fato comprometido além de redenções possíveis, há a possibilidade de passar a certificar a qualidade das carnes por meio de organizações privadas, como acontece com a produção orgânica.
Dá para reverter o dano?
É possível recuperar parcialmente. Como o volume de exportação é muito grande, é difícil que a curto prazo o Brasil possa ser substituído no mercado. Mas há danos irreversíveis. A situação antes do escândalo já não era muito boa. Embora as pessoas aqui se iludam, a reputação da carne brasileira no exterior — exceto a carne de frango, que é um caso à parte — nunca foi grande coisa. Como diplomata, morei muitos anos em Genebra. Lá, a carne brasileira tem um preço bem mais baixo que a carne argentina. Não é coisa de 10%-15%, é muito mais. Sempre foi considerada de qualidade inferior. Essa ideia tinha a ver com o tipo de animais de onde a carne era oriunda. Acrescentando esse aspecto, será necessário fazer uma campanha muito prolongada e perseverante, com muitos recursos, para levar uma boa imagem. Mas repito: não havendo mudança da fiscalização, não será possível ser convincente. Governos e associações industriais mostram revolta contra a polícia pelos prejuízos, mas não mostram zelo em eliminar a causa.
Até onde a corrupção pode prejudicar a economia do Brasil? Dá para pensar em retomada com um cenário tão sistemático de corrupção?
O sistema político brasileiro está liquidando a economia. E a economia está liquidando o país. É um sistema permissivo que funciona na base de transferência de recurso e vai inviabilizando os mais diferentes setores. As empreiteiras já foram. No último leilão [dos aeroportos], nenhuma brasileira participou. Se, por um lado, é um momento difícil economicamente, não é uma coisa de se alegrar. As empresas europeias que ganharam o leilão, ainda que muito credenciadas, vão remeter lucros para fora e não contribuirão para a área produtiva do Brasil. Ficar feliz com o fim das empreiteiras é dar um tiro no pé. O Brasil tinha grandes empresas de construção, agora não tem mais. Logo liquidaremos as empresas de carne. É preciso haver uma reação. Enquanto não nos livrarmos disso, o país não sai do lugar. O futuro esperado para o comércio exterior era o de usar a vocação para agroindústria para agregar valor, passando a exportar não apenas carne in natura, mas processados e pratos preparados. Mas isso depende de uma sofisticada tecnologia e de condições mínimas de fiscalização, seriedade e investimento. Se não resolvermos esses problemas, seremos exportadores marginais, de produtos primários, e constantemente contestados no exterior. Nunca sairemos desses voos de galinha, em que o crescimento, quando ocorre, dura dois ou três anos. É necessária uma reforma política severa.
O Congresso está quase passando a lista fechada. Como o senhor avalia essa proposta?
A lista fechada deve ser abandonada. Sem partidos organizados, com ideologia clara e diretórios seguros, é contraproducente. Ela existe em países com partidos estruturados, em que o diretório escolhe os representantes na base do mérito. Aqui, seria dar um direito a manipuladores escolherem quem bem entendem para formar a chapa. A reforma política precisa ser radical, com cláusula de barreira muito severa [em que os candidatos precisam atingir um número mínimo de votos para se eleger]. Precisamos ter um número pequeno de partidos. É preciso ter uma legislação que reduza o custo de campanhas. Também é prudente proibir coligações nas eleições proporcionais, para deputados e vereadores. São todas regras adotáveis. Isso reduziria demais a possibilidade de corrupção, porque reduziria a necessidade de financiamento de campanhas.
Quão distantes estamos desse cenário?
Prazos, eu não consigo estimar. Se o sistema como um todo não for capaz de aprovar as reformas políticas, caminha para a autodestruição. Temos, como na República Velha, um longo período de declínio. E estamos em fase avançada, com uma economia que não cresce de maneira satisfatória e agora colhe retrocessos. Seguindo assim, haverá uma ruptura. Como será essa ruptura, não sei. Acho pouco provável que seja como um golpe militar, mas pode ser algo como 1930. É o que diz a história.
As reformas que estão em curso devem ajudar a melhorar a economia?
O teto não alivia o déficit fiscal; vale não pelos efeitos, mas pela reafirmação da responsabilidade fiscal. A previdência é absolutamente indispensável. Não podemos ter um sistema generosíssimo como temos, sobretudo para os que têm salários altos. Funcionários públicos, militares, juízes, promotores, parlamentares. É preciso uma idade mínima, porque a expectativa de vida tem aumentado e é preciso corrigir abusos de pensões. Mas as exceções que o governo tem apresentado comprovam que não há muito apetite para fazer o necessário. Já a reforma trabalhista, do ponto de vista das regras, é anacrônica. Conta-se nos dedos de uma mão os países com justiça trabalhista separada. É um sistema rígido em relação às normas trabalhistas, que protegem quem tem emprego, mas não quem não consegue entrar no mercado de trabalho. Não estimula a criação de vagas. A lista de reformas necessárias é extensa. Não dá para fazer tudo ao mesmo tempo, mas deve-se caminhar com isso.