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Primeira restrição a armas no Brasil é de 1603. Como a lei mudou

Flexibilização da posse de armas acompanha descrença na segurança pública dos últimos anos e inverte direção histórica do país

EXÉRCITO PATRULHA RUAS: desde 1831, a fabricação de armas ou pólvora só é permitida com autorização da autoridade policial / Paulo Whitaker/Reuters (Paulo Whitaker/Reuters)
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Da Redação

Publicado em 22 de janeiro de 2019 às 14h14.

Última atualização em 23 de janeiro de 2019 às 17h05.

O presidente Jair Bolsonaro assinou, logo nos primeiros dias de governo, um decreto que flexibiliza a posse de armas de fogo no Brasil e cumpriu uma das grandes promessas de sua campanha. Contrário ao histórico da legislação brasileira, o líder do PSL foi o primeiro presidente a tomar medidas que facilitam o uso de armas, e não o restringem.

Segundo estudos de Márcio Santos Aleixo e Guilherme Antônio Behr reunidos em uma publicação da Revista Brasileira de Criminalística, a primeira restrição bélica do país vigorou de 1603 a 1830. Nas “Ordenações e leis do Reino de Portugal”, era infrator quem fosse encontrado com arma de chumbo ou similares.

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Em 1831, já com o Brasil independente de Portugal, o uso de armas só era permitido para oficiais de justiça e para pessoas autorizadas pelos juízes de paz. Depois da proclamação da República, no ano de 1890, os crimes passaram a ter como circunstância agravante a “superioridade em armas”. Além disso, a fabricação de armas ou pólvora e o uso de armas ofensivas só eram permitidos com licença da autoridade policial.

As duas próximas mudanças na legislação aconteceram durante a Era Vargas. Em 1934, um decreto colocou o Exército Brasileiro como órgão de controle administrativo da fabricação e comercialização de armas, munições e explosivos. Já em 1941, também por um decreto, pela primeira vez o simples porte de armas, ou seja, andar com uma arma de fogo fora de casa, passou a ser um crime no país.

A legislação quanto ao tema passou a ser mais rígida no ano de 1997, no governo de Fernando Henrique Cardoso. A lei 9.437 institui o Sistema Nacional de Armas (SINARM), órgão que passou a ter incumbências como cadastrar as apreensões de armas de fogo, inclusive as vinculadas a procedimentos policiais e judiciais. Além disso, a nova lei exigia alguns requisitos para o porte de armas. Passou a ser necessária a comprovação de idoneidade, comportamento social produtivo, efetiva necessidade, capacidade técnica e aptidão psicológica para o manuseio de armas de fogo.

No ano de 2003, no governo do ex-presidente Lula, a lei 10.826, ou Estatuto do Desarmamento, entrou em vigor para reduzir ainda mais a circulação de armas e evitar o porte ilegal e contrabando. Além de dar mais atribuições ao SINARM, o Estatuto passou a permitir a posse de armas apenas para formação profissional e por comprovada necessidade do cumprimento das atividades profissionais.

Em 2005, ainda no governo Lula, um referendo sobre proibir o comércio de armas de fogo aconteceu no país e 63% dos brasileiros votaram não para a proibição. Com isso, o artigo 35 do Estatuto do Desarmamento, que dizia: “é proibida a comercialização de arma de fogo e munição em todo o território nacional, salvo para as entidades previstas no art. 6º desta Lei”, não entrou em vigor.

Posse facilitada

Com o decreto assinado por Jair Bolsonaro nos primeiros dias de seu mandato em 2019, o posse de armas foi flexibilizado porque a “comprovada necessidade” para uso de armas de fogo, antes não especificada no Estatuto do Desarmamento, foi descrita e abarcou um percentual importante da população.

Ficou permitida a posse de armas para moradores de áreas urbanas de estados em que os índices anuais de homicídio superam a taxa de 10 a cada 100 mil habitantes, além de áreas rurais, o que abarca todo o território nacional. Além disso, a posse também foi liberada para servidores públicos que exercem funções com poder de polícia e proprietários de estabelecimentos comerciais ou industriais. O decreto também aumentou a validade de registro de armas passou de 5 para 10 anos.

A medida, então, foi a primeira a flexibilizar e facilitar a posse de armas no Brasil nas últimas décadas. Para o promotor Fábio Bechara, professor do Mackenzie e especialista em segurança pública, entretanto, a medida não foi tão transformadora. Ele acredita que o decreto apenas trouxe uma objetividade maior ao que já era determinado no Estatuto de 2003. Segundo o promotor, quanto mais regulada for a posse de armas, melhor o controle do governo.

“A quantidade de armas ilegais que circulam, sejam elas comercializadas ilegalmente aqui ou vindas de outros países, por si só não é um assunto que está relacionado com o discurso de ampliação de porte. Talvez esse seja o grande cuidado que se deva tomar, pra que não se frustre a expectativa das pessoas”, diz Bechara.

Mundo afora, o controle sobre a circulação ilegal de armas de fogo tende a ser o maior indicador de eficiência no combate ao crime. O México, um dos países com maior índice de homicídios do planeta, com 19,3 mortes por 100 mil habitantes, tem apenas uma loja e armas em todo o país, segundo levantamento da revista Veja. Mas a circulação no mercado negro é intensa, o que turbina a violência urbana. Os Estados Unidos, com mais de 60 mil lojas de armas, tem 5,4 homicídios a cada 100 mil habitantes. É um índice baixo se comparado com Brasil e México, mas muito acima de outros países desenvolvidos, como Canadá (1,7 morte por 100 mil) ou Reino Unido (1,2 morte por 100 mil). Em Singapura, onde a proibição é total para civis, essa taxa é de 0,3.

Para a psicóloga Maria Cristina Pellini, a sociedade está cercada midiaticamente por situações de violência, o que acaba gerando uma comoção de autopreservação. Para ela, portanto, essa é uma questão a ser resolvida com um processo a longo prazo, e não com medidas emergenciais. “Toda esta situação não pode ser resolvida simplesmente com medidas públicas ou privadas baseadas em processos repressivos. Temos que resolver a violência educando as pessoas, repensando em valores morais e combatendo a desigualdade social”.

Maria Cristina também relembra o que Ricardo Primi, também psicólogo, disse em um evento sobre avaliação psicológica para o registro e o porte de armas organizado por ela em 2007. Ele explicou que as armas têm uma íntima relação com a emoção primária, ou experiência de raiva, ansiedade, desejo, inveja e outros sentimentos. Existe, então, um perigo na relação entre o portador de armas com o sentimento de raiva. As consequências do aumento do acesso à posse de armas devem ser conhecidas no Brasil nos próximos anos.

Vamos, como sociedade, conhecer na prática os riscos de se inverter uma longa história de maior controle de acesso num dos países mais violentos do mundo.

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