Ciranda do foro privilegiado é um retrato do Brasil
O julgamento sobre restrição do foro voltou à pauta e retornou à gaveta. Por que o Brasil não consegue fazer avançar pautas de consenso nacional?
Raphael Martins
Publicado em 25 de novembro de 2017 às 08h04.
Última atualização em 27 de novembro de 2017 às 11h57.
Nesta quinta-feira, depois de quase seis meses, o julgamento sobre a restrição do foro privilegiado para parlamentares brasileiros voltou à pauta do Supremo Tribunal Federal . E no mesmo dia, retornou à gaveta. Por pedido de vista do ministro Dias Toffoli, a votação foi novamente paralisada, mesmo com maioria formada de oito ministros favoráveis à restrição da prerrogativa especial para crimes cometidos no exercício do mandato e com relação com o cargo que ocupam.
Além do relator, ministro Roberto Barroso, acompanharam Rosa Weber, Marco Aurélio, Cármen Lúcia, Edson Fachin, Luiz Fux e Celso de Mello. Alexandre de Moraes propôs pequenas mudanças, mas entra na conta. Não custa lembrar que os ministros não têm prazo definido para devolver os processos à pauta da Corte. Pode, assim, ser uma forma de caducar o processo. É negar o pedido com um custo político menor.
Toffoli não é precursor na manobra. Um artigo dos pesquisadores Diego Werneck e Ivar Hartmann, da Fundação Getúlio Vargas, buscou estudar a motivação dos 11 ministros do Supremo ao fazer seu pedido de vista. O estudo, publicado no primeiro semestre pela revista Journal of Law and Courts, da Universidade de Chicago, usa uma base de 1,5 milhão de casos para calcular a duração do pedido do vista e comparar o comportamento a outras atividades dos ministros.
A conclusão é óbvia: “estudar o processo” não é a motivação real dos magistrados. “Encontramos indícios de uso político do pedido de vista, mas não há dados para comprovar. O que provamos, por meio dos dados, é que é possível descartar o uso para estudo do processo”, diz Hartmann, da FGV-Rio. “Isso é, por si só, suficiente para contrariar o discurso oficial de todos os magistrados”.
Em miúdos, o pedido de vista tornou-se uma maneira de impedir a aprovação de pautas das quais os ministros não estão interessados em ver avançar. Há dois caminhos: convencer os pares pelo argumento ou impedir os colegas de aceitar o pedido. O pedido de vista tornou-se forma de impedir unilateralmente os demais de interpretar a lei, além de segurar o processo o tempo suficiente para que a decisão não faça mais sentido.
Toffoli justificou o novo adiamento dizendo que seria melhor esperar um projeto semelhante de restrição do foro que está no Congresso seja discutido, em vez de resolver de vez a questão no Supremo. A proposta de emenda à Constituição em questão, aprovada no Senado em maio, limita o regime especial ao presidente da República, seu vice e aos presidentes da Câmara, Senado e Supremo.
Acompanhando o andamento dos projetos , nota-se um padrão. Até a Suprema Corte colocar o foro em pauta, o projeto estava parado na Câmara desde junho. Enquanto o relatório do tribunal esteve nas mãos de Alexandre Moraes, que também havia pedido vista, a PEC não se mexeu no Congresso. É de se esperar, então, que o foro privilegiado volte a emperrar, ao contrário do que afirma o ministro.
Por quê? Ministros do Supremo querem se ver livre da sobrecarga e preocupam-se com a mancha da impunidade em suas biografias. Os políticos investigados, por sua vez, compensariam o fim do privilégio de serem julgados em tribunal mais lento em troca dos constrangimentos ao Judiciário e Ministério Público, que também perderiam a proteção jurídica. De um lado ou de outro, as formas de amenizar o custo político de atravancar o processo é pedir vista ou engavetar o processo.
Mas este é apenas mais um da lista de tensões crescentes entre o Judiciário e Legislativo no Brasil. Toffoli assina mais um episódio em que o Supremo, de certa forma, curva-se ao Parlamento. O ministro enumerou processos penais em seu gabinete para provar que a Justiça anda também na Suprema Corte. Esqueceu-se, porém, que na principal agenda da opinião pública, o combate à corrupção, o Supremo falha miseravelmente. O mensalão, descoberto em 2005, começou a ser julgado em 2012. A análise de recursos foi até 2014. Foram 24 condenados. O grande case atual, contudo, é a Operação Lava-Jato. O juiz Sergio Moro, da 13ª Vara Federal de Curitiba, condenou nada menos que 113 de seus réus, enquanto o Supremo sequer julgou alguém.
A moeda do foro
Não só os números mostram como o foro é moeda valiosa. A nomeação de Moreira Franco (PMDB) como ministro de uma pasta criada especialmente para ele pelo presidente Michel Temer assemelha-se à tentativa de empossar o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva como chefe da Casa Civil nos atos finais da ex-presidente Dilma Rousseff. A manobra de ambos antecipava a aproximação cabal das investigações.
Outros importantes nomes de Brasília mostraram que são capazes de tudo para se manter a influência do Judiciário longe. No último ano, o episódio se soma, entre outros, ao caso Renan Calheiros (PMDB-AL) e à polêmica das cautelares de Aécio Neves (PSDB-MG). No primeiro, uma decisão judicial de afastamento do cargo foi desrespeitada pelo então presidente do Senado. Em Plenário, para evitar uma crise entre os poderes, foi desautorizada a decisão do ministro Marco Aurélio Mello, que pretendia tirar um investigado de um cargo na linha sucessória da Presidência da República.
O segundo episódio, mais recente, o voto de minerva da presidente da Corte, ministra Cármen Lúcia, determinou que afastamento e medidas cautelares de parlamentares deveriam passar pelo Congresso para serem efetivadas. Foram duas grandes vitórias do Legislativo em nome da separação e independência entre os poderes — mas temperado com boa dose de corporativismo.
“O conflito faz parte do sistema, mas há uma erosão da autoridade do Judiciário no país, em que o culpado é justamente o Supremo, que insistiu durante a crise política em cuidar de casos pontualmente em vez de formular regras claras e ter ministros comprometidos com elas”, afirma Rubens Glezer, professor da FGV-SP e coordenador do projeto Supremo em Pauta. “Quando se forma precedente mais ou menos claro, há, em seguida, um ministro desafiando isso, como aconteceu com Ricardo Lewandowski, que mudou o entendimento na homologação de delação premiada no caso do marqueteiro do PMDB, Renato Pereira. Era um trâmite que vinha consolidado durante toda a Lava-Jato”.
O curso confuso das posições recentes do Supremo reflete adiante, em insegurança jurídica nos estados. Foi o que aconteceu, segundo especialistas ouvidos por EXAME, na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro, a Alerj, que passou por cima do rito judicial do Tribunal Regional Federal ao soltar antes de comunicar à Justiça o presidente da Casa, Jorge Picciani e os deputados estaduais Edson Albertassi e Paulo Melo, todos do PMDB.
É de entendimento geral que prisão de parlamentar deve ser votada pelo Legislativo. Mas a noção de superpoderes impregnada nos deputados fez com que a simples votação parecesse suficiente para soltar o trio peemedebista, quebrando o rito de soltura. Resultado? O TRF-2 mandou que retornassem à prisão e o Tribunal de Justiça do Rio anulou a votação, feita a portas fechadas. Picciani e colegas passarão ao menos o fim de semana na prisão.
Para arrematar com chave de ouro, a procuradora-geral da República, Raquel Dodge, entrou com ação no Supremo para que a Alerj não possa livrar a barra dos deputados presos. A justificativa é de que toda composição do Legislativo fluminense está sob suspeita, dado o aparelhamento descoberto pelo Ministério Público Federal nos tempos de governo de Sérgio Cabral (PMDB). Diz Dodge que o Rio é uma “terra sem lei”.
“No histórico do Congresso, o custo político para os parlamentares acaba sendo muito pouco. Existe uma tendência de memória curta do eleitor, o que faz com que o acusado use todas as brechas e prerrogativas para transformar imunidade em impunidade”, diz Thomaz Favaro, diretor da consultoria política Control Risks.
Para Maurício Santoro, cientista político e professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, a inoperância do Supremo e a obsessão pela autoproteção da classe política faz aumentar ainda mais o fosso entre os cidadãos brasileiros e seus representantes.
O pedido de vista de Dias Toffoli, neste sentido, simboliza a labiríntica situação brasileira, um país que precisa mudar, mas não muda.