Tanques nas ruas do Rio de Janeiro, durante a ditadura (Mondadori/Getty Images)
Agência Brasil
Publicado em 11 de maio de 2018 às 22h10.
A presidente da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, a procuradora regional da República Eugênia Gonzaga, disse hoje (11) que o Brasil ainda não "passou a limpo" o período da ditadura militar no país, que vigorou entre 1964 e 1985. Ao comentar o documento confidencial da CIA (Serviço de Inteligência dos Estados Unidos) que revela que o ex-presidente Ernesto Geisel (1974-1979) autorizou a execução sumária de militantes opositores ao regime, ela disse também que o país ainda vive em "total negação" do período. "Tudo isso é dolorido e ao mesmo tempo vergonhoso, porque demonstra que o país não passou a limpo esse período. A gente ainda vive em uma situação de total negação desse período, de ocultação", disse Eugênia.
"É uma comprovação bastante forte que a tortura, a política de terrorismo de estado, era realmente autorizada pelo mais alto escalão, não era simplesmente um exagero da 'turma do porão', como eles chamam os agentes da repressão", disse a procuradora. "São provas importantes de que realmente havia uma política de Estado de exterminação dessas possíveis oposições, uma política de também acobertar a verdade do período. Por exemplo, a morte do delegado Sérgio Fleury não é explicada até hoje, mas nitidamente ali é uma queima de arquivo. Então temos, no período do general Geisel, uma prova de que ele realmente autorizava que essas pessoas emblemáticas fossem exterminadas", acrescentou.
A procuradora conta que a revelação do documento da CIA comprova a tese da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos e dos próprios familiares, o que não é possível ser comprovado a partir de documentos do governo brasileiro, pois estes foram destruídos: "Os arquivos brasileiros foram destruídos ou estão sob a guarda de particulares que não revelam. O que temos são depoimentos e a estratégia do Exército que demonstra que os agentes não agem sob vontade própria, sempre agem por um comando superior."
O professor de Sociologia na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) Marcelo Ridenti, destacou que pesquisadores do tema, há muito tempo, já trabalhavam com a ideia de que o governo Geisel tinha conhecimento e envolvimento com o chamado "porão da ditadura", no entanto, não havia provas, apenas depoimentos. "O que o governo dele [de Geisel] fez foi, de certa maneira, reestabelecer o alto comando, o próprio presidente da República ter o comando de tudo que se passava no país inclusive na esfera repressiva. O que não quer dizer que deixou de haver tortura ou que deixou de haver execuções, mas elas teriam que ser claramente colocadas dentro de uma hierarquia. Poderia executar, mas teria que ter o aval do governo", explicou.
Para Ridenti, Geisel havia constatado que setores do aparelho repressivo estavam ganhando força independentemente da hierarquia militar e seu objetivo, ao definir que o alto comando do Exército deveria aprovar as execuções, era manter a disciplina nas Forças Armadas. "Já estava institucionalizada [a tortura e a execução] de certa maneira, era uma política de Estado, mas que estava fugindo do controle da hierarquia militar. Isso para ele não interessava pela própria sobrevivência da instituição das forças armadas que depende da hierarquia. Esse que era o eixo para ele, não era a defesa dos direitos humanos", avaliou.
O coordenador de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil em São Paulo, Martim de Almeida Sampaio, chamou a revelação do memorando da CIA de "bombástica". Para o especialista, o documento abre uma porta importante na história brasileira, que contradiz a versão oficial de que a violência e os assassinatos praticados pelos órgãos de repressão daquela época estavam fora do controle do alto comando do regime militar.
Sampaio traçou um paralelo com os dias atuais, em que uma parcela da sociedade passou a manifestar apoio ao retorno da ditadura. Para ele, a principal explicação para isso é a falta de informação: "algumas pessoas defendem a ditadura por oportunismo, porque lá se deram bem, ganharam dinheiro, exerceram poder. A maioria, os jovens e outras pessoas, por ignorância mesmo", declarou. "Criou-se a aura da honestidade desses presidentes [do período militar], de que a ditadura era honesta, que houve um excesso ou outro, mas não era a política. Na verdade, esse documento é bombástico, derruba toda essa tese e implica diretamente os ex-presidentes na execução dos opositores", disse o especialista.
Para a coordenadora de pesquisa da Anistia Internacional, Renata Neder, o documento é mais uma prova dos graves crimes e violações de direitos humanos cometidos durante o regime militar, como tortura, desaparecimentos forçados e execuções extrajudiciais. Ela destaca que inúmeros casos já estão amplamente documentados e denunciados por sobreviventes, familiares de vítimas, organizações de direitos humanos, pesquisadores e Comissões da Verdade que se instauraram no país.
Renata defende que esses crimes sejam levados a julgamento e avalia como "um entrave" a legislação brasileira que anistiou os agentes do Estado que cometeram violações aos direitos humanos. "Em 2014, a Anistia Internacional fez uma campanha reivindicando que a legislação brasileira fosse alterada para permitir que os casos pudessem ser levados à Justiça. Não basta verdade e reparação, é essencial garantir Justiça e responsabilização dos perpetradores das violações e do próprio Estado brasileiro. A impunidade dos crimes cometidos pelo Estado no passado alimenta a violência do Estado no presente".
*Com informações de Léo Rodrigues, repórter da Agência Brasil