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Combate à covid-19 em aldeias não aconteceu 5 meses após decisão do STF

Relatório divulgado pela Apib classifica como pífia atuação do governo federal diante das quase 900 mortes já registradas em mais da metade dos povos

Covid-19: A taxa de letalidade (porcentagem dos que morreram após caso confirmado) da Covid-19 entre esses povos chegou a ser de 9,9% no mês de maio (Ueslei Marcelino/Reuters)

Covid-19: A taxa de letalidade (porcentagem dos que morreram após caso confirmado) da Covid-19 entre esses povos chegou a ser de 9,9% no mês de maio (Ueslei Marcelino/Reuters)

AO

Agência O Globo

Publicado em 10 de dezembro de 2020 às 13h45.

Cinco meses após o Supremo Tribunal Federal (STF) determinar que o governo apresentasse um plano emergencial de combate à covid-19 nas aldeias pouco se avançou diante das 889 mortes registradas pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) em relatório divulgado nesta quinta-feira.

O documento de 90 páginas denominado “Nossa luta é pela vida” faz um balanço do impacto da pandemia entre os índios e conclui que a omissão do governo ao não adotar medidas de proteção aos povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais "está baseada no racismo institucional, que não deixa dúvidas sobre a sua política genocida", diz trecho do relatório.

Covid-19

A Apib critica ainda a coordenação da Secretaria de Saúda Indígena (Sesai) pela falta de transparência na divulgação de dados sobre casos e mortes entre índios no país, além de acusar o secretário Robson Silva de tentar intimidar lideranças e promover campanha de difamação da entidade nas redes sociais e de querer criar divisões internas dentro do movimento indígena.

A taxa de letalidade (porcentagem dos que morreram após caso confirmado) da Covid-19 entre esses povos chegou a ser de 9,9% no mês de maio, uma vez e meia maior do que a da população brasileira na época (6,1%), apontada como uma das mais altas do mundo.

Missionários

Hoje a taxa de letalidade entre os indígenas está em 2,1% ante 2,7% dos demais brasileiros. Mas como há subnotificação dos casos, é possível que esses números sofram alterações. A primeira morte de indígena no país foi registrada ainda em março. Uma anciã borari, de 87 anos, em Alter do Chão, no Pará, um dos muitos casos não notificados entre os casos da Sesai à época.

Em nota, a Sesai afirma que trabalha com informações e dados coletados diretamente nas aldeias.

'Barreiras fake'

A Funai também é lembrada no documento pela baixa execução orçamentária destinada ao combate à Covid-19 e da tímida atuação na implantação de barreiras sanitárias. Em julho, o GLOBO revelou que o governo apresentou um "plano fake" com barreiras sanitárias inexistentes na área de índios isolados.

- A constatação que temos com esse relatório: os povos indígenas tiveram que agir por conta própria diante da omissão sistemática do governo brasileiro, que entregou , não só os povos indígenas, mas também uma parcela da população brasileira à própria sorte - afirma o advogado Eloy Terena, representante da Apib nos processos que correm no STF.

Raridade

De acordo com Terena, o relatório procurou também apresentar a ações da Apib no enfrentamento do coronavírus tanto no campo político, junto ao parlamento e na elaboração da própria lei de proteção aos povos indígenas aprovada no Congresso, quanto no campo dos territórios, com apoio de construção dos planos de enfrentamento e apoio à instação de barreiras sanitárias.

O documento ainda faz uma linha do tempo da atuação da entidade no campo jurídico, com as ações no Supremo e na Corte Interamericana de Direitos Humanos.

- A decisão do Supremo já completou cinco meses e nós não temos um plano de enfrentamento e monitoramento para os povos indígenas. O governo já apresentou uma terceira versão e mesmo essa última é muito deficitária - afirma Eloy ao lembrar que há grande insatisfação por parte dos ministros do STF em relação ao diálogo com o governo.

- Este relatório é um manifesto político importante que vem retratar de fato essa constatação de que os povos indígenas já vêm denunciando desde o iníco da pandemia - conclui.

Na semana passada, o ministro Luís Roberto Barroso, que é o relator das ações da Apib no STF, confirmou que governo federal está descumprindo a ordem para implementar barreiras sanitárias contra a Covid-19 nas terras indígenas Alto do Rio Negro, Enawenê Nawê e Vale do Javari, na Amazônia. Barroso deu 48 horas de prazo para o governo tomar providências no sentido de implementar as barreiras, mas nada avançou desde então.

Disparidade nos números

Desde o primeiro registro de contaminação de uma indígena kokama, no Amazonas, revelado pelo GLOBO no final de março, 41.250 casos foram confirmados entre 161 povos atingidos até então, média de 163 casos por dia, segundo dados atualizados no relatório da Apib.

O Brasil possui aproximadamente 850 mil indígenas distribuídos entre 305 povos. De acordo com a Apib, mais de 81 mil estiveram em situação de vulnerabilidade durante a pandemia.

Sesai e Apib divergem em relação aos números de casos e mortes de indígenas por coronavírus. O levantamento feito pela Apib mostra que o número de óbitos de índios é quase o dobro do divulgado pelo governo (889 ante 496).

O Amazonas é o estado com o maior número de mortes de índios pelo novo coronavírus (211) seguido de Mato Grosso ( 139), Mato Grosso do Sul (94), Roraima ( 93) e Pará (89).

Entre as etnias mais afetadas pelo novo coronavírus estão os xavantes e os kokamas, com 68 e 58 mortes, respectivamente.

O relatório apresenta, por fim, uma análise sobre as diferentes metodologias utilizadas pelo governo para registrar e monitorar os casos de contaminação e mortes por Covid-19 entre os povos indígenas.

- Mostramos também neste documento as milhares de ações realizadas pelo movimento indígena, em todo o Brasil, para salvar vidas. Não queremos ocupar o papel do Estado, mas não é uma opção ficar de braços cruzados diante de tanta omissão política e violência - afirma Sonia Guajajara, coordenadora executiva da Apib.

A Apib faz ainda um alerta para a violência contra os povos indígenas, intensificada segundo a entidade durante a pandemia. Divididos em quatro blocos, o documento contém capítulos para registros de casos de racismo, intimidações, atuação de missionários, política de demarcações, conflitos de terra, desmatamento, queimadas, eleições e agronegócio.

Outros lados

Em nota, o Ministério da Saúde, por meio da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), afirma que "cabe ao Governo Federal ofertar assistência de saúde no âmbito da Atenção Primária aos indígenas aldeados em terras demarcadas, conforme previsto na legislação".

Os demais indígenas, afirma a pasta, "assim como qualquer cidadão brasileiro, em áreas urbanas ou não, são atendidos pelos secretarias de saúde locais, conforme a gestão tripartite do Sistema Único de Saúde (SUS), cuja responsabilidade é dividida entre União, estados e municípios".

"A SESAI, desde janeiro de 2020, desenvolve estratégias de proteção, diagnóstico e tratamento da Covid-19 e vem fortalecendo a rede logística de insumos e equipamentos de proteção individual (EPI), estabelecendo fluxos de atendimento nas aldeias, Polos Base e Unidades Básicas de Saúde Indígena (UBSI).

O Ministério da Saúde também implantou Unidades de Atenção Primária Indígena (UAPI), com o objetivo de fortalecer os serviços nos Distritos Sanitários Especiais Indígenas (DSEI), respeitando as especificidades culturais. Até o momento, 208 UAPI foram instaladas para identificar precocemente os pacientes de Síndrome Gripal ou de Covid-19 e iniciar os primeiros procedimentos no local.

Para garantir a segurança de todos os indígenas e profissionais, foram enviados aos DSEI quase 4 milhões de EPI. O material é complementar aos estoques mantidos pelos próprios DSEI, que têm autonomia para realizar compras de insumos. ", diz a nota.

Procurados, a Advocacia Geral da União (AGU), que defende o governo no processo que corre no STF, e a Funai ainda não se manifestaram.

 

 

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