Brasil

Metade dos médicos relata pressão para prescrever cloroquina

OMS suspendeu testes com cloroquina e hidroxicloroquina porque os resultados apontavam que elas “não reduziam a mortalidade dos pacientes”

 (Foto/AFP)

(Foto/AFP)

EC

Estadão Conteúdo

Publicado em 26 de julho de 2020 às 16h20.

Última atualização em 26 de julho de 2020 às 20h37.

Embora pesquisas não apontem benefícios no uso de cloroquina e hidroxicloroquina em pacientes com covid-19, o debate político em torno dos medicamentos - capitaneado, muitas vezes, pelo presidente Jair Bolsonaro - coloca médicos na linha de frente do atendimento sob grande pressão.

Segundo pesquisa da Associação Paulista de Medicina, 48,9% de quase 2 mil profissionais entrevistados em todo o País relataram pressões de pacientes ou parentes para prescrever remédios sem comprovação científica. Nas redes sociais, também há relatos de intimidação.

O presidente da Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI), Clóvis Arns, chegou a ser ameaçado de morte nas redes sociais e foi alvo de notícias falsas após a instituição publicar recomendação contra a cloroquina para a covid-19, no dia 17.

“Notícias falsas e informações sensacionalistas ou sem comprovação técnica são inimigos que os médicos enfrentam simultaneamente à covid-19”, diz o estudo da Associação Paulista de Medicina (APM).

“Pediram a morte do presidente da SBI nas redes sociais, minha família ficou apavorada, não queria que eu fosse trabalhar”, contou Arns. “Por outro lado, tivemos várias manifestações de apoio de diversas sociedades médicas e do Senado Federal. Queremos ficar longe dessa briga ideológica, nosso objetivo é discutir cientificamente apenas. Fazemos medicina baseada em evidências.”

A intensivista Bruna Lordão, de 32 anos, pediu demissão do Hospital Geral de Vila Penteado, na zona norte de São Paulo, onde trabalhava, após ser chamada de “assassina” por parentes de um paciente, a quem ela se recusou a prescrever cloroquina. “As pessoas não querem saber de pesquisa cientifica”, conta a médica. “Querem saber o que o Bolsonaro tomou, o que o (presidente americano Donald) Trump disse”, contou.

“Foram certamente os piores momentos da minha carreira", disse ela, médica há cinco anos. “Quando você trabalha num pronto-socorro, numa UTI, vai ter muitas baixas, com certeza. Mas nada igual à UTI covid-19: são três, quatro óbitos por dia. Muita gente morrendo, num mesmo lugar, da mesma coisa”, acrescentou Bruna.

A gota d’água para o pedido de demissão, no entanto, veio por causa da cloroquina, quando ela foi dar a notícia da morte de um paciente à família. “Sei que é um momento complicado. Entendo a agonia e a angústia das pessoas, mas começaram a me chamar de assassina porque eu não tinha usado cloroquina no tratamento”, disse.

“As pessoas não entendem que não há benefício no uso da cloroquina porque o presidente fala que tem benefício. E acreditam piamente nisso. Ninguém entende que a gente não usa justamente porque não tem benefício” afirmou ela, que trabalhou com pacientes da covid-19 desde o início da pandemia.

Testes suspensos

A Organização Mundial de Saúde (OMS) suspendeu há um mês testes com cloroquina e hidroxicloroquina porque todos os resultados até então apontavam que elas “não reduziam a mortalidade dos pacientes”.

Outro grande estudo, o Recovery, foi conduzido pelo Reino Unido em mais de 11 mil pacientes. Também em junho, seus principais coordenadores informaram que “não há efeito benéfico” no uso da hidroxicloroquina.

Na última segunda-feira, estudo feito em 55 hospitais brasileiros e publicado na revista Science confirmou que a cloroquina tampouco funciona em quadros leves e moderados de covid-19. Vários países, incluindo os Estados Unidos, já interromperam o uso experimental dos remédios e suspenderam ensaios clínicos em razão da arritmia cardíaca que o medicamento pode provocar em pacientes graves. Há duas semanas, artigo na revista médica Lancet voltou a apontar riscos para o coração com os remédios, originalmente contra lúpus e malária.

Na mesma semana, porém, Bolsonaro informou ter covid-19 e foi às redes sociais anunciar que tomava cloroquina, exibindo embalagens do remédio, como numa propaganda. “Aos que torcem contra a hidroxicloroquina, mas não apresentam alternativas, lamento informar que estou muito bem com seu uso e, com a graça de Deus, viverei ainda por muito tempo”, escreveu ele no Twitter.

A politização desse debate, que deveria ser exclusivamente científico, não é só retórica. Levou à queda de dois ministros na pandemia (os médicos Luiz Henrique Mandetta e Nelson Teich, contrários ao uso do remédio) e tem consequências diretas no atendimento de pacientes, como mostra o levantamento da APM. O próprio Ministério da Saúde passou a recomendar seu uso.

“Pelo menos 69,2% (dos entrevistados) dizem que (notícias falsas ou sensacionalistas) interferem negativamente, pois levam algumas pessoas a minimizar (ou negar) o problema e, assim, a não observar as recomendações de isolamento social e higiene, ou a não procurar os serviços de saúde”, destaca o estudo sa APM. “Outros 48,9% falam que, em virtude das fake news, pacientes/familiares pressionam por tratamentos sem comprovação científica.”

Prescrição de fora

Chefe do Laboratório de Investigação Pulmonar da Universidade Federal do Rio (UFRJ), Patrícia Rocco diz que muitos pacientes já chegam ao hospital tomando cloroquina prescrita por médicos particulares.

“Fico muito preocupada com três coisas: pessoas estarem determinando medicamentos na base do “eu acho” e “na minha experiência”, pessoas ficarem criticando estudos clínicos e médicos indicando remédios (sem comprovação) nas redes sociais”, destacou Patrícia, integrante da Academia Nacional de Medicina.

Algumas prefeituras têm distribuído kits covid, que incluem hidroxicloroquina e cloroquina, sob justificativa de prevenir ou tratar a covid-19. Outro medicamento comum nestes pacotes é a ivermectina, vermífugo que também não tem eficácia comprovada contra o novo coronavírus.

Interior de SP

Em Sertãozinho (SP), quatro infectologistas deixaram o comitê municipal contra o coronavírus esta semana, após a prefeitura adotar a cloroquina no tratamento. No pedido de desligamento, alegam que, além de não haver comprovação do benefício do remédio, há evidências de efeitos adversos, até com mortes. Em nota, a prefeitura informou seguir protocolo do Ministério da Saúde.

A polêmica começou após o prefeito José Alberto Gimenez (sem partido) anunciar, na terça-feira, que iria incluir na rede pública de saúde municipal cloroquina e azitromicina (antibiótico muitas vezes usado com a cloroquina nesses tratamentos contra a covid-19) para pacientes da doença.

Pioneira no uso do medicamento, a prefeitura de Porto Feliz (SP) adotou a hidroxicloroquina associada outros medicamentos desde o início da pandemia. Até o dia 23, a cidade tinha 561 casos confirmados e 10 óbitos. Cidades vizinhas do mesmo porte que não usam a cloroquina têm números parecidos. Capivari teve 608 casos e 9 mortes.

Intimidação parte até dos colegas

Chefe da infectologia da Universidade Estadual Paulista (Unesp), o médico Alexandre Naime Barbosa afirma que por parte de pacientes e familiares ele costuma ter questionamentos. Mas que pressões costumam vir de outros médicos.

"A pressão parte de profissionais que não estão na linha de frente do combate, são professores ou médicos mais velhos, que não atendem covid-19 e defendem a cloroquina nas redes sociais”, conta Barbosa. “Em geral, eles fazem isso por dois motivos: ou por ingenuidade, porque não estudam, não sabem avaliar um artigo científico, ou por má-fé mesmo; há colegas que têm um engajamento político importante nessa linha.”

Cronologia

4 de fevereiro
Pesquisadores do Instituto de Virologia de Wuhan, na China, publicam na Nature um artigo cujo título é "Remdesivir e cloroquina inibem o novo coronavírus in vitro".

20 de março
Pesquisadores franceses, entre eles Didier Raoult, divulgam o estudo com resultados positivos com hidroxicloroquina e azitromicina como tratamento contra a covid-19.

21 de março
O presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, usa suas redes sociais para pedir o uso de hidroxicloroquina e azitromicina no combate ao coronavírus.

23 de março
OMS critica uso de remédios não testados contra coronavírus e lança o Solidarity Trial, um teste internacional para conseguir evidências mais robustas e de qualidade em relação à cloroquina, hidroxicloroquina, remdesivir (usado no tratamento do ebola), lopinavir/ritonavir (HIV) e o interferon beta-1a (usado com esclerose múltipla).

25 de maio
OMS suspende temporariamente o uso do medicamento em ensaio clínico internacional após um estudo feito com mais de 96 mil pacientes ser publicado na revista científica The Lancet, afirmando que o uso da cloroquina ou da hidroxicloroquina em pacientes com o novo coronavírus, mesmo quando associados a outros antibióticos, aumentava o risco de morte e de arritmia cardíaca.

2 de junho
Revista Lancet emite um 'manifesto de preocupação' sobre o estudo, pois especialistas levantaram 'sérias dúvidas científicas' sobre a metodologia utilizada.

3 de junho
OMS anuncia retomada dos testes com hidroxicloroquina no ensaio clínico Solidarity.

17 de junho
OMS suspende definitivamente os estudos com o cloroquina e hidroxicloroquina, pois os medicamentos não apresentaram benefícios contra a covid-19.

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

Acompanhe tudo sobre:CloroquinaCoronavírusMédicos

Mais de Brasil

Governo Lula é aprovado por 35% e reprovado por 34%, diz pesquisa Datafolha

Ministro diz que enviou a Haddad pedido de movimentos sociais para ajuste em pacote fiscal

Prisão de Braga Netto não foi uma surpresa para ninguém, diz Múcio

YouTube remove vídeos com informações falsas sobre saúde de Lula após AGU questionar publicações