Lula, Moro e Bolsonaro (Reuters/ Agência Brasil/Flickr Presidência/Montagem/Exame)
João Pedro Caleiro
Publicado em 31 de julho de 2019 às 08h00.
Última atualização em 31 de julho de 2019 às 08h00.
Por Matthew Stephenson, professor na Escola de Direito de Harvard
Há quase dois meses, o site The Intercept Brasil começou a publicar uma série de reportagens com base no vazamento de mensagens privadas entre os procuradores da Operação Lava Jato e entre procuradores e o então juiz Sergio Moro.
De acordo com o Intercept e outros que reportaram as revelações (apelidadas de “Vaza Jato” nas redes sociais), as mensagens corroboram a narrativa de longa data do PT de que os procuradores da Lava Jato e o juiz Moro foram ideologicamente tendenciosos contra o partido e especialmente contra Lula, que como resultado teria tido negado o seu direito a um julgamento justo.
Eu considero que a evidência de má conduta é menos clara do que sugerem o Intercept e outros comentaristas, e considero a alegação de viés ideológico especialmente frágil, mas não há dúvida de que as revelações mancharam a reputação do juiz Moro e também a credibilidade dos procuradores da Lava Jato (injusta e excessivamente, na minha visão).
O senso comum parece ser de que as histórias da Vaza Jato prejudicam não apenas Moro, mas também o governo Bolsonaro e que seus maiores beneficiados são os partidos de esquerda (o PT e seus aliados), principalmente porque as reportagens da Vaza Jato mostram (supostamente) que os apoiadores do PT sempre estiveram corretos em alegar uma conspiração da direita contra Lula.
Mas isso está errado. Na verdade, eu me preocupo que o maior beneficiado da Vaza Jato possa ser Bolsonaro e que o maior perdedor possa ser a esquerda brasileira. Eu me “preocupo” porque vejo Bolsonaro como um extremista perigoso, aspirante a autoritário e propenso a piorar o problema da corrupção no Brasil.
Mas minhas visões políticas pessoais não são importantes e as menciono por motivos de transparência, da mesma forma que fui cuidadoso em divulgar minha relação profissional cordial com Deltan Dallagnol. Meu objetivo aqui é explicar porque eu acho que os vazamentos da Vaza Jato provavelmente ajudam Bolsonaro enquanto prejudicam a esquerda.
Há quatro razões para isso:
Primeiro, as histórias da Vaza Jato prejudicam a situação não de Bolsonaro e de seu governo, mas especificamente a de Sergio Moro, e isso poderia remover uma das poucas restrições às tendências mais corruptas e contra a lei de Bolsonaro.
Eu acredito que Moro cometeu um erro ao aceitar o cargo de ministro no governo Bolsonaro porque me preocupava com a possibilidade de isso prejudicar a credibilidade da Lava Jato e ajudar a legitimar Bolsonaro. Mas aqueles que defendiam a decisão do então juiz tinham alguns argumentos razoáveis.
Como ministro, Moro poderia pressionar por reformas importantes para o sistema judiciário e conter alguns dos excessos de Bolsonaro nesta área. Moro também poderia ajudar a garantir que Bolsonaro e seu círculo não interferissem em investigações que pudessem atingi-los ou constrangê-los.
Bolsonaro precisava dele, e se Moro renunciasse – e especialmente se renunciasse de forma “barulhenta” por causa de alguma questão de princípios –, isso seria politicamente danoso para Bolsonaro. Graças à Vaza Jato, qualquer influência que Moro tinha sobre Bolsonaro se foi. Ao invés de Bolsonaro precisar de Moro, agora é Moro quem precisa de Bolsonaro – e ambos sabem disso.
Se Bolsonaro quiser que Moro saia, pode facilmente engendrar sua queda e ao mesmo tempo continuar alegando publicamente que o apoia. E se fosse Moro a renunciar, mesmo por uma questão de princípios, isso não teria o mesmo peso do que antes da Vaza Jato.
Segundo, amplificar a narrativa de que as investigações anticorrupção são politicamente motivadas ajuda mais a Bolsonaro do que ao PT e outros partidos de esquerda agora. É verdade que o PT e seus aliados estão desproporcionalmente representados entre os acusados da Lava Jato. Mas é mais provável que essa sobrerrepresentação se dê porque o PT era o partido no poder durante a maior parte do período relevante. Agora Bolsonaro e seus aliados estão no poder, e minha visão é que é altamente provável que eles também estarão, ou já estiveram, envolvidos em grave corrupção.
Então o que acontece se os procuradores forem atrás dos aliados de Bolsonaro e juízes os condenarem? Podemos presumir que Bolsonaro e sua equipe os denunciarão como inimigos políticos. É mais difícil fazer uma acusação assim pegar em uma sociedade onde a confiança nas instituições de justiça é alta.
As reportagens da Vaza Jato, ao minarem a confiança nas instituições legais e na imparcialidade e profissionalismo das investigações anticorrupção, tornaram mais fácil para que políticos no futuro ataquem investigações anticorrupção dessa forma. E pelo menos no futuro próximo, estes políticos serão mais provavelmente da direita do que da esquerda.
Terceiro, as reportagens da Vaza Jato e a reação a elas parecem estar contribuindo para o enquadramento da anticorrupção como uma “questão da direita”. Isso não é inevitável – na verdade é um pouco surpreendente, já que tradicionalmente a esquerda brasileira é que era mais preocupada com a corrupção na política brasileira. A explicação, até onde vejo, é o desejo da esquerda de defender Lula a todo custo.
Lula é uma figura excepcionalmente importante, mas apenas os apoiadores mais aguerridos do PT tentariam negar hoje sem titubear que o PT sob Lula e Dilma foi seriamente corrupto. A evidência sugere que Lula esteve pessoalmente envolvido em corrupção, ou que pelo menos deve ter tomado conhecimento ou apoiado tacitamente o que estava acontecendo (caso contrário, ele era o líder de partido mais desconectado e facilmente enganado da história).
Vamos supor, para fins de argumentação, que Lula não se envolveu pessoalmente em corrupção, que a evidência contra ele era fraca e que ele não deveria ter sido preso. Lula e seus defensores poderiam ter lidado com a situação de duas maneiras:
Opção 1: Eles poderiam ter focado suas críticas nas acusações específicas levantadas contra ele, mas feito isso se abstendo de atacar a legitimidade das instituições de Justiça ou os motivos pessoais dos procuradores e juízes envolvidos.
Opção 2: Eles poderiam lançar um ataque de terra arrasada na Operação Lava Jato, contestando não apenas as decisões dos procuradores e juízes, mas também sua integridade, tentando minar a legitimidade de toda a operação. Eles escolheram a opção 2.
De fato, é notável, para o observador externo, o quanto o debate sobre a Lava Jato é dominado por discussões sobre Lula. Ao insistir na narrativa simplificada de que a Lava Jato não é nada além de uma vingança motivada por ideologia, a esquerda brasileira se posicionou contra a Lava Jato de forma geral e não como críticos de um punhado de processos. E isso provavelmente é um erro político, porque enquanto Lula individualmente segue muito popular, a Lava Jato também é muito popular.
A Vaza Jato parece ter atiçado as chamas dos anti-Lava Jato na esquerda e com isso está contribuindo ainda mais para a habilidade de Bolsonaro, e da direita brasileira, de “capturar” para si a questão anticorrupção.
Politicamente, a esquerda se daria melhor desenvolvendo e promovendo sua própria mensagem sobre como lutar contra a corrupção, e também expondo e denunciando tanto a corrupção individual no governo Bolsonaro quanto as várias formas com que essa administração pode estar silenciosamente retrocedendo em medidas anticorrupção importantes.
Quarto, as reportagens da Vaza Jato parecem estar contribuindo para o que soa para mim, como um observador externo que tende à esquerda, como uma obsessão por Lula na esquerda brasileira. Eu entendo que Lula foi uma inspiração para muitos, e que há um entendimento amplo de que suas políticas públicas ajudaram a tirar milhões da pobreza.
E eu entendo a frustração que muitos brasileiros – especialmente aqueles mais vulneráveis às políticas desumanas e à retórica perversa da administração Bolsonaro – sentem em relação ao fato de que foi a desqualificação de Lula para a eleição de 2018 que tornou a vitória de Bolsonaro possível. Mas Lula não é presidente desde 2010 e provavelmente nunca será novamente.
A fixação com Lula parece estar inibindo a esquerda brasileira de cultivar uma nova geração de líderes e formular um novo conjunto de políticas. A força política da esquerda não pode estar ancorada, no longo prazo, no culto de personalidade de um homem, especialmente um homem com mais de 70 anos. Mas a grande quantidade de eleitores que migraram de Lula a Bolsonaro sugere que a esquerda ainda não conseguiu construir uma “marca” atraente fora do culto da personalidade de Lula.
Para lutar contra um demagogo como Bolsonaro, a oposição precisa manter sua atenção nos vários erros e abusos da sua administração e oferecer uma visão alternativa convincente que ressoe entre os eleitores. Mas a Vaza Jato teve o efeito de manter a conversa fixada nas injustiças supostamente feitas a Lula. Talvez os apoiadores de Lula tenham uma reclamação válida. Mas como uma questão de política pragmática, Bolsonaro é um dos maiores beneficiados de qualquer coisa que mantenha a oposição focada no passado e em Lula e não no futuro.
Antes de encerrar, quero deixar algo claro: jornalistas investigativos têm o direito e a obrigação de publicar material que julguem que o público tem o direito de saber, sem levar em consideração quem a reportagem vai ajudar ou prejudicar politicamente.
Nesse caso, acredito que as revelações da Vaza Jato podem se revelar uma dádiva para Bolsonaro e uma armadilha para a esquerda.
Editado e traduzido por João Pedro Caleiro com base em artigo publicado originalmente no Global Anticorruption Blog