Fernando Henrique Cardoso: Ao final de seu mandato, o modelo tucano de privatizações ganharia o sinal verde. Em 1997, o governo privatizaria a Vale e, no ano seguinte, a Telebrás. (Germano Lüders/Exame)
Da Redação
Publicado em 1 de novembro de 2015 às 17h00.
Brasília - A contraposição entre o Palácio do Planalto e o Tribunal de Contas da União (TCU), uma das marcas de 2015 por conta das "pedaladas fiscais" do governo Dilma Rousseff, ocorreu também, em nível menos dramático, há quase 20 anos, como revelam os diários do então presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB).
Em 14 de agosto de 1996, FHC registrou dificuldades colocadas pelo TCU para liberar as propostas de privatizações do governo tucano. No depoimento, revelado agora no livro "Diários da Presidência - 1995-1996" (Companhia das Letras), FHC caracteriza os técnicos do TCU como "muito petistas" naquele momento.
"Voltei ao Palácio da Alvorada e recebi muita gente. Primeiro tive uma conversa com o Sérgio Mota (então ministro das Comunicações) e o presidente do TCU, o Marcos Vilaça. O TCU está pondo dificuldades óbvias e corretas na aprovação de concessões na telefonia e na área de energia."
"O Vilaça disse com clareza que há três conselheiros (no TCU) muito antiquados, uns são estatistas, outros são exibicionistas, o que dificulta muito. Sugeriu que eu tivesse um jantar com todos na casa dele, explicar qual é o nosso propósito: evitar que o TCU, que está muito influenciado por sua tecnocracia, muito petista, e também por uma mentalidade burocrática antiquada, atrapalhe o avanço da privatização e das concessões", relata FHC.
Ao final, o modelo tucano de privatizações ganharia o sinal verde. Em 1997, o governo privatizaria a Vale e, no ano seguinte, a Telebrás.
Agora, quase 20 anos depois, o conflito entre o governo e o TCU envolve o PT e ganhou contornos mais dramáticos. Por conta de manobras fiscais, como as pedaladas, a Corte de Contas rejeitou, de forma unânime, o Balanço Geral da União de 2014. Foi a primeira vez em 78 anos que o TCU reprovou as contas federais. A oposição, que hoje é liderada pelo PSDB, aposta justamente nas "pedaladas fiscais" e no parecer pela rejeição do TCU para embasar um pedido de impeachment da presidente Dilma Rousseff.
Postura infantil
O debate sobre o uso do dinheiro da privatização da Vale para a meta fiscal do governo fez FHC chamar de "um pouco infantil" a postura de economistas de sua gestão. O desabafo foi registrado em 8 de julho de 1996.
FHC narra que, em jantar com Clóvis Carvalho e os irmãos Luiz Carlos Mendonça de Barros e José Roberto Mendonça de Barros (então secretário de Política Econômica) no Palácio do Alvorada, os quatro trataram da crise envolvendo o banco Bamerindus, que sofreria intervenção do Banco Central no ano seguinte no âmbito do Proer. Depois, FHC ouviu queixas sobre as críticas feitas por Gustavo Franco, que era diretor do BC e principal fiador da política baseada no câmbio fixo entre o real e o dólar, base do Plano Real.
"Queixas também porque o Gustavo Franco voltou a atacar a questão do gasto, por causa da negociação da Vale do Rio Doce. Ele não sabe o que o Mendonça está fazendo. Mendonça não pode abrir o jogo e deu a impressão, porque não abriu o jogo, de que iremos utilizar os recursos da Vale para fazer obra, para os Estados pagarem as dívidas."
"Já o Gustavo Franco estrilou, parece que o (Edmar) Bacha também. Quer dizer, um pouco essa disputa da PUC do Rio: para mostrar que é ortodoxa, quer segurar o câmbio e o déficit, e diz que os outros são gastadores. A coisa é um pouco infantil", relata FHC.
Déficit fiscal
Dias depois, FHC relata o debate sobre o déficit fiscal do governo, que aumentava em 1996. "Tive uma longa reunião com a área econômica sobre um artigo que o André Lara Resende escreveu - eu não li -, parece que colocando em dúvida a possibilidade de controlarmos o déficit fiscal. Foi o grande tema de hoje. O debate na equipe econômica sempre toma uma conotação muito dramática."
"Mas na verdade, quando se olham os dados, [a situação] não é tão preocupante assim, embora tenhamos que cortar mais no físico, ou seja, dispensar gente, fechar órgãos, diminuir gastos, porque parece que do ponto de vista de aumento de receita chegamos ao limite, pelo menos é o que dizem nossos técnicos. Não dá para fazer o ajuste em cima só do orçamento".
A crise fiscal, no entanto, pioraria ao longo de 96 e durante todo o ano de 1997. Em 1998, ano em que FHC buscou a inédita reeleição, o governo foi forçado a buscar recursos junto ao Fundo Monetário Internacional (FMI) para fechar as contas, além de promover reformas na gestão da política econômica.