Auxílio Brasil: Enquanto as prefeituras alertam para a necessidade de reforçar o programa, especialistas defendem uma grande mobilização para enfrentar o aumento da fome (NurPhoto/Getty Images)
Estadão Conteúdo
Publicado em 20 de junho de 2022 às 07h41.
Os municípios de todo o Brasil contabilizam uma demanda reprimida de 2,78 milhões de famílias para ter acesso ao Auxílio Brasil, programa social do governo Jair Bolsonaro. São 5,3 milhões de pessoas que têm o perfil para receber o benefício e estavam na fila em abril, de acordo com o mais recente mapeamento da Confederação Nacional de Municípios (CNM).
A velocidade do crescimento da demanda reprimida vem surpreendendo e preocupando os prefeitos, que na ponta sentem as cobranças da população na esteira do aumento da pobreza nas suas localidades. É nos municípios que as famílias fazem o cadastramento ao programa no Centro de Referência da Assistência Social (Cras) para ter acesso à rede de proteção social do País.
O mapeamento da CNM, antecipado ao Estadão, está sendo divulgado 10 dias após a publicação do resultado do 2.º Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia de Covid-19, que mostrou que a fome no Brasil voltou a patamares registrados pela última vez nos anos 1990. Atualmente 33,1 milhões de pessoas não têm o que comer no País, 14 milhões a mais do que no ano passado.
LEIA TAMBÉM: Semana começa com 'CPI da Petrobras' defendida por governo e oposição
Enquanto as prefeituras alertam para a necessidade de reforçar o programa, especialistas defendem uma grande mobilização para enfrentar o aumento da fome. Eles apontam falhas no desenho dos benefícios do Auxílio Brasil e chamam atenção para a necessidade de direcionar recursos ao Alimenta Brasil, programa de aquisição de alimentos de agricultores familiares e doação para famílias em situação de insegurança alimentar.
Com a falta de exposição de dados pelo Ministério da Cidadania, responsável pela gestão do Auxílio Brasil, a CNM resolveu seguir com um acompanhamento próprio da situação nos 5.570 municípios.
A reportagem do Estadão procurou o ministério para obter os números oficiais e comentar como estão sendo distribuídos os diversos benefícios previstos no programa, entre eles o de Inclusão Produtiva Rural, pago em parcelas mensais de R$ 200 a famílias que possuam em sua composição agricultores familiares. E mais uma vez não obteve resposta. Em outras reportagens publicadas, o procedimento foi o mesmo.
O clima entre os técnicos experientes da Pasta é de indignação com a falta de transparência de informações, que deveriam ser públicas, segundo apurou o Estadão. Faltando quatro meses para as eleições, os dados detalhados do Auxílio, que garante um benefício mínimo de R$ 400, são tratados como sensíveis nos bastidores do governo pelo seu potencial eleitoral.
INFLUÊNCIA ELEITORAL
O presidente da CNM, Paulo Ziulkoski, atribui a ausência de dados amplos à conjuntura eleitoral. “Dentro do possível eles (o governo) vão escondendo, mas nós na ponta podemos levantar e mostrar”, diz. “E vai piorar ainda mais até a eleição”, prevê. Segundo ele, o quadro preocupa porque a fila, que tinha diminuído no início do ano, já voltou ao patamar anterior. O problema estoura nas prefeituras, reclama o presidente da entidade, que reúne prefeituras de todo o País. De acordo com Ziulkoski, as escolas municipais acabam se transformando em refúgio para as crianças que chegam com fome e precisam de reforço alimentar antes das aulas.
Pelos dados da CNM, entre março e abril, a demanda reprimida subiu em velocidade que se aproxima dos dados apurados antes da migração do programa Bolsa Família, extinto no ano passado, para o Auxílio Brasil, que era de 3,1 milhões de famílias. De um mês para o outro, houve um aumento real de mais de 1,480 milhão de famílias à espera do benefício.
Ou seja, a fila mais que dobra em apenas um mês, um crescimento de 116%. Salta de 1,307 milhões de famílias (2,1 milhões de pessoas) para 2,788 milhões de famílias (5,3 milhões de pessoas) faltando pouco mais de 401 mil famílias para se atingir o patamar anterior à transição dos programas.
‘INCENTIVO’ A DISTORÇÕES
As mudanças no desenho do programa têm contribuído para acentuar os problemas. Entre elas, a decisão de garantir um benefício mínimo de R$ 400 por mês para cada família. Essa regra tem feito com que um beneficiário que mora sozinho acabe recebendo o mesmo valor que uma mãe com dois filhos pequenos. Esse modelo funciona, na prática, como um incentivo para pessoas que moram juntas se cadastrem como se morassem separadas, recebendo R$ 800. Esse quadro pode acabar deixando de fora do programa famílias que mais precisam.
“Além do desenho nada equitativo, o piso de R$ 400 gera incentivos para que pessoas que moram juntas se cadastrem separadamente. É uma espécie de desmembramento de famílias, que prejudica enormemente a qualidade dos dados do Cadastro Único e, com isso, sua capacidade de direcionar as políticas públicas à população mais vulnerável”, diz Leticia Bartholo, socióloga e especialista em políticas públicas e gestão governamental. É ex-secretária nacional adjunta de Renda de Cidadania.
O prefeito de Picuí, cidade da Paraíba localizada no sertão do Seridó, Olivânio Dantas Remígio, avalia que com a criação do Auxílio Brasil perde-se o que ele chama de “princípio da territorialidade”. “Nós tínhamos um mapeamento da pobreza no município. Sabíamos direitinho onde estavam as famílias com maior grau de vulnerabilidade social”, relata. “Ficou difícil para o município ter um marco de acompanhamento sem ter informação concreta.”
O prefeito paraibano cita outro problema colateral: o aumento da demanda por auxílios eventuais, como cesta básica, aluguel social e auxílio energia. Remígio conta que o cadastramento continua sendo feito pelo Cras, porém, os condicionantes para o acompanhamento das famílias não são mais cobrados, como, por exemplo, vacinação de crianças, peso e avaliação se estão se alimentando bem. “Essa rede de saúde, assistência social e educação, fica quebrada”, alerta.
O estudo aponta que a previsão orçamentária para o Auxílio Brasil deste ano não é mais suficiente para zerar a fila. O orçamento previsto é de R$ 89 bilhões.
Em 2021, dados obtidos via consulta pública e coletados pela CNM mostravam mais de 25 milhões de famílias registradas no Cadastro Único, o correspondente a cerca de 75 milhões de pessoas. Já em 2022, o número cresce e passa dos 33 milhões de famílias ou 83 milhões de pessoas. É um pouco mais de 38% da população (de 215 milhões de habitantes em 2021) recorrendo aos programas oficiais de assistência social.
No final de 2021, o governo Bolsonaro teve de correr para incluir oito famílias na lista da Inclusão Produtiva Rural, benefício adicional do programa Auxílio Brasil. Se não fizesse o pagamento, o novo benefício não poderia ser pago em 2022 por causa das restrições da lei eleitoral.
Na contramão, o governo esvaziou neste ano os recursos do programa de aquisição de alimentos, que no governo Bolsonaro tem o nome de Alimenta Brasil. Esse programa estimula a compra da produção de agricultores familiares combinada com a doação para a população vulnerável.
Para especialistas, esse quadro revela a precariedade da forma como o governo vem lidando com os diversos benefícios abarcados pelo Auxílio Brasil, lançado pelo presidente Jair Bolsonaro para ser a marca do seu governo nas eleições deste ano. Entre esses benefícios, estão a Bolsa de Iniciação Científica Júnior e o Auxílio de Esporte Escolar, pagos para estudantes que se destacarem em competições acadêmicas e esportivas, o Inclusão Produtiva Urbana (para beneficiários do programa que conseguem emprego com carteira assinada) e o benefício Compensatório de Transição. Esse último concedido às famílias que tiveram perdas financeiras na transição entre o extinto Bolsa Família e o Auxílio Brasil.
No caso da Inclusão Produtiva Rural, o benefício prevê um valor mensal de R$200, por até 36 meses, a famílias que tenham em sua composição agricultores familiares.
Batizados de “penduricalhos” pelos especialistas, esses benefícios complementares ao Auxílio Brasil comprometem as prioridades do programa social para combater a fome.
“Não tem uma bala de prata para resolver. É preciso um conjunto de ações. Uma situação tão grave e estrutural se manifesta de forma muito diferente nas famílias e nas regiões”, diz Arnoldo de Campos, ex-secretário de segurança alimentar do governo federal e hoje consultor para organismos internacionais. Ele defende uma mobilização nacional urgente em torno de uma ação emergencial para atender as pessoas que passam fome no Brasil. “É preciso reconhecer que tem gente fora do programa e fazer uma busca ativa dessas famílias”, alerta.
‘SUS’ ASSISTENCIAL
Campos ressalta que, assim como o SUS na saúde, o Brasil tem um Sistema Único de Assistência Social, o SUAS, presente em todos os municípios. “As crianças estão chegando à escola com fome e não conseguem nem começar as aulas se não tiverem uma refeição antes”, diz.
O consultor critica a forma como o benefício de Inclusão Produtiva Rural foi desenhado e que prevê depois de um tempo a doação de 10% da produção pelos beneficiários. “Quem fez não tem a menor ideia de como funciona o campo. Como uma pessoa que está vulnerável vai passar a doar da noite para o dia, sem nenhum apoio técnico vinculado a isso?”, questiona.
Pesquisadora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Cátia Grisa diz que esse benefício deveria estar vinculado à assistência técnica e à extensão rural, potencializando os seus resultados. Pelas regras do programa, o beneficiário deve devolver 10% em produtos, a partir do segundo ano. “Os 10% não chegam a comprometer as questões de segurança alimentar, mas a grande questão é que esse recurso não está articulado com outros apoios para as famílias, como assistência técnica rural para dar suporte para as famílias”, diz Cátia.
Ela aponta que o orçamento do Alimenta Brasil vem sofrendo um encolhimento depois de um reforço de R$ 586 milhões na pandemia, em 2020. Nem tudo foi gasto. Os recursos voltaram a cair a partir de 2021.
O Ministério da Cidadania não fornece informações sobre os dados e a distribuição dos benefícios complementares. Segundo o Estadão apurou, o governo cancelou a portaria porque identificou prefeituras “não alinhadas com o governo a operar”.