Brasil

MP que limita redes sociais é falsa defesa da liberdade de expressão

Para Caio Machado, cofundador do Instituto Vero, Medida Provisória que limita retirada de conteúdo da internet deixará ambiente online mais perigoso

Caio Machado, do Instituto Vero: MP de Bolsonaro vai contra o Marco Civil da Internet (Caio Machado/Divulgação)

Caio Machado, do Instituto Vero: MP de Bolsonaro vai contra o Marco Civil da Internet (Caio Machado/Divulgação)

CR

Carolina Riveira

Publicado em 7 de setembro de 2021 às 15h44.

Última atualização em 8 de setembro de 2021 às 11h48.

Era 6 de janeiro quando, nos Estados Unidos, um grupo de apoiadores do presidente Donald Trump invadia o Capitólio. Horas depois, Trump, que incentivou a invasão em discursos anteriores, teve as postagens removidas das redes sociais e até hoje segue com as contas bloqueadas.

Passados sete meses do episódio — e horas antes dos atos deste 7 de setembro no Brasil — o presidente Jair Bolsonaro editou uma Medida Provisória que limita os conteúdos que podem ser retirados do ar pelas plataformas de internet.

"Isso é uma falsa liberdade de expressão", diz sobre a MP o advogado e cientista social Caio Machado, cofundador do Instituto Vero, especializado em desinformação na internet, e pesquisador da Universidade de Oxford, no Reino Unido.

"A liberdade de expressão é a liberdade de falar o que você bem entender. Mas isso não pode limitar outras liberdades, o direito à vida, à segurança coletiva." 

Para o pesquisador, que falou à EXAME nesta terça-feira, 7, Bolsonaro "não quer que aconteça com ele e seus apoiadores o que aconteceu com Trump".

Pelas regras atuais, as plataformas podem proativamente retirar conteúdos que não condizem com seus termos de uso — que os usuários concordam em respeitar quando se cadastram.

Desde a explosão da desinformação online nos últimos anos, o debate entre especialistas é o contrário: para que as redes atuem mais na moderação de algumas frentes, como na desinformação sobre saúde ou processos eleitorais.

Machado é formado em direito pela Universidade de São Paulo, mestre em direito pela Sorbonne, na França, e mestre em ciências sociais, também pela Universidade de Oxford. Veja abaixo os principais trechos da entrevista.


O que muda com a MP em relação ao que as plataformas removem hoje?

Essa possibilidade de moderação das plataformas serve para manter a qualidade e segurança. Isso é regido pelo Marco Civil da Internet. O que essa Medida Provisória visa é, de certa forma, alterar o Marco Civil.

Com a MP, as plataformas não poderiam decidir por elas mesmas o que tirar do ar. A lei daria uma lista e plataformas só poderiam agir quando o conteúdo está nessa lista. São menos hipóteses do que a gente vê hoje em dia. E alguns casos de abuso inclusive passariam a ficar online.

Por exemplo, o Instagram controla algumas interações entre adultos e menores. Se o adulto manda um foguinho, a plataforma detecta aquilo como um conteúdo potencialmente sexual e é bloqueado.

Com a MP, isso continuaria funcionando, o usuário passaria a ter o direito de fazer esse tipo de comunicação. Tem alguns crimes que poderiam ocorrer agora e as redes não teriam o direito de remover, por serem crimes de representação condicionada [a vítima tem que querer que o autor do crime seja denunciado]. Basicamente, o ambiente digital ficaria mais perigoso.

O que leva uma plataforma a remover conteúdo por conta própria?

Tem conteúdo que as plataformas removem porque é frontalmente ilegal, criminoso, como pornografia infantil, apologia a alguns crimes.

Esse tipo de coisa elas removem automaticamente, mesmo sem decisão judicial, que seria o modelo do Marco Civil [que aponta que uma decisão judicial pode determinar a remoção de conteúdo]. Mas se a gente for esperar até sair a decisão, é muito lento e causa muito dano. Imagine se há uma ameaça contra alguém; até esperar o processo correr, alguém já pode ter sofrido alguma violência.

Por que muitos conteúdos impróprios seguem no ar apesar desses termos?

O ambiente de cada rede social vem muito da decisão de negócio delas. Tem rede social que não admite pornografia, por exemplo — e a gente fica muito contente quando elas vão lá e tiram obscenidades por conta própria.

Quando um usuário contrata uma dessas redes, está contratando um serviço, aceitando alguns termos de uso. E para manter esses termos as redes efetuam essa atividade que chamamos de "moderação de conteúdo", que é manter a qualidade do serviço, zelando pelo ambiente.

Mulher segura placa em manifestação pró-Bolsonaro no Rio: atos foram convocados para este 7 de setembro (Wagner Meier/Getty Images)

Existe uma pressão no Brasil e no mundo para que as redes melhorem sua moderação. A MP mina esse debate?

Com a MP, muda também a capacidade de adaptação. Se surge, como surgiram as fake news no passado, um novo fenômeno que a gente não antecipa ainda, teríamos que ou passar uma nova lei e esperar decisões do judiciário. Imagine a cada vez esperar uma resposta do Judiciário.

Com a MP, uma remoção de contas como ocorreu após o Capitólio nos EUA ficaria impedida?

Bolsonaro vai muito na linha do que o Trump fez. Trump queria impedir a remoção de conteúdos, suspensão de contas; Bolsonaro está tentando enquadrar isso um pouco melhor. Ele não quer que aconteça com ele e seus apoiadores o que aconteceu com Trump.

E o timing disso é muito importante. O governo está cozinhando essa MP há um tempo, sabemos que estão com esse texto há meses. Mas soltaram ontem, na véspera da manifestação, sabendo o tipo de problema que pode acontecer, com as convocações violentas que foram feitas. Esse timing é muito pensado.

Nos EUA, Trump também tentou por muito tempo acabar com a Seção 230, que faz com que redes não sejam responsabilizadas pelo conteúdo. Como funciona essa responsabilização no Brasil?

Pelo modelo atual, as redes no Brasil também só passam a ser responsáveis se tiverem que cumprir uma demanda judicial. Tem exceções, como pornografia de vingança - se alguém vaza uma nude e a pessoa prova que há uma ameaça -, ou violações de marca.

A regra de ouro é: as plataformas não são responsáveis até que haja uma decisão judicial. Mas o Facebook e outras plataformas tomam iniciativa de remover mais conteúdo quando notam que há uma ameaça. A lei não proíbe que removam a mais, a lei dá um piso. O regime é esse.

Mas o que a MP faz é alterar, em vez de dar um piso mínimo, dar uma limitação do que elas podem fazer.

O governo federal argumenta que as plataformas estão minando a liberdade de expressão e que podem ocorrer remoções arbitrárias. Como você enxerga esse tema à luz da liberdade de expressão? 

Vejo isso como uma falsa liberdade de expressão. Evidentemente a liberdade de expressão é a liberdade de falar o que você bem entender. Mas isso não pode limitar outras liberdades, o direito à vida, à segurança coletiva.

O Bolsonaro está usando argumentos políticos para equiparar esse direito à liberdade de expressão com a liberdade de atacar o funcionamento do Estado, do sistema democrático, até pegar em armas, colocar vidas em risco. Isso não é e nunca foi liberdade de expressão. O governo está usando isso como bandeira política, e a MP entra como narrativa disso.

E o estrago já foi feito. Se algo que fere a democracia acontecer e plataformas derrubarem conteúdo pró-governo, dirão "olha, o presidente passou uma lei e estão censurando nossa ideologia". Qualquer coisa só fortalecerá esse discurso a partir de agora.

Tenha acesso ilimitado às principais análises sobre o Brasil e o mundo. Assine a EXAME

Acompanhe tudo sobre:Fake newsGoverno BolsonaroMarco Civil da InternetProtestos no BrasilRedes sociais

Mais de Brasil

Aeroporto de Porto Alegre retoma voos após recuperação das enchentes; veja datas

Maioria dos brasileiros é contra decisão do STF que descriminalizou porte de maconha

Tramonte tem 26%, Engler, 14%, e Salabert, 12%, em BH, aponta Real Time Big Data

Brasileira ganha prêmio por projeto que propõe substituir animais em teste de cosmético

Mais na Exame