Exército no RJ: a morte de Abraão foi esquecida pela imprensa ainda enquanto se travava uma batalha judicial entre a Justiça Federal e os militares (Tânia Rêgo/Agência Brasil)
Clara Cerioni
Publicado em 1 de maio de 2019 às 08h00.
Última atualização em 1 de maio de 2019 às 08h00.
Abraão Maximiano era um menino negro de 1,77 metro. Tinha 15 anos. Órfão de pai e mãe, tinha deixado de estudar e catava latinhas para ajudar a irmã de 20 anos que o criava. Era flamenguista. Morava no Beco da Esperança, número 3.
Por volta das 21h30 do dia seguinte ao Natal, 26 de dezembro de 2011, Abraão estava na pracinha conhecida como Mirante do Caracol, no Complexo do Alemão, quando foi atingido por uma bala de fuzil debaixo da axila direita. Estava com o braço levantado, como quem tenta se proteger de um tiro de fuzil com as mãos nuas.
A bala saiu na lateral esquerda do seu corpo, parte das costas, e ao atravessar o tórax gerou hemorragia nos pulmões e lesão na coluna, além de diversos outros ferimentos internos. Abraão caiu de imediato no chão. Foi cercado por militares portando fuzis e, em pouco tempo, pelos moradores da comunidade.
Os soldados que o cercaram haviam atirado contra ele, segundos antes, seis tiros de fuzil 7,62 da marca Imbel, de uso exclusivo do Exército. Eram apenas alguns anos mais velhos. Hudson Leonardo Camargo Costa, mineiro de Contagem, tinha 23 anos; Douglas Moreira Luciano, mineiro de Belo Horizonte, tinha 21 anos.
Faziam parte de um destacamento de Juiz de Fora que estava temporariamente no Rio de Janeiro para a ocupação do Complexo do Alemão, na Operação Arcanjo – aquela que foi a primeira grande ação de Garantia da Lei e da Ordem (GLO), ainda durante o governo Lula, para a implantação da Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) na favela.
A pracinha onde Abraão morreu, como bem documentado pelo Comando Militar do Leste (CML), era um local onde rolava tráfico de drogas: há relatos de moradores no disque-denúncia, registros de flagrantes e até de tiroteios.
Mas o Mirante do Caracol também é um ponto central na Vila Cruzeiro, com uma vista privilegiada da belíssima Basílica da Penha, uma igreja da época do Império que se ilumina à noite. Quando souberam que o menino tinha sido alvejado, os moradores correram para a praça. Em pouco tempo eram mais de 70, implorando para levar Abraão ao Hospital.
– A gente vai levar ele pro hospital, porra!
– Deixa nós meter a mão aê!
– Leva pro hospital! Leva!
Os soldados formaram um cordão de isolamento até o resgate militar chegar, o que levou cerca de meia hora. Abraão foi levado em uma ambulância, que ainda quebrou no caminho. Chegou ao hospital público Getúlio Vargas somente uma hora depois do ocorrido, sem vida. Os familiares, revoltados, acusaram o Exército de não socorrer o menino a tempo.
Disseram ter sofrido ameaças na porta do hospital e sido filmados pelos soldados. A irmã, Jéssica da Silva Maximiano, avisou ao jornal O Globo: “Não vamos deixar a Vila Cruzeiro. Se acontecer alguma coisa com a gente foi o Exército”.
Nos dias seguintes, a família deu dezenas de entrevistas a rádios e TVs, acusando o Exército de assassinar o menor sem nenhum motivo. Ele jamais se envolvera com o tráfico, diziam.
Por sua vez, o porta-voz da Força de Pacificação, coronel Malbatan Leal, disse a jornalistas que a patrulha havia avistado três jovens suspeitos e dado ordem que deitassem no chão. “Eles não pararam como também começaram a executar tiros de arma de fogo. Nesse momento então começaram os tiros chamados de autoproteção”.
Ou seja: os soldados apenas responderam a tiros contra eles ou agiram em legítima defesa, o que configura excludente de ilicitude. Sete anos depois, a mesma justificativa foi usada inicialmente pelo CML a respeito do fuzilamento do carro onde estava o músico Evaldo da Rosa e sua família, alvejados com 80 tiros no dia 7 de abril de 2019 próximo à Vila Militar, zona oeste de Rio de Janeiro.
A morte de Abraão foi esquecida pela imprensa ainda enquanto se travava uma batalha judicial entre a Justiça Federal e os militares, com direito a amplo apoio do governo federal e a atuação do advogado Rodrigo Roca, famoso por defender militares acusados de tortura durante a ditadura militar.
Desde 2010, membros do Exército e da Marinha são acusados pela morte de ao menos 34 civis em operações de policiamento, a grande maioria no Rio de Janeiro. Ao longo de oito meses, a Agência Pública levantou e acompanhou a tramitação de diversos casos na Justiça Militar, dentro da série de reportagens Especial Efeito Colateral, e constatou que nenhum militar foi punido.
Mas, diferentemente de outros casos analisados, a morte de Abraão foi criteriosamente investigada. Houve três investigações que correram em paralelo: um inquérito da Polícia Civil, uma investigação do Ministério Público Federal (MPF) e um Inquérito Policial Militar (IPM) – conduzido pelo Exército para apurar crimes militares. Com isso, há farta documentação sobre o que aconteceu e o que dizem as testemunhas.
Ao longo de todos os interrogatórios, os soldados repetiram de maneira quase idêntica a versão dada pelo comandante da Força de Pacificação no dia seguinte ao fato. O comandante da patrulha, sargento Matheus Vinicius Belotti Vieira, explicou no IPM que avistou três suspeitos e os mandou deitar porque um deles portava uma mochila “em atitude semelhante à utilizada para o tráfico de entorpecentes”.
Belotti afirma não ter visto esse rapaz sacar um revólver, mas dois dos seus soldados, Luciano e Camargo, garantem que o viram apontar para a tropa enquanto corria. Nenhum dos soldados chegou a vê-lo atirando; todos dizem que ouviram “rajadas de tiros”. Belotti atirou para cima duas vezes com seu fuzil, outro soldado atirou com uma bala de borracha, e a seguir os dois dispararam três tiros cada um com seus fuzis – todos esses tiros foram confirmados por exames de balística.
Do outro lado, há apenas uma testemunha civil dos fatos: Wellington Lopes da Silva, primo de Abraão. Wellington garante que estava com o primo pouco minutos antes do ocorrido.
Os dois jogaram futebol com amigos das 18h até por volta das 20h30 num campinho e, ao voltarem para casa, Abraão decidiu ficar um tempo no mirante, onde se sentou num banco porque estava com dores no joelho, que bateu contra a trave durante a pelada.
Wellington voltou minutos depois para encontrar o primo e ouviu os tiros. Foi rendido por um dos soldados, que, segundo ele, apontou o fuzil para sua cabeça. Disse ter certeza de que apenas os militares atiraram: “Apenas escutou os disparos que vinham da direção dos militares”, declarou no IPM.
Já a tia de Abraão, Alessandra Lopes, descreveu, ao ser questionada, com grande resignação: “Perguntada por qual motivo acredita que os militares atiraram no Abraão, respondeu que acredita que o Abraão estava no lugar errado na hora errada, pois o Abraão era inocente”.
Além dos depoimentos, houve uma quantidade de estudos técnicos digna de um episódio de CSI, entre o exame de necropsia, dois laudos periciais do local, um exame de confrontação de balística e até mesmo uma reprodução simulada do crime comandada pelos peritos do Instituto de Criminalística Carlos Éboli, da Polícia Civil fluminense.
A família de Abraão participou da reprodução simulada, que ocorreu no dia 4 de janeiro de 2012. Os dois peritos do Instituto de Criminalística foram acompanhados o tempo todo pelo olhar atento dos moradores e pela imprensa, além de três delegados da Polícia Civil, dois promotores da Justiça Militar, o comandante da Força de Pacificação e os quatro soldados que faziam a patrulha.
A cuidadosa reconstituição dos fatos levou algumas horas e, em seguida, as testemunhas foram novamente ouvidas. No final, os peritos reconhecem que Abraão foi atingido por uma bala de “alta energia cinética”, compatível com um fuzil, de acordo com o laudo de necropsia, disparado de média ou longa distância, em linha reta, e que a posição de disparo era “coincidente com aquela descrita” pelos militares.
Disseram, ainda, que, se houvesse de fato tiros de outras partes da comunidade, eles não poderiam ter causado os ferimentos que mataram o adolescente.
O que é fato, escrevem os peritos, é que não foi encontrado no local nenhum vestígio físico de que tenha havido de fato um tiroteio, “tais como cápsulas de munição de arma de fogo nos corredores laterais, por ocasião dos exames de local, tampouco projéteis ou marcas de impactos produzidas pelos mesmos na circunscrição do mirante”.
Mas ninguém acreditou nos peritos criminais que punham em dúvida a palavra dos membros do Exército brasileiro.
“Temerário” é como o delegado da Polícia Civil se referiu ao fato de os peritos descartarem que havia outros atiradores; em julho de 2012, o delegado Flávio da Rosa Loureira encerrou o inquérito concluindo que os soldados agiram em legítima defesa e, portanto, estavam cobertos pelo excludente de ilicitude.
Encerrado seis dias antes, o Inquérito Policial Militar, concluído em Juiz de Fora, já que o batalhão mineiro já tinha voltado para casa, chegou à mesma conclusão. “Os militares do Exército Brasileiro reagiram em legítima defesa, já em conformidade com as regras de engajamento, utilizando força proporcional e gradual para que cessasse ameaça, não havendo indício de conduta criminosa por parte da tropa”, escreve o general de brigada Otávio Santana do Rêgo Barros.
A questão sobre quem deveria julgar os soldados gerou um verdadeiro cabo de guerra entre a Justiça Militar e a Civil, uma vez que ambas acreditavam ter competência sobre o caso; por isso, conduziram inquéritos paralelos, descritos no começo da reportagem.
A promotora da Justiça Militar Adriana Santos chegou a reclamar por escrito: “Lamenta-se não se ver respeitada a competência da Justiça Militar”. Na sua visão, por estarem os militares em operação militar, o julgamento teria que ser feito pela Justiça Militar.
O MPF e a Justiça Federal, por sua vez, afirmavam ser os responsáveis pelo caso, de acordo com o que dizia o artigo 9º do Código Penal Militar, modificado pela Lei 12.432/11, que garantia que homicídios de civis cometidos por militares com intenção de matar – no jargão legal, com “dolo” – teriam que ser julgados pela Justiça Comum. No caso de homicídios culposos, ou seja, cometidos sem intenção ou em legítima defesa continuariam a ser julgados pela Justiça Militar.
A lei, assinada em 2011 pela então presidente Dilma Rousseff (PT), era uma pequena garantia de resguardo de vigilância civil em um contexto de emprego cada vez mais frequente do Exército nas ruas, uma política abraçada pelo seu governo e ampliada por Michel Temer (MDB).
Mais de dois anos após o homicídio de Abraão, o Ministério Público Militar finalmente concordou que cabia à Justiça Comum julgar o crime dos soldados. “A legítima defesa exige prova plena e incontestável para a sua admissão, sob pena de caracterizar usurpação da competência do Júri ao caso sob exame”, escreveu o promotor. O pedido foi acatado e o caso de Abraão, remetido para a 8ª Vara Federal Criminal da Seção Judiciária do Rio de Janeiro.
Mas o governo federal e o Exército não se conformaram. A essa altura, a juíza federal Valéria Caldi Magalhães, da 8ª Vara Federal Criminal do Rio de Janeiro, estava recebendo questionamentos da obstinada Advocacia-Geral da União (AGU), responsável indicada pelo governo federal para defender os soldados. A AGU pretendia, a todo custo, evitar que os soldados fossem levado a júri popular, o que traria ainda mais visibilidade para o incidente.
Na Justiça comum, nos casos de homicídios dolosos, o julgamento deve ser feito pelo Tribunal do Júri, formado por cidadãos comuns. São eles que determinam se o acusado de assassinato é culpado ou inocente.
Porém, antes de ele ser enviado para esse julgamento, a causa é analisada por um juiz de primeira instância, que verifica se há elementos suficientes para acusar o réu – ou, nesse caso, os réus. Por sua vez, a acusação deve ser elaborada pelo MPF depois de fazer sua própria análise dos dados obtidos na investigação dos fatos.
Os documentos do processo aos quais a Pública teve acesso demonstram de maneira cristalina como os advogados da União preferiam que seus clientes fossem julgados pela Justiça Militar, não pela Justiça Comum. Ao longo do processo, desde o recebimento da denúncia, a AGU argumentou três vezes que a competência não era da Justiça Federal.
O pedido de “exceção de incompetência” formulado oficialmente logo no recebimento da denúncia foi negado, assim como os demais.
A atuação da AGU chegou a ser questionada também durante o processo. Era uma novidade: pela primeira vez os advogados da União defendiam soldados em um caso de homicídio ocorrido numa GLO.
A situação era tão inédita que, com o aumento da frequência de ações de GLO, a Coordenação Geral Jurídica da Procuradoria Regional da União da Segunda Região criou um grupo especializado em questões criminais, já que os advogados da AGU normalmente respondem a causas cíveis, defendem o Estado, e não seus funcionários, em disputas judiciais – que dirá criminais.
Procurada pela Pública, a AGU declarou por e-mail: “Inobstante a pauta criminal não se inserir no rol de atribuições rotineiras dos advogados da União, por certo, seus membros possuem todo balizamento técnico para realizar a defesa”.
A reportagem perguntou ainda se há diferença entre o tratamento dado pela Justiça Federal e a Militar. “Não cabe análise subjetiva da AGU acerca da forma de tratamento dispensada pela Justiça Federal e Militar nos casos aqui citados”, foi a resposta.
Sobre o caso da morte de Abraão, a AGU afirmou que “não cabe qualquer avaliação de vantajosidade acerca da questão, uma vez que a defesa apenas se baseou no respeito às regras de competência”. Na realidade, a estratégia da AGU contou com uma verdadeira manobra jurídica para conseguir reverter a decisão que ia levar o Exército brasileiro a se sentar pela primeira vez perante o Tribunal do Júri.
O arrastado processo federal só terminou em meados de 2015. Pouco mais do que foi descrito nesta reportagem foi acrescentado ao processo. A bala que matou Abraão jamais foi encontrada, e as versões dos militares continuaram contrárias à versão da testemunha Wellington.
Na sua decisão, a juíza Valéria Caldi conclui que “subsistem duas teses igualmente plausíveis”. De um lado, os militares podem ter sido alvejados por outra pessoa, que não Abraão, e ter apenas se defendido; porém, como não há nenhuma evidência disso além do depoimento dos soldados, “não se pode afirmar, com absoluta certeza, que os acusados agiram em legítima defesa”, escreve a juíza.
Valéria Caldi aponta que, na fase em que o juiz de primeira instância decide se um caso deve ir a Júri, a regra a seguir é in dubio, pro societate, ou seja, em caso de dúvida, deve decidir-se em prol da sociedade, para que ela, representada pelo Tribunal do Júri, decida se os militares são culpados ou inocentes. É o que a lei exige, diz a juíza. E manda os soldados para o júri popular.
Em resposta à decisão, a AGU recorreu ao Tribunal Regional federal da 2ª Região – TRF2. O recurso em sentido estrito foi julgado por três desembargadores da segunda turma especializada, em maio de 2016 – e foi acompanhado de perto pelo Exército brasileiro.
Em 3 de maio de 2016, a primeira sessão do julgamento no TRF, transcrita nos autos do processo, seria o marco para uma guinada inesperada no caso.
Para começar, durante a seção, que ocorreu no centro do Rio de Janeiro, havia uma imponente presença de oficiais do Exército. O general de divisão Fernando José Sant’Ana Soares e Silva, na época comandante do Comando Militar do Leste – hoje comandante da 1ª Região Militar, com jurisdição sobre Rio de Janeiro e Espírito Santo –, acompanhou pessoalmente a sessão com membros do seu gabinete; além dele, estava presente o tenente-coronel Vital Lima Santos, na época oficial do gabinete do comandante do Exército e hoje assessor do chefe de gabinete do ministro da Defesa, enviado especialmente de Brasília.
Não havia, além do membro do MPF, nenhum representante da família de Abraão no lado da acusação.
Em vez dos advogados da AGU, quem fez a defesa oral foi o advogado privado Rodrigo Henrique Roca Pires, que não tinha atuado no processo nem voltou a atuar depois dessa intervenção.
Questionada sobre o porquê da presença de um advogado privado na defesa oral de um recurso impetrado pela União, a AGU e o Comando do Exército não se pronunciaram e sugeriram perguntar aos soldados, mas não enviaram os seus contatos.
Procurado, o advogado Rodrigo Roca explicou que fez a defesa a pedido do escritório Jairo Candido e Advogados Associados, que tem contratos com as Forças Armadas para prestação de serviços. Segundo o Portal da Transparência, desde 2014 o escritório recebeu mais de R$ 14,8 milhões em contratos com a Aeronáutica, mas menos de mil reais do Exército.
Já o escritório Jairo Candido e Advogados Associados afirmou, por e-mail, ter sido contratado diretamente pelos réus, “não havendo nenhum recurso público envolvido”. “Temos a informar que os Srs. Hudson Leonardo Camargo Costa e Douglas Moreira Luciano são clientes do nosso escritório e, como tal, toda e qualquer informação está resguardada pelo sigilo profissional”, diz o texto.
Rodrigo Roca tem atuação conhecida em prol de alguns militares. Foi ele quem acompanhou às audiências da Comissão Nacional da Verdade, em Brasília, o seu cliente, general Nilton Cerqueira, que comandou a caça a Carlos Lamarca e a repressão à guerrilha do Araguaia e foi citado no relatório final como responsável por crimes contra a humanidade.
Antes, já defendera os militares acusados de assassinar e ocultar o corpo do deputado Rubens Paiva, conseguindo a suspensão do caso pelo STF alegando que a Lei da Anistia os protegia. Defendeu, ainda, os militares acusados do fracassado atentado do Riocentro, em maio de 1981. Mais recentemente, chegou a defender o ex-governador do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral, na Lava-Jato.
Na abertura da sua sustentação oral, o advogado teceu comentários sobre a ditadura militar. “Eu estava vendo a imagem do general e dos seus secretários que o acompanham nesta sessão e me lembrei da última vez em que estive aqui: eu falava da época do Regime de Exceção, daquelas causas por conta do cinquentenário do Regime de Exceção, ou ditadura, ou como queiram chamar. A palavra da moda é ‘golpe’, mas eu chamo de Regime de Exceção. Hoje estou de volta e visto a farda novamente para falar por outros dois militares, que em nada se parecem com aqueles daquelas causas de 64 a 85.”
O relator, desembargador André Fontes, repreendeu imediatamente o advogado: “Nós somos civis. Vossa Excelência é tão civil quanto eu, nunca o vi usando farda neste tribunal, até porque não seria admitido como advogado”, disse.
Apesar dessa bronca, o principal argumento do experiente advogado – e a presença de representantes da cúpula do Exército – parecem ter sensibilizado os juízes. Roca Pires reiterou que era impossível determinar de qual arma saíra a bala que matou Abraão. “O problema, senhor, é que, entre os dois increpados, há um culpado. Mas entre eles também há um inocente”, disse.
Em resposta, a desembargadora Simone Schreiber se disse “impressionada”. “Fiquei muito impressionada com a defesa do Doutor Advogado feita na tribuna, muito sensibilizada com o apoio que as Excelentíssimas Autoridades Militares, que vieram assistir ao julgamento, estão dando a esses militares que se viram nessa situação de fazer o policiamento de uma comunidade.”
Na sua apresentação, Roca Pires também foi o único que trouxe para o tribunal outra questão que pairava sobre os ombros dos magistrados. Ele disse com todas as letras que era “temerário” deixar o “Júri decidir sobre a sorte desses moços” por causa do “momento político e social que o País está atravessando”.
O momento, lembre-se, era o iminente impeachment de Dilma Rousseff, que seria afastada dez dias depois pela Câmara dos Deputados. Como fiadores do processo de transição – que, após dois anos e meio, os levaria a ampliar a influência política a ponto de comandar oito ministérios no governo federal – não seria um bom momento para trazer à opinião pública um julgamento de uma ação de militares nas ruas do Rio de Janeiro.
Durante sua explanação, o advogado Roca Pires fez uma jogada de mestre: diferentemente da AGU, não questionou em nenhum momento a competência da Justiça Federal. Chegou até mesmo a concordar que caberia à Justiça Comum julgar os soldados, quando indagado diretamente pelo juiz-relator.
Foi o desembargador Messoud Azulay Neto que deixou transparente o sentimento da turma: embora ele reconheça que acolher a tese de legítima defesa “é, de fato, um pouco forçado”, ele considera “um risco muito grande para eles” mandar os soldados para um Tribunal do Júri.
“Nós temos que ver também que, se por um lado houve uma vítima fatal – que nós não sabemos quem é –, por outro lado, nós estamos lidando também com dois jovens rapazes de dezoito anos e nós sabemos como é hoje a sociedade. Mandar para o júri dois rapazes de 18 anos, quando nós sabemos que um deles com certeza absoluta não atirou?”, argumenta o juiz.
Ele propõe um novo enquadramento, a legítima defesa putativa, ou seja: os soldados supunham estar sob ataque. Segundo seu raciocínio, somente por estarem em um “território de grande periculosidade”, isso já permitiria a interpretação. Nesse caso, diz, o que ocorreu foi um erro. Faltaria decidir se o erro é aceitável ou não – nesse caso, o crime seria homicídio culposo, sem intenção de matar. E os soldados não poderiam ser enviados para o Tribunal do Júri.
O argumento convenceu o relator, que mudou seu voto. “Eu não tinha pensado nisso, acho que é uma boa solução”, diz o doutor André Fontes.
Mas, no fundo, não era isso que estava sendo julgado naquela sala.
Quando o caso é remetido de volta para a 8ª Vara Federal Criminal, em janeiro de 2017, a AGU interpõe um recurso afirmando que, se o caso é de homicídio culposo, sem dolo, não cabe à Justiça Comum, mas à Militar.
O argumento, inquestionável, é acatado pela juíza no dia 25 de janeiro.
Seis meses depois, o Ministério Público Militar, pediu o arquivamento do caso com uma defesa apaixonada dos jovens militares. Diz que “há prova robusta” de que os soldados foram atacados, sofrendo “agressão injusta” e agiram em legítima defesa.
Quanto à versão de Wellington – de que não havia tiroteio e os soldados atiraram contra seu primo sem agressão prévia –, o promotor Otávio Bravo descarta-a porque “não há nenhum sentido em tal versão”.
Ele ainda põe em dúvida a palavra de Wellington porque ele era “justamente uma das pessoas que, na narrativa dos integrantes da patrulha, se encontrava em atitude suspeita pouco antes da troca de tiros que resultou na morte de Abraão da Silva Maximiano”.
Pede, portanto, o arquivamento do caso. O que é concedido em 3 de julho de 2017. Para a Justiça Militar, portanto, não houve assassinato, nem erro, nem excesso, nem crime nenhum. Assim acabou o caso de Abraão.
Quatro meses depois do final dessa odisseia jurídica, o governo de Michel Temer assinou a Lei 13.491, incluindo como crime militar os homicídios de civis por militares durante operações de GLO, mesmo quando houver intenção de matar. Desde então, nenhum assassinato de civil cometido por um militar das Forças Armadas em operações de segurança pública pode ser julgado pela Justiça Civil.
Hoje, o caso de Abraão está arquivado, enterrado, esquecido. A juíza Valéria Caldi não atendeu aos pedidos da reportagem para uma entrevista; nem o procurador do MPF. “Não tenho muito a esclarecer sobre esse caso. Já não me lembro dos detalhes”, escreveu. O advogado que comanda as ações da AGU em defesa dos militares também não aceitou dar entrevista – a AGU respondeu por nota.
Abraão continua, como descreveu o desembargador Messoud Azulay Neto, a ser uma pessoa “que não sabemos quem é”. Durante seis anos de batalhas judiciais, ninguém quis saber a história desse menino carioca, morador da Penha. A reportagem da Pública não teve maior sorte ao tentar encontrar os familiares.
Sabe-se que não teve a chance de completar 16 anos. Que, na noite em que foi fuzilado, a irmã Jéssica o esperava para jantar. Que sua morte mobilizou altos generais do Comando do Exército e impulsionou uma mudança de lei assinada pelo presidente da República. E que foi enterrado em um caixão de madeira, com uma bandeira do Flamengo estirada sobre ele.
*Reportagem publicada originalmente no site da Agência Pública.