Celene Salomão, à esquerda, junto a outros integrantes do grupo “40 Dias Pela Vida SP”, pedem pelo fim do aborto em frente ao hospital (Bruno Fonseca/Agência Pública)
Clara Cerioni
Publicado em 26 de outubro de 2019 às 08h00.
Última atualização em 28 de outubro de 2019 às 16h41.
Na manhã da última segunda-feira (21), a assistente de produção J., de 31 anos, que pediu para não ser identificada, foi ao Hospital Pérola Byington, no centro de São Paulo, para uma consulta psiquiátrica. Vítima de violência sexual, há cerca de 20 dias ela frequenta a unidade estadual, considerada centro de referência na assistência a mulheres que sofreram estupro.
Antes de entrar no prédio, se deparou novamente com algo que há dias a assombrava: na praça do outro lado da rua havia uma tenda de manifestantes “pró-vida”, como se autodenominam os ativistas contrários ao aborto, cheia de placas condenando a interrupção da gravidez, fotos de bebês, além de uma mesa com imagens de santos católicos e miniaturas fetos.
J. os viu todas as vezes em que esteve ali para atendimento porque, desde 25 de setembro, o grupo católico “40 dias pela vida SP” monta diariamente sua tenda em frente à entrada do hospital, com o objetivo de persuadir mulheres que foram estupradas, que estão em gestações de fetos anencéfalos ou em gravidez com risco de vida a não abortar – únicos casos em que o aborto é permitido no Brasil.
Com origem nos Estados Unidos e filiais em diversos países, a campanha também tem como alvo profissionais que atendem essas mulheres, como médicos, enfermeiros e psicólogos.
“Minha família é muito religiosa, muito cristã, isso mexe muito comigo inconscientemente. Fico tendo pesadelos com as crianças da foto, até porque não saíram os resultados dos exames, então ainda não sei se a violência resultou em gravidez”, diz J. Por isso, ela decidiu se aproximar e iniciar uma conversa.
“Você conhece o significado de empatia?”, conta ter perguntado a uma das mulheres. “Sim, com todos os seres humanos”, teria respondido a integrante do grupo. “Posso te contar a minha história então?”, questionou J. Ela relataria que, no fim de setembro, durante uma viagem ao Rio de Janeiro, foi levada a um cativeiro e estuprada enquanto estava inconsciente.
Acordou num quarto escuro e só foi libertada quando um homem apareceu e lhe entregou R$ 5 para que fosse embora. Caminhou bastante até tomar um ônibus e parar na casa de uma amiga, a quem pediu ajuda.
Mas ela afirma não ter conseguido contar sua história, porque antes disso sua interlocutora teria começado a xingá-la e um homem teria surgido de dentro da tenda e a imobilizado com um mata-leão. Enquanto isso, segundo J., uma segunda mulher lhe dava tapas no rosto, peito e braços, e a agressão era filmada com um celular pela manifestante com quem havia conversado no início. A polícia logo chegou e levou o caso à delegacia, onde foi registrado um boletim de ocorrência por lesão corporal.
O documento traz também a versão de Celene Salomão de Carvalho, de 54 anos, autointitulada coordenadora do movimento e única do grupo a ir para a delegacia – as outras pessoas envolvidas não estão relacionadas no B.O. À polícia, Celene disse que era J., “muito alterada e nervosa”, quem gritava “que aquelas pessoas eram a favor do estupro e apoiavam o estuprador”, além de tentar “tirar a tenda do local”. Relatou ainda que J. a teria agredido com tapas no rosto e chutes na perna.
Essa, entretanto, não é a versão da advogada Adriana Gragnani, que passava de carro pelo local exatamente no momento em que tudo aconteceu. “Abandonei meu carro quando vi o homem que tinha saído da barraca dando um ‘pescoção’ na J., enforcando ela. Comecei a gritar ‘larga, larga e chama a polícia’”, conta.
Só quando a polícia chegou foi que Adriana conversou com J. e tomou conhecimento da sua história. Ela acabou acompanhando a jovem à delegacia e a ajudou com os trâmites legais, como a realização do exame de corpo de delito. “Entendo que esse grupo está fazendo um assédio aos profissionais do Pérola Byington e às mulheres que, em razão de um crime perverso que é o estupro, têm que recorrer ao atendimento”, afirma Adriana.
Na tarde de quarta-feira (23), a Agência Pública tentou conversar pessoalmente com os integrantes do “40 dias pela vida SP”. Celene, outras três mulheres e um homem com colar de crucifixo em volta do pescoço conversavam sentados debaixo da tenda. Havia cartazes pendurados com mensagens como “a vida começa na concepção”.
A maior das faixas, instalada em frente à barraca, trazia o nome do grupo acompanhado pelo slogan “rezando pelo fim do aborto”. Havia ainda, atrás desse grande banner, uma mesa plástica que servia como uma espécie de altar, sobre a qual estavam imagens de Nossa Senhora e outros santos, um crucifixo dourado e miniaturas de fetos.
Perguntamos a Celene desde quando estão ali, até quando pretendem ficar e quais são seus objetivos. “Nós só rezamos pelo fim do aborto”, ela responde. “Mas vocês são contra o aborto legal?”, questionamos, em referência aos três casos em que a interrupção da gravidez é permitida pela lei brasileira.
“Já leu a Constituição brasileira? É só ler lá, [a vida] é desde a concepção. Isso aí é decisão do STF”, retrucou, citando decisão do Supremo Tribunal Federal que em 2012 descriminalizou o abortamento de fetos anencéfalos. Muito antes disso, no entanto, o Código Penal já previa as outras duas exceções.
Depois dessa pergunta, Celene e as outras três mulheres se ajoelharam com terços nas mãos e rezaram sucessivas Ave Marias. Insistimos na entrevista, mas ela se recusou a falar e pediu que parássemos, ou então chamaria a polícia.
Embora tenha dito que não fala com a imprensa, a coordenadora do grupo foi entrevistada no início do mês pelo portal de notícias católico ACI Digital e afirmou que “o principal motivo dos 40 Dias pela Vida são orações pedindo a conversão dos médicos, enfermeiros, funcionários, diretoria, que trabalham e praticam o aborto”.
De acordo com Celene, “essa é uma das finalidades principais, porque nós queremos sim o fim do aborto, tanto no Brasil quanto no mundo.” Ela contou ainda que o Pérola Byington foi escolhido como local da manifestação porque “pratica o indecente ‘aborto legal’, como chamam”.
Mas Daniela Pedroso, psicóloga do serviço de violência sexual do Pérola Byington, diz que o atendimento prestado pelo hospital “não é nada mais do que a lei nos permite”. A unidade realiza não apenas o procedimento do aborto, mas também o primeiro acolhimento às vítimas, a profilaxia, exames e oferece acompanhamento psicológico.
Algumas pacientes, segundo Daniela, já relataram incômodo com a ação dos religiosos. “Uma mulher que tenha feito o procedimento ou que precisa fazê-lo dentro da legalidade está muito mais vulnerável, e o problema na vida delas não é o abortamento, é o estupro”, destaca.
“Quando você aborda elas na rua e começa a questionar, mostrar aquelas fotos – eles se ajoelham e começam a rezar –, tudo isso é muito forte, porque elas não estão aqui porque escolheram abortar de uma gravidez indesejada, estão aqui porque foram estupradas. Isso remete ao trauma do estupro, acaba sendo uma violação de direitos humanos.”
Outra preocupação da psicóloga é que a presença do grupo afaste mulheres que estejam procurando o serviço pela primeira vez. “Será que mulheres não estão deixando de entrar? As fotos são fortes, tem miniaturas fetos de borracha. Eu soube de funcionária que foi abordada e chegou bastante nervosa porque colocaram essas miniaturas de fetos na mão dela.”
A atuação política de Celene não se resume às orações em frente ao Pérola Byington: nas últimas eleições, a ativista se lançou a uma candidatura frustrada como deputada federal de São Paulo pelo partido do presidente Jair Bolsonaro, o PSL. A campanha contudo, não ganhou as urnas.
Ainda em setembro, antes das votações, o Tribunal Regional Eleitoral de SP apontou que a candidata não estava corretamente filiada ao PSL. Celene recorreu, enviando imagens suas em atos do partido, declarações de terceiros e uma cópia da convenção estadual, mas o Tribunal não aceitou, afirmando que o partido não havia submetido sua inscrição partidária à Justiça Eleitoral.
A candidatura indeferida, contudo, não impediu que o PSL enviasse R$ 10 mil para Celene, que gastou todo o dinheiro recebido durante a campanha com serviços de marketing político, como consultorias e gráficas, além de repassar R$ 3 mil para a Comunidade Missionária Dai-me Almas, da Igreja Católica, que atua na zona sul de São Paulo.
À Pública, o TRE respondeu que políticos com candidaturas indeferidas não precisam devolver o dinheiro recebido de partidos, mesmo que venham do fundo partidário ou do eleitoral — é necessário apenas comprovar a utilização do dinheiro na prestação de contas. A verba doada pelo PSL veio do Fundo Especial de Financiamento de Campanha (FEFC), o mesmo apontado como origem dos recursos que irrigaram as campanhas de candidatas-laranja do PSL em Minas Gerais.
Além do dinheiro do PSL, a campanha de Celene recebeu outros R$ 10 mil de Caio Augusto Lemos Cardoso, que atua no mercado de investimentos. Além de doar para Celene, Caio doou para o deputado estadual do DEM Arthur Moledo do Val, o youtuber “Mamãe Falei”, e para o deputado federal Kim Kataguiri, do Democratas (DEM).
Essa não foi a única tentativa de Celene em eleições: curiosamente, em 2012, ela havia concorrido pelo Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) ao cargo de prefeita de São Lourenço, no sul de Minas Gerais. Com o nome de Celene Carvalho, não foi eleita, obtendo apenas 370 votos.
Além das duas tentativas frustradas em eleições, Celene atuou como a “guardiã do Pixuleco”, o boneco inflável do ex-presidente Lula, utilizado durante as manifestações a favor do impeachment de Dilma Rousseff em 2015. Era ela quem providenciava os consertos do bonecão, atingido por facadas em Caxias do Sul e pelo vento em São Paulo.
Celene também esteve à frente dos atos que hostilizaram a filósofa americana Judith Butler na sua vinda a São Paulo em 2017. Ela chegou a ir ao aeroporto de Congonhas para enfrentar Butler, e terminou injuriando racialmente uma mulher negra, a quem disse: “você é feia, olha esse seu cabelo, olha essa sua cor, vai arrumar esse cabelo”. A injúria levou à condenação de um ano de reclusão em regime inicial aberto.
Embora se autointitule coordenadora da única filial brasileira do “40 Dias Pela Vida”, o site oficial do grupo – que em inglês se chama “40 Days for Life” – aponta outras pessoas como lideranças no Brasil: constam na página os contatos de Lyege Ornellas Pires Carvalho e Maria Jocelina de Azevedo Pires Barreto Fonseca, ambas ativistas pró-vida.
A primeira participou, em 2015, de um seminário sobre “ações e programas que visam a valorização da vida” na Câmara dos Deputados, falando sobre “origem da ideologia de gênero”, além de assinar uma ideia de proposta legislativa do candidato não eleito do DEM à Câmara de Recife, Rogério Magalhães, que buscava “tornar crime o ensino de ideologia de gênero (sic) nas escolas brasileiras”. A segunda foi coordenadora da edição de 2016 do “40 Dias Pela Vida” em São Paulo, realizada também em frente ao hospital Pérola Byington.
O Brasil é um dos 61 países que o “40 Days for Life” diz ter alcançado desde 2004, quando a campanha surgiu em College Station, no estado norte-americano do Texas, em reação à criação de um centro de promoção ao aborto na cidade alguns anos antes. Em 2007, aconteceu a primeira campanha nacionalmente coordenada nos Estados Unidos, que, segundo os organizadores, atingiu 89 municípios em 33 estados.
Hoje, o grupo diz ter atuação mundial: em seu site, há registros de filiais em praticamente todos os continentes, com presença maciça na América Latina, sobretudo em países como México e Colômbia, e também na Europa.
Nos comunicados ao fisco dos Estados Unidos, a organização declarou em 2017 uma receita de mais de 2,3 milhões de dólares, cerca de R$ 7,5 milhões à época — o “40 Days for Life” é obrigado a enviar essas informações ao governo por pedir isenção de taxas federais.
O grupo pró-vida pretende manter as atividades em frente ao Pérola Byington até dia 03 de novembro, quando a campanha internacional completa 40 dias. Enquanto isso, J. aguarda o andamento das investigações sobre a agressão que registrou na delegacia e tem recebido assistência jurídica do Núcleo de Promoção e Defesa dos Direitos das Mulheres (Nudem) da Defensoria Pública de São Paulo.
*O nome de J. foi preservado para proteger sua identidade